Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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24 de setembro de 2021

Aldir inédito: ventar contra a falta de ar

Acaba de sair o disco de inéditas do grande mestre Aldir Blanc, lamentavelmente tirado do palco da vida pelo pandemônio da Covid-19. A obra póstuma reúne parceiros e intérpretes consagrados  - João Bosco, Sueli Costa, Guinga, Leila Pinheiro, Moacyr Luz,Joyce Moreno, entre outros - e algumas colaborações recentes e até surpreendentes, como a do ator Alexandre Nero, que preparava um espetáculo teatral baseado em canções de Aldir, e com a mão de Antonio Saraiva, musicou um apanhado de ideias trocadas com o letrista. Do volumoso baú do compositor saíram canções inéditas que abarcam sua longa trajetória, dos anos 1970 à atualidade, reunindo desde material já acabado ao que se pode chamar de parcerias póstumas, retrabalhadas pelos diversos parceiros, arregimentados a partir da iniciativa de sua companheira Mary. Os arranjos são de Cristovão Bastos (também parceiro) e Jorge Helder. A arte da capa, feita pelo fenomenal Elifas Andreato, tem design simples que remete às antigas artes da gravadora Elenco nos anos 1960s, mas consegue sobretudo sintetizar o estilo cortante tão caracteristico dos versos de Aldir. Sua verve aguda e lirismo particular afiadíssimos estão mais que evidentes ao longo do disco, completados com a transbordante afinidade e amizade dele com a do leque de artistas que se somaram na proposta. Aldir inédito, para nos lembrar sempre que é preciso ventar contra a falta de ar.  

Todas as faixas, abaixo, e logo em seguida a playlist completa:

1. "Agora eu sou diretoria" (João Bosco e Aldir Blanc) – João Bosco
2. "Palácio de lágrimas" (Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Maria Bethânia
3. "Baião da muda" (Moyseis Marques, Nei Lopes e Aldir Blanc) – Moyseis Marques
4. "Voo cego" (Leandro Braga e Aldir Blanc) – Chico Buarque
5. "Navio negreiro" (Guinga e Aldir Blanc) – Leila Pinheiro e Guinga
6. "Provavelmente em Búzios" (Cristóvão Bastos e Aldir Blanc) – Dori Caymmi
7. "Acalento" (João Bosco, Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Ana de Hollanda
8. "Aqui, daqui" (Joyce Moreno e Aldir Blanc) – Joyce Moreno
9. "Mulher lunar" (Luiz Carlos da Vila, Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Moacyr Luz
10. "Outro último desejo" (Clarisse Grova e Aldir Blanc) – Clarisse Grova
11. "Ator de pantomima" (Sueli Costa e Aldir Blanc) – Sueli Costa
12. "Virulência" (Alexandre Nero, Antônio Saraiva e Aldir Blanc) – Alexandre Nero













31 de janeiro de 2018

1a. c/ 7a. A arte carnavalizada de Glauco Rodrigues

Assisti com muito interesse ao documentário "Glauco do Brasil", sobre a vida e obra do artista brasileiro Glauco Rodrigues. Permanece ainda relativamente inexplorada academicamente falando a relação entre a música popular e as artes plásticas, especialmente se excetuarmos o caso da Tropicália. Fiquei particularmente ligado no depoimento do João Bosco remontando às artes das capas de Caça à raposa, Galos de Briga e Comissão de Frente. Em sua fala ele chama atenção para a afinidade do trabalho do artista com o repertório que vinha construindo, especialmente em parceria com Aldir Blanc, a partir do conceito de carnavalização. 


Achei relevante esse apontamento para contrapor essa opção estética (na música popular e nas artes visuais) ao atual posicionamento sectário que vem sendo expresso através do entendimento raso do conceito de 'apropriação cultural'. Há uma relação entre essa diferença de concepções sobre a Cultura e a conjuntura social e política em que se apresentam. Nos anos 1960-70 havia a tentativa de imaginar um país e de gestar um projeto nacional, e nesse intuito recorria-se invariavelmente a alguma forma de mescla para embasar-se. A política e o debate cultural atuais tem gravitado em torno de outras formas de construção das identidades, por vezes supra e por vezes infra nacionais. Ocorre que muitas vezes essas formas reivindicam um grau extremo de pureza e separação, distanciando-se da possibilidade de traçar destinos comuns e visões de mundo compartilhadas. Me parece urgente retomar o fio da meada da brasilidade a partir das propostas estéticas e política desenhadas a partir do reconhecimento da hibridação cultural como nosso traço distintivo. 






