Acabei de voltar do show dos Mutantes tocando por completo o disco Tudo foi feito pelo sol (1974), contando com toda a formação que o gravou (Sérgio Dias, Túlio Mourão, Antônio Pedro de Medeiros e Rui Motta). Sob diversos ângulos, posso afirmar que foi um grande show, com execução primorosa e sanguínea, com direito a solos memoráveis - os "duelos" entre Sérgio Dias e Túlio Mourão foram de arrepiar - e uma usina poderosa de ritmo na chamada "cozinha", uma sincronia e entrosamento que impressionam. No rosto dos músicos estava estampado o prazer de tocar, correspondido pelo envolvimento do público. Já na terceira música todo mundo de pé, posição em que seria assistido todo o restante do show, aliás não muito longo uma vez que a proposta era executar todo o disco. Inevitável sentir ao final que seria muito bom se aquele estado de êxtase durasse mais temp(l)o. Não exagero, especialmente se for pra descrever o comportamento de uma moçada que sequer havia nascido quando o LP foi gravado, e que representava boa parte da audiência. Aliás, nessa me incluo, diria que boa parte do público deveria ter no máximo uns 25 anos... Aí entra meu filho João Paulo, ainda "di menor", que mais uma vez me deu o prazer de sua companhia num espetáculo que de alguma forma tem conotação histórica acentuada. Confesso que jamais poderia imaginar um dia ver um show dos Mutantes, fosse qual fosse a formação. Mas, falando em História, não tenho como evitar o dever de ofício. Esses dias mesmo estava a refletir sobre a forma como a recepção e a posição simbólica do rock 'n' roll mudaram ao longo das décadas. Ver os Mutantes ali, executando ao vivo um disco gravado há praticamente 40 anos, me fez retomar esses pensamentos. De cria rebelde do caldeirão afro-americano, remexido e expandido após cruzar o Atlântico e cair no gosto dos jovens cabeludos da terra da rainha, de celebração catártica do novo capaz de abalar estruturas de uma sociedade conservadora, acabou sendo convertido em clássico, em digno de tributo, em peça de museu e relançamento de catálogo. Sua trajetória é um bom exemplo de como a modernidade traga, mas não dissolve por completo em seus pulmões, as fumaças mais alucinantes que a imaginação humana possa conceber nos mais recônditos cantos da mente e do corpo. Um trecho da matéria do Estado de Minas [completa, aqui] dá uma boa pista para entender um pouco melhor o que ocorre:
“Criou-se uma mítica em torno desse disco”, resume Túlio. O frisson vem, principalmente, da parte técnica. Fãs ouvem as faixas fazendo air guitar involuntário nos solos de Sérgio Dias ou dão dedadas no moog imaginário para acompanhar Túlio Mourão. “A garotada de hoje tem acesso instantâneo e abrangente a tudo. Essa turma compara, conhece muito e encontra conteúdo, sinceridade e alta performance instrumental naquele disco”, avalia Túlio.
Atualmente o passado penetra o presente de forma intensa, e não apenas sob o signo da nostalgia propriamente dita, mas como fetiche, mercantilizado numa fórmula essencialista em que pode ser consumido como se assim fosse possível transcender a diferença do tempo e sentir-se como "se estivesse lá". Entretanto, eventualmente resta a possibilidade concomitante de ser apropriado de forma crítica, num procedimento em que conferimos aos vestígios que dele nos chegam outros sentidos na atualidade. Assim, num tempo de Pro-Tools e parafernálias digitais as mais diversas, retomar a excelência técnica e a musicalidade aguda como parâmetros de gosto pode de alguma forma ter um sentido crítico em relação ao que disponibiliza a indústria fonográfica e a produção cultural movida a leis de incentivo hodiernos. Desse modo, felizmente, os delírios não envelhecem.
De Raul Mariano, via facebook: Faço ainda uma adendo como ouvinte-músico: Sérgio Dias, Túlio Mourão e Cia não só reafirmaram que os delírios não envelhecem, como também comprovaram que o "Tudo foi feito pelo sol" é uma das obras mais relevantes do rock brasileiro. Nunca vi - na minha pequena experiência de vida - uma banda despertar o êxtase da platéia com a mesma força que eles fizeram no último sábado. Conheço pessoas que conheceram o disco na semana do show e estavam lá, do nosso lado, cantando todas as músicas e fazendo as viradas da bateria no ar, pirando com a performance dos titios virtuoses. Foi incrível.
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