Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

1 de setembro de 2013

Saudade do tempo que não vivi

Paulinho da Viola - Meu tempo é hoje (2003): 'Documentário dirigido por Izabel Jaguaribe, é um perfil afetivo do cantor, instrumentista e compositor. O filme mostra seus mestres e amigos, suas influências musicais e percorre sua rotina discreta e muito peculiar, em suas atividades e hábitos desconhecidos dos grande público. Mas a grande revelação vem das reflexões do músico sobre um único tema: o tempo. Em vários versos ele canta: "Só o tempo ajuda a gente a viver"; "Amor, repare o tempo enquanto eu faço um samba triste pra cantar"...' [postado por Alexandre Camões no YouTube]



Logo no início do documentário Paulinho entra em uma livraria e emenda com um livreiro um papo sobre saudade, dizendo inclusive que era uma coisa que não conseguia sentir. Seu interlocutor emenda "Eu sinto muita saudade de uma época que eu não vivi". De certa forma é um sentimento do qual compartilho, e de fato não se trata, como considera o próprio Paulinho, de saudade. Trata-se de uma forma específica de experiência do tempo, em que nos apropriamos do que é possível apreender dentre vestígios do passado que nos alcançam e aos quais damos novos sentidos. Dentre estes pode estar uma certa nostalgia, até mesmo uma ilusória expectativa de restauração impossível de satisfazer, mas também a possibilidade de reinterpretar e concatenar as expressões de um tempo eminentemente diferente na medida em que participam do processo de atribuir sentido à vida e produzir compreensão de nossa própria conjuntura. Assim o título do documentário é bem escolhido, e contribui para desfazer uma leitura um tanto esquemática do compositor e sua obra, que tende a enquadrá-lo como guardião nostálgico do samba da velha guarda, quando de fato foi uma ponte entre gerações e audiências, um atualizador de tradições e certamente tem papel central nas inúmeras ressurreições do samba (tantas as vezes em que o deram como morto) nas últimas 5 décadas da história da música popular brasileira.

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