Da apresentação oficial no You Tube:
"Glauco do Brasil é um documentário de 90 minutos, que retrata a vida e a obra do pintor Glauco Rodrigues. Gaúcho de Bagé, Rio Grande do Sul, Brasil, Glauco é considerado por teóricos, críticos e artistas nacionais e internacionais um dos principais pintores da Pop Art na América Latina. A trajetória de Glauco Rodrigues é retratada através de uma série de entrevistas, depoimentos, imagens de arquivo e captação de novas imagens dos cenários no qual Glauco Rodrigues vivenciou e se inspirou. O documentário possui entrevistas com artistas e intelectuais como: Nicolas Bourriaud, Ferreira Gullar, Gilberto Chateaubriand, João Bosco, Luis Fernando Veríssimo, Camilla Amado, Frederico Morais, entre outros."



8 de dezembro de 2017

Equilíbrio e esperança

Mesmo onde aparentemente não, a cultura diz muita coisa. O uso do sarcasmo (e outros efeitos de linguagem) para nomear operações da Polícia Federal denota a transformação de processos internos que deveriam ser conduzidos na maior sobriedade em parte de um espetáculo armado cuja finalidade certamente vai além de apurar o que quer que seja, assumindo conotação política evidente a qualquer observador mais atento. Já disse isso antes. Agora volto ao tema diante desse circo armado pra cima da UFMG, com condução coercitiva do reitor, de sua vice, e outros professores da instituição, dia 06/12 último. Usar como nome "Esperança equilibrista", trecho da canção de João e Aldir, verdadeiro hino da Anistia, com patente escárnio sobre a nossa História, sobre a digna trajetória dos perseguidos políticos, e dos próprios autores da canção, denota exatamente a forma pouco comprometida com o Estado Democrático de Direito que a PF tem adotado, e não é de hoje. Não estou contra qualquer investigação, desde que seja feita dentro dos parâmetros legais. A defesa da Universidade Pública não é incompatível com a defesa da Justiça. Pelo contrário. Não há como construir Universidade, e de todo NADA público, sem Justiça. Não devemos confundir pessoas e instituições, e muito menos um órgão policial do Estado pode fazê-lo. O abuso desse expediente de condução coercitiva tem sido constante. A falta de cuidado com a forma como se investiga, considerando inclusive a presunção de inocência, tem consequências trágicas. É uma barbárie que o suicídio do Cancellier não baste. Nossa 'infraestrutura' jurídica toda ruiu e poucas são as vozes que se elevam para alertar sobre esses abusos, pois interesses políticos os mais reles estão à frente de tudo. Um país em que os próprios poderes constituídos, os representantes eleitos e/ou investidos dos 3 poderes da república, atuam de caso pensado enquanto comparsas para destroçar e privatizar o ensino, com a conivência ou participação ativa de uma parte considerável da população mais escolarizada pode ser outra coisa que não o que já somos?  Não há essa oposição binária entre impunidade e autoridade sem limite. Investigar sem responsabilidade e sem compromisso com os direitos e procedimentos adequados não tratará o fim da corrupção. Já trouxe as trevas, e com ela a caça seletiva às bruxas.

No mesmo dia realizamos um ato junto à reitoria da UFMG em repúdio à forma com que a PF conduziu coercitivamente os colegas, entre eles os atuais reitor e vice-reitora, desrespeitando os procedimentos devidos e transformando sua ação em espetáculo quando deveria ser realizada com a sobriedade que a gravidade das acusações exige. Comentei com vários colegas que estava certo que causaria indignação a João Bosco e Aldir essa apropriação desrespeitosa de sua canção tão emblemática e representativa para nossa história. As reações de ambos foram justíssimas e imediatas:

"Recebi com indignação a notícia de que a Polícia Federal conduziu coercitivamente o reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jaime Ramirez, entre outros professores dessa universidade. A ação faz parte da investigação da construção do Memorial da Anistia. Como vem se tornando regra no Brasil, além da coerção desnecessária (ao que consta, não houve pedido prévio, cuja desobediência justificasse a medida), consta ainda que os acusados e seus advogados foram impedidos de ter acesso ao próprio processo, e alguns deles nem sequer sabiam se eram levados como testemunha ou suspeitos. O conjunto dessas medidas fere os princípios elementares do devido processo legal. É uma violência à cidadania.
Isso seria motivo suficiente para minha indignação. Mas a operação da PF me toca de modo mais direto, pois foi batizada de “Esperança equilibrista”, em alusão à canção que Aldir Blanc e eu fizemos em honra a todos os que lutaram contra a ditadura brasileira. Essa canção foi e permanece sendo, na memória coletiva do país, um hino à liberdade e à luta pela retomada do processo democrático. Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental.
Resta ainda um ponto. Há indícios que me levam a ver nessas medidas violentas um ato de ataque à universidade pública. Isso, num momento em que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estado onde moro, definha por conta de crimes cometidos por gestores públicos, e o ensino superior gratuito sofre ataques de grandes instituições (alinhadas a uma visão mais plutocrata do que democrática). Fica aqui portanto também a minha defesa veemente da universidade pública, espaço fundamental para a promoção de igualdades na sociedade brasileira. É essa a esperança equilibrista que tem que continuar."
João Bosco

07/12/2017


"Depois da operação 'Esperança Equilibrista', João Bosco e eu esperamos que a Polícia Federal prenda também Temereca, Mineirinho Trilhão157, que foi ajudado pela Dra. Carmen Lúcia, e o resto, aquela escória do Quadrilhão que impera, impune, no Plabaixo. 

A nova Operação se chamaria 'De frente pros crimes' dos que sempre ficam impunes, com ajudinhas de Gilmares, Moros, PFs, etc.

Também esperamos que ninguém se suicide ou seja suicidado nessas operações, o que já é marca registrada das forças repressoras que servem aos direitistas do Brasil." 
Aldir Blanc, 07.12.2017


Tudo que gira em torno dessa apropriação indébita e escarnecedora sinalizam, a despeito, a centralidade da canção para a cultura e a vida social brasileiras. A repercussão da escolha dessa nomeação produz simultaneamente um embate simbólico inevitável e uma oportunidade para pensar a crise porque passamos. Nesse sentido, de imediato corroboro o que disse a colega Miriam Hermeto, do Depto. de História da UFMG na entrevista que segue:





O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco/Aldir Blanc)

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua, tal qual a dona do bordel,
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens, lá no mata-borrão do céu,
Chupavam manchas torturadas, que sufoco!
Louco, o bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil pra noite do Brasil.
Meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil.
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete.
Chora a nossa pátria mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil.

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente, a esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar

Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar...

Pra encerra, ouçamos a canção na interpretação consagrada da grande Elis Regina:


18 de julho de 2016

1a. c/ a 7a. Os cinemas cantados na música popular

Um dos grandes momentos das atividades culturais que realizei durante o último Congresso da IASPM-AL em Havana foi sem dúvida uma perambulação pela Calle 23, bem pertinho de onde estava hospedado. Ponto de grande agito cultural e movimentação, casas com música ao vivo e cinemas, como o Cine La Rampa, um cinemão, rampa acarpetada, balcão, cadeiras com encosto de madeira, lembrando muito por dentro o Cine Brasil da BH da minha infância.  

Lembrei disso tudo ouvindo a composição Cinema Rio Branco do excelentíssimo Sergio Santos , inspirada num cinema de Varginha. Aliás, vale ouvir de cabo a rabo seu disco Litoral e Interior (Biscoito Fino, 2010) mais um primor da lavra dessa figura central da música popular mineira e brasileira. 


Lembrei, logo na sequência, da belíssima Cine Baronesa, mais uma pérola do grande Guinga, desta feita em parceria com Aldir Blanc, gravada com a participação do quarteto Maogani e da cantora Fátima Guedes no disco homônimo de 2001 (saiu pela gravadora Caravelas - aqui uma resenha do disco).



Mesmo quando os lugares se vão, a música pode perpetuá-los pelo modo como expressa seus significados lembrados através do som e pela forma como os ouvintes podem reconhecê-los. Uma pena que quase não há cinemas assim mais, mas ao menos resta a possibilidade da rememoração, se for em música então, ainda mais comovente.
Há uma lista interminável de canções que fazem referência a cinemas, esses templos modernos do deslumbramento com a imagem e som em movimento. Como é uma postagem de férias, deixo aos leitores que porventura se animarem a tarefa de encompridá-la. 

23 de junho de 2016

Gerente do mafuá?

