Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

17 de abril de 2014

Música Popular e memória II

Dando sequência à série iniciada com o texto do Pedro Munhoz, convidei o compositor, autor de quadrinhos e pesquisador Rafael Senra. Seu texto, em suas próprias palavras [tão boas que o editor aqui não quis desperdiçar] "mescla o memorialismo descritivo e algum teor analítico", costurando sua trajetória biográfica às experiências sociais e sonoras no tempo. Na forma, me lembra um pouco uma série de ensaios de vários historiadores que curto muito, que se chamou "Ensaios de ego-história".
Deu pra sentir que é material do bom. Então sem mais delongas, Rafael Senra:

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Tenho confiança na veracidade da "colcha de retalhos" que é a minha memória, apesar de saber que boa parte das lembranças são sempre reescritas pela porção mais "malandra" da cabeça. Como se não bastasse, entre o vivido e o reinventado, existem as elaborações feitas a partir de depoimentos de outras pessoas. A grosso modo, entendo essas três diferentes operações como o processo pessoal de arquivamento da vida.



Dito isso, me volto para a proposta dessa série, de rememorar algumas experiências com (e sobre) música popular – só que o farei aqui de uma maneira talvez inusitada. De trás para a frente, subvertendo a gravidade evolutiva do ciclo cronológico, como naquela crônica do Chico Anysio em que o personagem nasce velho e morre menino.



Mesmo que não seja profissional, a minha relação com música atualmente tem uma dimensão teórica e outra prática. Em 2013, publiquei um livro chamado Dois Lados da Mesma Viagem, sobre a identidade de Minas Gerais na obra do Clube da Esquina. Tal obra não me fez mais rico, nem me levou ao Jô Soares, mas proporcionou que eu viajasse, conhecesse muita gente bacana, e divulgasse o resultado do meu estudo. Parafraseando meu "objeto de estudo", foi um livro que me deixou "com a roupa encharcada e a alma repleta de chão". Já a minha relação prática com a música é um pouco mais subjetiva, se resumindo a uma enorme gaveta lotada de composições diversas, com muitas letras e melodias. Tenho gravado várias delas em meu home-studio.

Presença ilustre de Fernando Brant no lançamento do livro Dois Lados da Mesma Viagem (2013), na Livraria Quixote (BH)


Apesar de continuar lidando com música, não tenho ambição de ser músico profissional, algo que já quis em outros tempos. Após defender o mestrado, cismei que ganharia a vida tocando violão em barzinho. Alguns amigos meus tinham e tem essa profissão, e eu achava que isso seria melhor que a burocrática carreira acadêmica que se anunciava.



 Cartaz de show, produzido pelo próprio autor.

 
Se minha relação com música hoje em dia é teórica num lado e prática no outro, é porque aprendi nos barzinhos que amar e fazer música são contas que nem sempre batem. Na minha curta carreira como músico de bar, enfrentei bravamente as madrugadas com alegria e fôlego, e creio que até fiz alguns olhos e ouvidos brilharem. Mas... 

As frustrações cresciam como mato. Ainda que meu repertório fosse popular, as pessoas pediam que eu tocasse material do infame sertanejo universitário. Fazia apresentações de três horas em média, sozinho, as vezes sem intervalo. Em alguns lugares, sequer me davam o que comer, muito menos transporte, e por várias vezes pagavam menos que o combinado. Já fiz shows longos por 50 reais, por 10 reais, já toquei de graça, já paguei para tocar. Ouvi desaforo de dono de bar, mais de uma vez, coisas por vezes mesquinhas e rancorosas. Percebi que o músico pertence ao lado fraco da predatória cadeia do entretenimento regional. 

Show do projeto/banda Zastrados no festival Musiminas (BH), março de 2011.



Antes disso, tive bandas na época de faculdade, em São João del-Rei (MG), coisas consideradas mais cult – e aqui preciso fazer um parêntese: é engraçado como o erudito de ontem se torna o popular de hoje, e viceversa. Por exemplo, quando toquei bandolim em um grupo de chorinho, fui acusado por algumas pessoas de trair minhas raízes de músico popular. Como se o choro tivesse sido música das cortes reais ou da aristocracia européia na Idade Média... 



Sobre o "popular" de então, participei também de bandas de pop rock, mesmo no período da faculdade, e até antes. Poucas composições minhas deram o ar da graça nessas bandas. Tocar material autoral sempre representou algo meio que de resistência, como se o zeitgeist da minha geração fosse a lógica "Emerson Nogueira"; uma constante reciclagem de hits cristalizados no tempo, um eterno ruminar das enquetes radiofônicas dos tempos áureos da indústria fonográfica.                                     

  Banda Pedra da Lua, 2005.[esq.] Banda Vovó Manguaça ao vivo no Clube São Jorge, 2009. [dir.]
                                  
