Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

4 de outubro de 2013

Grandes encontros da música popular - Joyce e Vinícius de Moraes


Há muito venho querendo escrever sobre a cantautora Joyce (atualmente assinando o nome completo, Joyce Moreno) que considero uma figura muito importante para entender a conformação da MPB. Testemunha e protagonista, com muita história pra contar (basta ler seu saboroso Fotografei você na minha rolleyflex), acabei de ler esse texto dela achei que valeria publicar alguns trechos com rápidos comentários, guardando outros materiais que já reuni para uma postagem vindoura.

Ciência sem receita - Joyce Moreno


"(...) Mais ou menos um ano depois, quando pela primeira vez classifiquei uma música no Festival Internacional da Canção, comecei a conhecer outros artistas e gente do ramo. Wanda Sá, a grande cantora bossa-novista, me procurou quando eu fazia uma pequena participação num show de Maria Bethânia: "Ouvi suas músicas, Vinicius precisa te conhecer. Vamos lá na casa dele, agora mesmo!" (...) Vinicius morava numa cobertura na rua Diamantina, no Jardim Botânico, com Nelita, então sua mulher. Parecia uma festa, mas depois me dei conta de que aquilo acontecia quase todas as noites: pessoas cantando, bebendo, conversando, rindo até o sol raiar. "Que vida!", pensei cá comigo. "Vida de poeta, também quero." Mostrei algumas das minhas primeiras composições, que ele adorou. "Você é uma feminista", ele disse, pelo fato de as canções serem sempre no feminino singular -definindo uma característica da qual até então não tinha consciência. Eram coisas intuitivas, feitas por uma iniciante de 19 anos. E que ele ouviu com respeito e sincero interesse. Lição número um. A lição numero dois, definitiva, se deu quando chegou um de seus jovens parceiros, Francis Hime, e os dois começaram a trabalhar numa nova canção. Ali, diante de todos, sem esconder o ouro. Dois profissionais, experts na grande arte da canção popular, descortinando uma obra em progresso. A festa virou então uma grande oficina, e eu me vi assistindo a uma "master class" inesperada.

Maravilhada, fui descobrindo como aquilo era suor, era trabalho, ainda que prazeroso, e exigia um conhecimento profundo do encaixe das sílabas certas na melodia, rimas internas, uso esperto da palavra, musicalidade do letrista e sofisticação, apesar da aparente simplicidade. Eu estava tendo uma aula de composição ali, ao vivo e em cores. Parecia fácil, mas havia naquilo uma ciência da qual eu jamais havia suspeitado.

Quando os trâmites foram dados por findos, voltou o clima de festa, com todos os presentes cantando juntos a canção recém-parida. A nova composição foi exaustivamente testada e aprovada, aparadas as possíveis arestas, até à perfeição. Lá pelas oito da manhã, quando nos retiramos da casa dele, cansados e felizes, a aura mágica do poeta nos envolvia a todos. (...)" o texto completo publicado pela Folha de S. Paulo [aqui]

Um relato pra lá de interessante que revela muito sobre como se teceu a complexa trama de sociabilidade e interação que faria surgir no cenário musical brasileiro toda uma geração de cantautores responsáveis pela invenção da MPB. Vinícius (e também, vale lembrar, Tom Jobim), soube passar com espantosa naturalidade da posição de mestres à de parceiros e incentivadores. Sua observação sobre o gênero e número adotado pela cantautora, um "feminismo" então raro, diz muito daquele momento, em que a expectativa era pela mulher cantora, mas não autora, ao menos nas fileiras emepebistas. A narrativa de Joyce, revelando-se testemunha da fatura em processo de uma canção, nos posiciona próximos da pequena grandeza daqueles instantes ímpares, entre a labuta e o devaneio, entre o suor e o prazer, entre o cálculo e a surpresa, em que toma forma uma nova cria. Com certeza, para ela e outros da mesma geração, foram encontros definitivos para os caminhos que trilharia em seguida.

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