É difícil fazer crítica cultural em tempos tão espinhosos. É preciso ter ferramentas analíticas adequadas e disposição para encarar um patrulhamento terrível, que atualmente tem vestido o manto da dita "apropriação cultural". Daí vou compartilhar esse exemplo inusitado, pouco usual, da atriz branca de séries e alguns filmes hollywoodianos que foi criticada nos Estados Unidos porque citou a letra de um rap de 1992 "Baby got back" - cuja recepção preconizava a valorização de traços corporais das negras - com a finalidade (narcisista, diga-se de passagem) de celebrar seu próprio corpo [aqui a matéria completa]. O que realmente me interessou foi a declaração do rapper Sir Mix-a-lot, autor da canção: "Escrevi essa canção não sobre uma batalha entre raças (...) eu queria que essas grandes revistas se abrissem e dissessem 'espere um pouco, essa pode não ser a única [forma] de beleza". Várias coisas a pensar, mas sobretudo ressalte-se a fluidez da música popular em circular em diferentes meios sociais, adquirir sentido para indivíduos de perfis variados, ser usada para manifestas opiniões e modificar a percepção social a respeito de um tema, propor mudanças de costume e comportamento.
É certamente necessário tomar qualquer objeto de análise na sua devida complexidade. A música popular, seja no que constitui sua confecção ou a partir do momento em que transita por diferentes meios, grupos sociais e temporalidades, pode até mesmo ser relida de forma incongruente com a que seus próprios autores a imaginaram. Justamente, li certa vez um artigo que trata dos diferentes usos de Imagine, de John Lennon, mencionando inclusive uma convenção do Partido Conservador britânico, no tempo da Tatcher, tocando a canção no início do evento. Um trabalho muito consistente a respeito dessas diferentes apropriações é o de
Louise MEINTJES - Paul Simon’s Graceland [álbum completo, aqui], South Africa, and the mediation of musical meaning. in: Ethnomusicology. Illinois: Illinois University Press, winter 1990, pp. 37-73. Obviamente as diferentes disputas em torno dessa interpretações envolvem relações de poder, como muito bem indica o genial Baião de Lacan de Guinga e Aldir.

"Eu fui pra Limoeiro e encontrei o Paul Simon lá
Tentando se proclamar
Gerente do mafuá"




16 de fevereiro de 2015

Bolacha completa de carnaval - Caça à raposa (1975)

(extrato de Bosco + Blanc)
Glória aos piratas
tá lá um corpo estendido no chão
no dedo, um falso brilhante
tu era da minha laia
matou o amigo de ala
não sabe com quem está falando
tapuias, go home!
não adiantou nada
ah, recomeçar como a paixão e o fogo
um pega na geral
da terça de carnaval






Caça à raposa (1975) talvez seja o produto mais bem acabado da parceria entre João Bosco e Aldir Blanc, arrolando canções tão bem sucedidas - especialmente as alçadas ao céu da boca de Elis Regina - que um desavisado poderia confundir com uma coletânea o que é um disco de estúdio (seu 2°). Para aumentar ainda mais a cotação da bolacha, um time de instrumentistas fenomenais que inclui Dino "sete cordas", Neco no cavaquinho, Toninho Horta e Hélio Belmiro revezando nas guitarras, Luizão no baixo, Paschoal Meirelles na bateria, Doutor, Chico Batera, e além de tocar piano, arranjando e regendo, César Camargo Mariano. Cada canção e cada detalhe desse disco merecem comentários, análises, apreciações, pareceres, mas como é carnaval, façamos a festa!

 

26 de março de 2014

Música popular e memória I

Nesta data querida, como outra qualquer poderia ser, o Massa Crítica MPB completa 30 mil acessos. Como já escrevi em tantas ocasiões, sei que isso na internet não é nem de longe alguma coisa. Mas para mim, que edito o blog quando posso (e, às vezes, quando não posso) vale bastante saber que estou produzindo e eventualmente difundindo material sobre algo que ocupa lugar central no meu cotidiano e simultaneamente representa um patrimônio cultural digno de ser apropriado pelo maior número de pessoas: a música popular. É uma atividade extracurricular, digamos assim, e ainda estudo meios de compatibilizá-la melhor com a minha rotina acadêmica. Há tempos estudo formas de movimentar mais o blog e os planos continuam surgindo, e também sendo adiados até segunda ordem, mas finalmente ontem me apareceu um texto que trouxe à tona uma ideia que andava meio afogada. 
Estreia hoje a série "Música popular e memória", em que autores convidados,das mais diversas formações e estilos, abordarão periodicamente em textos personalíssimos um tema que nos afeta de maneira indiscutível, inapelável. 
Para o primeiro prato do banquete que espero oferecer por meio dos ilustríssimos que por aqui passarão, só poderia chamar alguém afeito à culinária das letras, um historiador com vocação para o argumento, até recentemente colunista do site BHaz e atualmente "gerente" (junto com o colega historiador Matheus Machado) do blog O Mexidão [acesse aqui], com textos de opinião, ensaios, sátiras, enfim o nome já diz tudo. Admiro a escrita do Pedro desde os tempos em que trabalhamos juntos num projeto de pesquisa na FAFICH, anos atrás. Sem mais, com vocês...

