Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

15 de outubro de 2013

McCartney ressurge (?!) or, the first septuagenary on the disco

Tinha começado a escrever essa postagem antecipando o lançamento de "New", novo álbum de Paul McCartney, a partir de algo que li em O Globo. O tempo passou, o disco saiu, já ouvi e acabei decidindo fazer a postagem tendo a versão anterior como preâmbulo.
É uma matéria que dá até pano pra manga, mas por enquanto vou reter esse trecho que me divertiu:

"McCartney bem diferente do que lançou “Kisses on the bottom” — uma coleção de clássicos americanos, em 2012. No novo trabalho, Macca está muito mais “moderno”, embora tenha preferido usar apenas instrumentos vintage na gravação das canções, num clima que lembra bastante o seu projeto “The fireman”, que rendeu o ótimo “Electric arguments” (2008)." (Fernando de Oliveira/O Globo). 

Um paragrafo bem pós-moderno e bem ruim, diga-se de passagem. Se "Kisses" tem uma qualidade marcante, é ser moderno, sem aspas. "New" por sua vez pode ser justamente esse retrato musical do "retrô" pós-modernista sob a ótica de Paul McCartney, ao qual o emprego da expressão "vintage" remete, sem que o jornalista tenha percebido.O próprio título da reportagem é muito mal escolhido, ressurgir é um termo estranho de usar para tratar de um músico com a carreira e a presença que tem Paul no universo da música popular. Isso só mostra o estado atual de calamidade da escrita sobre música na grande imprensa.

A partir daqui insiro o que escrevi no facebook, onde rolou um bom debate com a participação de companhias internáuticas de alto gabarito de Rafael Senra, Guilherme Lentz, Thiakov, Alô Prado e Pablo Castro. Tentei agrupar o melhor possível algumas falas, mesmo tirando da ordem em que estavam, na tentativa de criar uma visão um pouco mais sintética da argumentação. Nada impede a conversa de continuar por aqui
...

Para ouvir a faixa título


L.Garcia sem muita aflição: Mais um disco do Paul McCartney. Nem pensei que ia ouvir hoje, mas viva a generosidade incomensurável da Liga dos Internautas Unidos. Alô Prado também sem ansiedade: Na verdade nem ouvi o New, não fiquei nada curioso. Já perdi o lançamento de todos os discos dele até o Press To Play... 

L. Garcia faz uma 1a. apreciação:
A percepção de Paul McCartney que gosto de reter é a de um músico capaz de fazer descobertas, abrir trilhas e ser alvo das tentativas de cópia. Porém ele, em momentos de sua carreira solo, escorrega rumo à banalidade pop e o desejo legitimo de conquistar novos públicos por vezes se confunde com a adesão a clichês de produção, como foi em álbuns como Press to play. Assim, o "novo" pode soar paradoxalmente velho, ainda mais em se tratando de um compositor com uma obra tão vasta. Em casos crônicos ele chega a soar como pastiche de si mesmo - o refrão de "I can bet" diz tudo, é literalmente um "Get back" reciclado. Mas claro que se trata de um grande músico que mesmo nessas circunstâncias consegue acrescentar algo. Quem sabe não será através desse álbum que outras gerações irão ser introduzidas às obras máximas do genial Paul McCartney

G. Lentz comenta faixas: 
Gostei muito de "Early days". Lindo uso da voz envelhecida. Acho que é um disco de muitas texturas novas. "Road", "Appreciate", "Hosanna", "Aliggator" e "Looking at her" estão bem longe da linha usual do Paul. Acho que serão louvadas e criticadas por isso. Gostei muito dos rocks e da balada "Scared". "I can bet" tem uma levada mais dançante muito legal - a propósito, bem lembrada a semelhança com "Get back", Balu! Mas agora é deixar a audição pousar e ver que raízes o disco vai criar.

R. Senra analisa e compara discos: 
A cada audição, gosto mais... creio que, até agora, o classificaria como melhor que os anteriores de inéditas (Chaos and Creation... e Memory Almost Full), mas é cedo pra dizer. 
L. Garcia: Memory Almost Full é um disco que nem lembro direito, mas o Chaos and Creation reputo entre os melhores solo do McCartney. Nesse New não tem nenhuma letra do nível das quem tem nele, por exemplo. Fico com a sensação - ainda que carente de verificação - que o New as canções estão mais a serviço da produção que o contrário. Isso até pode ser interessante mas aqui vejo resultados irregulares. Acabei gostando um pouco mais dessa - "Scared", que dá a sensação de ser uma canção da época do Chaos and Creation que ficou de fora.






R. Senra: 
sobre o Chaos and Creation, acho ele muito bem produzido, mas eu particularmente senti falta de um "algo mais" no disco. Deixo claro que é gosto pessoal mesmo. Nunca prestei atenção nas letras dele, exceto as faixas que Paul tocou naquele video "Chaos and Creation at Abbey Road", como English Tea, e outras que lembro ter gostado. Concordo com o que vc diz sobre Paul, e, no mais, achei que o New herda um pouco da produção modernizada do Electronic Arguments (que diziam ser um projeto eletrônico, mas q achei bem orgânico), com a diferença de que Paul parece retomar um suposto formato tradicional da canção popular em diversas faixas. O saldo pra mim (sempre lembrando que, no calor do momento, as opiniões saem meio enviesadas) é um disco uniforme na qualidade, ainda que sem pontos consideravelmente altos.

