Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

25 de outubro de 2013

Aperfeiçoando o perfeito


Enquanto se acerca o aniversário de um certo Notlim Otnemicsan encontrei nesses translados ciberespaciais, através da postagem do Francisco de Paula na página de facebook do Blog Clube da Esquina, a uma versão primorosa de Ao que vai nascer, canção onírica que revolve a dimensão do tempo e brande, em meio à paisagem maculada da pátria de baionetas, uma ode à força do encontro e da criação. Nada poderia ser mais apropriado para lembrar o Nascimento de um Milton, e ouvi-lo na condição da criação que atravessa as eras.




Compartilhei-a, o que imediatamente motivou os comentários certeiros que seguem, do meu parceiro Pablo Castro:

A faixa derradeira e seminal do disco Clube da Esquina, a lunar "Ao que Vai Nascer" , de Milton e Fernando Brant, é absolutamente arrebatadora.

Meu parceiro Luiz Henrique Assis Garcia [autor/editor deste blog] achou esse versão , também com Milton, num disco [A Brazilian Love Affair, clique no link para ouvir todo] de George Duke, tecladista e vocalista sensacional que, entre incursões jazzísticas, integrou a banda de Frank Zappa.

[nota 1 do editor: e colaborou em diversas ocasiões com a grande cantora brasileira Flora Purim, radicada nos EUA e intérprete valorosa de pérolas do repertório miltonascimentiano;
nota 2 do editor: acabei de ver que o George Duke deixou o plano terrestre justamente esse ano. Segundo o bom texto do Mário Lopes (completo, aqui):
 
George Duke, músico de jazz, estrela pop, criador de funk devidamente pecaminoso, só era coerente na sua aparente incoerência. Aparente porque não havia nada de incoerente no seu percurso, antes uma imensa curiosidade (a que o levou, por exemplo, ao Brasil, no final dos anos 1970, para gravar com Milton Nascimento ou Flora Purim o jazz tropicalista de A Brazilian Love Affair). Curiosidade e a noção muito moderna, sabemo-lo agora, da inexistência real de uma hierarquia separadora da alta e baixa cultura. Nesse sentido, o músico que se iniciou nas lições de piano depois de ver Duke Ellington foi fiel à sua inspiração primeira, ao homem que afirmou um dia “só existem dois tipos de música, a boa e a má”]. Segue uma apresentação mais recente, em que ele executa sua versão de Cravo e canela:

 
Mas é Bituca do começo ao fim, numa das mais épicas páginas da música popular mundial no século XX. Uma das letras mais inspiradas de Brant, Ao que Vai Nascer conjuga um despertar assombroso lírico contra as cores pesadas do momento histórico de chumbo.

Memória de tanta espera
Teu corpo crescendo, salta do chão
E eu já vejo meu corpo descer
Um dia te encontro no meio
Da sala ou da rua
Não sei o que vou contar
Respostas virão do tempo
Um rosto claro e sereno me diz
E eu caminho com pedras na mão
Na franja dos dias esqueço o que é velho
O que é manco
E é como te encontrar
Corro a te encontrar
Um espelho feria meu olho e na beira da tarde
Uma moça me vê
Queria falar de uma terra com praias no norte
E vinhos no sul
A praia era suja e o vinho vermelho
Vermelho, secou
Acabo a festa, guardo a voz e o violão
Ou saio por aí
Raspando as cores para o mofo aparecer
Responde por mim o corpo
De rugas que um dia a dor indicou
E eu caminho com pedras na mão
Na franja dos dias esqueço o que é velho
O que é manco
E é como te encontrar
Corro a te encontrar



[Nota 3 do editor : um detalhe sobre essa canção foi o fato de sua letra original ter sido censurada, no trecho ‘Brasil é o país do futuro, meus filhos, meus netos/ o futuro está aqui/ pintaram os fatos de todas as cores/ nesta eu não .../ acaba a festa, guardo a voz e o violão/ e saio por aí/ encerro o canto só se o corpo adormecer’ que virou o trecho "Queria falar de uma terra..." e acabou ficando bem mais pesada, na interpretação do próprio autor. De fato uma grande sacada do Brant, jogar com as cores, elemento simbólico rotineiramente acionado pelo Regime Militar em seu propagandismo ufanista, aqui devidamente descascadas.]

2 comentários:

  1. Alegria descobrir isso nessa manhã de sábado! Essa letra me faz pensar nas gerações futuras e na "possível falta de oportunidade" elas terão de conhecer a canção do século XX, dada a avalanche de informação que varre o mundo. Me pergunto sempre se os novos Miltons que nascem e que nascerão, terão a possibilidade de serem ouvidos assim, analisados assim, debatidos assim.

    Em tempo: Milton relido pelo jazz se torna ainda mais universal. Esse post acaba de acender, em mim, a fagulha da inspiração.

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    1. Raul, obrigado pela presença e colocações que contribuem muito com as nossas investidas, insistentes, em favor desse espaço de discussão. Volte sempre!

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