Música popular e memória I, por Pedro Munhoz 

Meu avô, um comunista nascido em Santos, filho de espanhóis, com traços deveras anarcóides, vive até hoje, mesmo depois de devidamente morto, a me matar de saudades. O mau humor do velho não permitia a ele assumir que gostava de muitas músicas (especialmente as americanas), embora eu saiba hoje, sem muito de sua ajuda, que ele era, além de garçom, comunista e portador de um mau-humor interessante (que eu gosto de pensar que herdei), um bom trumpetista.

Eu tentei a sorte com o saxofone no finzinho de minha adolescência. Não funcionou. Meus pais me compraram o instrumento para que eu abandonasse o cigarro. A senha deles era o fascínio que eu tinha pelo sax, instrumento muito parecido com a voz humana e que, no entanto, nada diz de inteligível: ele geme, e no seu gemer, entendemos suas querências, sem, paradoxalmente, entendê-las.

Dei meu sax de presente de casamento para o Flavio Pimenta e, até hoje, espero ter a oportunidade de vê-lo fazendo do meu Yamaha melhor uso do que eu.

Fato é que decidi continuar fumando como uma chaminé e, por conta disso, fui desistindo do sax. E decidi continuar ouvindo jazz, principalmente porque eu preciso de saxofones e trumpetes berrando no meu ouvido enquanto eu tento pensar,

Hoje eu ouvi essa música. Já tinha ouvido essa música antes, mas pelo simples fato de ela se chamar "Valsa do avô", me lembrei do velho Olympio. Lembrei das revistas anarquistas que ele me cedia às escondidas de meu pai, seu filho, um reacionário de bom coração. Lembrei-me de sua alegria quando, depois de deixar o Colégio Militar, passei a beber no bar onde ele atendia e, assim acabei o conhecendo melhor. Lembrei-me, em suma, da minha vida, da minha formação torta e do papel crucial que meu avô desempenhou nessa quase missão.

Sou grato a ele. Por isso, posto essa música, para a qual ele iria torcer o nariz, Mas é uma linda música de qualquer forma.


--\\//--

Me permito aqui um rápido acréscimo, pois foi irresistível a lembrança (!) de um tema que anda dando suas voltas pela minha cabeça nos últimos tempos - e aliás sempre que resolvo ouvir o disco em que figura essa gravação, que é Vô Alfredo (Guinga/Aldir Blanc), na versão instrumental de Cine Baronesa.

14 de maio de 2013

Aldir, simples e absurdo

O documentário "Aldir Blanc - dois pra lá, dois pra cá" , "(...) vencedor do 1° DocTv, traça uma biografia afetiva do compositor, poeta e cronista carioca Aldir Blanc, tendo como contexto a Zona Norte do Rio de Janeiro. Dirigido por André Sampaio, Zé Roberto de Morais e Alexandre Octavio Carvalho. Edição de Severino Dadá." (postado por Alexandre Otávio no You Tube).
Trata-se de um documentário muito bem realizado, sobre uma figura de proa da Música Popular Brasileira. Junto aos preciosos depoimentos do próprio Aldir, um desfile de personagens ímpares que marcam sua trajetória, incluindo aí seus principais parceiros João Bosco e Guinga. Aldir merece muito mais atenção por parte de quem conta a história da música popular desse país. Um letrista de achados, um observador do cotidiano, um intérprete do Brasil e de suas idiossincrasias, capaz de produzir pérolas atemporais que são simultaneamente diamantes brutos engastados no instante, no momento. Além de tudo destaco seu engajamento social e político, nas batalhas contra a ditadura, a censura, nas lutas autorais, nos debates políticos e culturais de modo mais amplo. Enfim, vale muito a pena assistir e conhecer um pouco mais esse cara simples e absurdo. 