L. Garcia:
Acho que o "New" mostra sem dúvida um McCartney que jamais se acomoda, mas que por outro lado às vezes se ressente da falta de uma voz dissonante e discordante na composição. Acho sintomático que o disco proponha algum diálogo na figura específica dos produtores, e não de outros músicos. Assim a aventura da coisa parece estar mais nas timbragens e em alguma medida nos arranjos de modo geral, mas aí, posso até estar enganado, mas não escuto novidade no plano geral, ainda que seja interessante a ideia de um cara na faixa dos 70 procurar uma expressão com um vocabulário sonoro da geração que tem 20,30. E enfim, como letrista, nada me chamou muito a atenção, tirando um ou outro achado aqui e ali. Mas tem mesmo que esperar o "pouso" da audição, como o Lentz disse. 

P. Castro, entrando com a costumeira contundência:
Achei fraco. Ouvi até a metade. Claro que Paul continua com seu profissionalismo composicional, mas muito em círculos. Não é na produção fonográfica que se renova a composição de canções. O som pode até ser contemporâneo, mas as idéias musicais continuam muito antigas. Thiakov provoca: Reclama não Pablo Castro! Presentaço do vovô Macca. P. Castro, na sequência: Mas pra que essa condescendência toda ? Ele não é meu avô, mas parece ter problemas em envelhecer, como, aliás, seu contemporâneo caetano, igualmente incapaz de atingir o nível de seu auge, igualmente tentando oxigenar suas composições com tendências da moda. Pelo menos Caetano ousa mais, ainda que a custo de seu antigo apuro melódico e formal. Paul, aqui, realmente parece , mais do que velho, cansado, recorrendo às velhas formas. Do ponto de vista da composição, esse disco poderia muito bem ser da década de 80, há 30 anos. Claro que há momentos interessantes, mas os automatismos de melodia e harmonia perduram sem tocar no sublime que lhe era tão frequente nas décadas de 60 e mesmo 70. Do ponto de vista das letras, parece ter alguns achados, mas nada realmente muito surpreendente. A grande pergunta é: por que continuar gravando um disco por ano, se ele não acrescenta realmente nada à sua obra. Achei bem mais interessante a ideia do disco de standards do ano passado. Acho que ele poderia redescobrir algumas pérolas dele, que ficaram escondidas em tão extenso cancioneiro. Seria bem mais consequente do que se obrigar a fazer 13 músicas por ano aos setenta, além de turnê mundial , etc. (...) Falo assim , de ele ter respeito com a própria obra. É importante uma certa autocrítica, sei lá. L. Garcia: Concordo em relação à autocrítica. Paul é muito prolixo como compositor e simplesmente não se preocupa com essa de obra, até por já ter feito o que já fez, provavelmente. Claro que poderia usar essa ideia das releituras.

R. Senra: Isso que o Pablo disse é algo que sempre me inquietou. Tudo bem que o Paul exiba uma excelente forma, e faça shows antológicos de 3h de duração até hoje, mas ele passou as ultimas décadas repetindo um setlist composto pelos clássicos dos Beatles (eventualmente até resgatando algumas pérolas da banda, como Benefit of Mr.Kite), e alguns dos seus hits solo. Mas ele tem MUITA coisa boa talvez nunca tocada ao vivo. O próprio Paul disse numa entrevista recente que a ideia de fazer shows na linha "classic albuns" não o agradava muito (o repórter sugeriu que ele tocasse o Band on the Run ou o Ram inteiro ao vivo). Seria realmente revigorante vê-lo sair desse repertório que, ainda que impecável, tornou-se meio que lugar comum (ainda que, convenhamos, é um lugar comum fantástico, rs). L.Garcia: acho que por mais maluco que pareça, o Paul se comporta muito como se ainda fosse preciso dar o show, agradar as grandes audiências, ele respira através disso e provavelmente não sabe viver sem isso.

Encerro com o segundo título, pretensa síntese em uma frase do que seria uma apreciação bem rigorosa do álbum, inspirada pela audição da faixa bônus "Struggle": 
McCartney, the first septuagenary on the disco  

 




Um comentário:

  1. Um belo debate, agora imortalizado no blog!

    Eu li essa matéria no Globo, e acho que me acostumei com esses vícios toscos do jornalismo tupiniquim, como os que vc aponta (tipo "Macca ressurge", isso é de fato estúpido). Quando leio esse tipo de texto, me atenho as informações factuais, como se quisesse avançar a viagem sem se preocupar com os quebra molas. Talvez um modo de não ficar muito ranzinza com esse tipo de escrita, sei lá.

    No mais, continuo ouvindo o disco, agora ainda apreciando mais depois dessas primeiras impressões compartilhadas por todos.

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