No entanto, quando ainda pensava em investir no trabalho autoral para valer, demorei a adequar minhas ambições aos novos tempos de mp3, pirataria e nichos de mercado. Sonhava anacrônico, hipnotizado com as histórias que lia sobre tantas bandas que alcançaram um alto patamar de respeito profissional. Os primeiros sites populares de internet (e, ainda antes, revistas como a Showbizz) narravam as lendas de artistas iluminados, recompensados pelo seu dom, ricos e adorados por milhões. Eu buscava a opulência e a fama dos dinossauros da música popular, acreditava ter o potencial para conquistar um lugar ao sol do inconsciente coletivo. Em 2001, tive uma banda onde as promessas que orbitavam eram grandes. Até nosso nome era divino: Mahadeva. Nossa formação lembrava o Abba, com dois homens e duas meninas lindas. O irmão do baterista tinha um estúdio, onde iríamos gravar nosso CD (e até gravamos uma composição antiga minha, chamada Som de Sonho). Vencemos um festival de música em nossa cidade. Tudo parecia grandioso. Mas a banda acabou tão rápido quanto começou. 
                          
Como guitarrista da banda Mahadeva, 2001.

O que fiz antes disso musicalmente era menos ambicioso, no sentido de se adequar a padrões radiofônicos e tentar algum tipo de sucesso comercial. Quando toquei com duas bandas de rock progressivo em Congonhas, a pretensão era sobretudo estética. Não saímos da garagem, mas realizamos um ímpeto pessoal, mais livre, um rito de amor ao som que ouvíamos em casa: Yes, Marillion, Genesis, Rush. O que nos faltava em técnica, sobrava em entusiasmo (e cabelos compridos!). Fui vocalista nas duas, decerto por falta de candidatos adequados. 
                                                             Com os amigos num show de rock em Conselheiro Lafaiete, 1998.


Mas na verdade, comecei minha vida de músico como baterista numa banda de pop rock chamada Alquimia. Tudo levava a crer que a percussão seria meu instrumento, mas tentei aprender violão com o objetivo de criar alguma noção melódica. Acabei largando as baquetas, e até hoje o violão se configura como meu instrumento seminal. A partir dele, vieram as primeiras tentativas de fazer música, e é a ele que devo o prazer lúdico da composição. Ter banda foi algo que surgiu pra mim só a partir dos 14 anos. Entre os 10 e os 14, fui apenas ouvinte. Nesses anos de acnes e revistas de mulher pelada, cunhei boa parte da base do que até hoje se configura como meu gosto musical: rock progressivo e pop rock principalmente (a paixão pela MPB viria forte só uns três anos depois). 

Homenageando os Beatles a caminho de uma festa à fantasia, anos 1990.
Nos anos 90, pré-internet, as pessoas formavam seus gostos a partir de rádio, TV e boca-a-boca. Era inevitável que eu me tornasse fã de rock progressivo. Começou quando fiquei fissurado num CD do Genesis que aluguei na locadora (será que meus netos vão acreditar que, no fim do século XX, se alugavam CDs?). Depois, fiquei obcecado com alguns clipes do Rush que passavam no programa Kliptonita. Na época da MTV, a canção Owner of a Lonely Heart do Yes virou quase um mantra pessoal. Ao longo dos anos, liguei os pontos e descobri que todos os artistas acima se situavam no mesmo estilo. 


Show do Yes no estacionamento do Minas Shopping (BH), 1998.
Mas o boom de curtir rock veio mesmo com Nirvana e Metallica, que era o que meus vizinhos de quarto ouviam no internato. Fechados naquele enorme colégio, éramos como que uma centena de irmãos, que trocavam dicas de sons através de fitas cassete, em meio à capina das hortas e as missas. Ainda no internato, peguei com o amigo Daniel Moreira o hábito de criar bandas e discos imaginários. Criei toda uma discografia para a banda fictícia Adaga, com várias capas heróicas e um repertório de títulos que incorporavam todo o léxico de um hiperativo menino de 10 anos de idade. 

Um dos primeiros shows tocando violão, festival sertanejo em Congonhas (MG), talvez 1998.

 
Na infância, lendo quadrinhos ao lado do pai.

Antes disso, na infância, não fui tão emocionalmente conectado com música (meu coração nessa época pertencia às histórias em quadrinhos). Mas já captava nuances que mais tarde influenciariam meu gosto. Recordo-me de um jogo de videogame chamado Strider, cuja trilha sonora era composta por melodias cheias de dissonâncias e sofisticação. Quando ouvi Emerson Lake and Palmer, anos depois, encontrei muita da magia que me emanava de trilhas como essas.



Mas minhas lembranças mais antigas com música remetem a uma das categorias que citei bem no início do texto, e sobre a qual falo com menos propriedade de rememorar – a das lembranças alheias. Minha mãe conta que, ainda muito guri, eu tinha todo um ritual com minha pequena coleção de vinis. Eu largava os brinquedos, ia até o som, pegava uma capa, tirando o disco cuidadosamente do plástico com as mãozinhas pequenas e gordinhas, o inseria na vitrola, adequava a agulha, e me sentava ao lado, com pose de gente grande.



Devem haver outras histórias, enterradas nessa cronologia que apresento às avessas, mas deixo tais ruínas para o anjo que Walter Benjamin avistou na pintura de Paul Klee, voando de costas para o presente, enquanto enxerga atrás (ou na frente) de si "tanta coisa ainda por dizer". Mas confesso que, entre o menininho habil no manuseio da vitrola e o homem barbudo que pesquisa e compõe música, existe uma calorosa e bela colcha de retalhos.

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