11 de dezembro de 2012

Compatibilidade de gênios

Umas poucas vezes na História da Música Popular Brasileira ocorrem parcerias "siamesas", dessas que constituem uma obra toda, de modo que não conseguimos separar no imaginário os membros que acabam configurando um verdadeiro "ente". É nesse nível de compatibilidade de gênios que enquadro a dupla formada por João Bosco e Aldir Blanc, autores de canções memoráveis e figuras protagonistas do cenário cultural e político brasileiro, especialmente durante a década de 1970. Ao ver hoje algumas postagens no admirável Arquivos Vinis (quem quiser conhecer, recomendo essa página fantástica no Facebook) não resisti a furtar desse dia dedicado às correções de trabalhos alguns minutos para gravar aqui minha admiração pelos dois, aos quais gostaria de ter devotado mais atenção na minha tese, mas fica aí a sugestão para os navegantes que venham a singrar as "águas da Guanabara" da pesquisa sobre a MPB, eles merecem muito estudos de maior profundidade.

LP "Linha de Passe". João Bosco. RCA Victor. 1979. Arte de Mello Menezes.



Linha de Passe (João Bosco/ Paulo Emílio/ Aldir Blanc), com João Bosco e Yamandu Costa

20 de maio de 2012

Parabéns pra vocês - a canção popular e o aniversário

Inspirado pelo acontecimento de aniversários de várias pessoas queridas, especialmente meus filhos Maria Luiza (21/05) e João Paulo (30/05) resolvi fazer esse breve texto lembrando a relação entre a canção popular e a celebração do aniversário. A canção, por seus atributos mnemônicos, torna-se um veículo extremamente eficiente para tradições e valores instituídos e compartilhados socialmente. Nas festas de aniversário o momento de "cantar o parabéns" suspende todas as atividades em curso, instaurando um momento ímpar que culmina com as palmas que encerram a interrupção do tempo que se fez justamente para atribuir significado específico ao "fenômeno geral" de sua passagem. Esse canto compartilhado, que é pontuado muitas vezes de apropriações e improvisos (que podem variar de acordo com o perfil dos participantes ou a idade do aniversariante, por exemplo),  cria a sensação de partilha e comunhão entre os envolvidos. Isso faz com que se perceba essas canções como pertencentes ao domínio público, e é bastante curioso que justamente a mais difundida delas, o Parabéns a você/Happy Birthday to you não só tenha autoria determinada (foi criada pelas irmãs americanas Mildred e Patricia Smith Hill em 1875 como Good Morning to All, com outra letra) mas também sido alvo de controvérsia. No Brasil, em 1942, a rádio Tupi organizou um concurso para uma letra em português, vencido por Bertha Celeste Homem de Mello, que por sua vez foi reapropriada ao longo dos anos (para os curiosos, ver a história toda da canção aqui). Falando em autoria, o aniversário segue sendo inspiração para grandes cancionistas, abordado em diferentes enfoques e gêneros musicais. Assim, selecionei algumas canções para encerrar, desejando a todos um "feliz aniversário"!

Nessa data (J.Bosco/A. Blanc)
Feliz aniversário (L.Borges/R.Bastos)

31 de outubro de 2011

Série histórias de compositores - João Bosco

Inspirado no Projeto Songbook do meu grande parceiro Pablo Castro, estou iniciando uma série de postagens com histórias de compositores da música popular brasileira. Começo com esse trecho de entrevista em que João Bosco narra seu encontro com Vinícius de Moraes em Ouro Preto. Sempre chamou a atenção a receptividade da geração de Tom e Vinícius aos compositores da geração seguinte, como o próprio João Bosco, Chico, Milton, etc. Vale lembrar a estréia de João no "disco de bolso" do Pasquim, compacto simples em que a sua parceria com Aldir Blanc foi o outro lado de nada mais nada menos que a 1a. gravação de Tom para Águas de Março.

30 de outubro de 2011

Quando Mingus encontra o samba


Graças à magistral parceria de Guinga e Aldir Blanc, Mingus encontra o samba. Essa versão instrumental tem a assinatura do Marcus Tardelli, violonista de mão cheia discípulo do Guinga.

4 de março de 2011

Bosco e Blanc, protagonistas na luta autoral


Aproveitando o assunto "direitos autorais", depois de uma rápida passeadinha pelos arquivos da Folha (abertos por um breve período aos que não assinam), artigo publicado na Ilustrada em 05/02/1976 traz uma menção ao embate da dupla com a sociedade arrecadadora SICAM. (clique na imagem para ampliar).