Dando sequência à série iniciada com o texto do Pedro Munhoz, convidei o compositor, autor de quadrinhos e pesquisador Rafael Senra. Seu texto, em suas próprias palavras [tão boas que o editor aqui não quis desperdiçar] "mescla o memorialismo descritivo e algum teor analítico", costurando sua trajetória biográfica às experiências sociais e sonoras no tempo. Na forma, me lembra um pouco
uma série de ensaios de vários historiadores que curto muito, que se
chamou "Ensaios de ego-história".
Deu pra sentir que é material do bom. Então sem mais delongas, Rafael Senra:
--\\//--
Tenho
confiança na veracidade da "colcha de retalhos" que é a minha
memória, apesar de saber que boa parte das lembranças são sempre reescritas
pela porção mais "malandra" da cabeça. Como se não bastasse, entre o
vivido e o reinventado, existem as elaborações feitas a partir de depoimentos
de outras pessoas. A grosso modo, entendo essas três diferentes operações como
o processo pessoal de arquivamento da vida.
Dito
isso, me volto para a proposta dessa série, de rememorar algumas experiências
com (e sobre) música popular – só que o farei aqui de uma maneira talvez
inusitada. De trás para a frente, subvertendo a gravidade evolutiva do ciclo
cronológico, como naquela crônica do Chico Anysio em que o personagem nasce
velho e morre menino.
Mesmo
que não seja profissional, a minha relação com música atualmente tem uma
dimensão teórica e outra prática. Em 2013, publiquei um livro chamado Dois
Lados da Mesma Viagem, sobre a identidade de Minas Gerais na obra do Clube
da Esquina. Tal obra não me fez mais rico, nem me levou ao Jô Soares, mas
proporcionou que eu viajasse, conhecesse muita gente bacana, e divulgasse o
resultado do meu estudo. Parafraseando meu "objeto de estudo", foi um
livro que me deixou "com a roupa encharcada e a alma repleta de
chão". Já a minha relação prática com a música é um pouco mais subjetiva,
se resumindo a uma enorme gaveta lotada de composições diversas, com muitas
letras e melodias. Tenho gravado várias delas em meu home-studio.
Presença ilustre de Fernando Brant no lançamento do livro Dois Lados da Mesma Viagem (2013), na Livraria Quixote (BH)
Apesar
de continuar lidando com música, não tenho ambição de ser músico profissional,
algo que já quis em outros tempos. Após defender o mestrado, cismei que
ganharia a vida tocando violão em barzinho. Alguns amigos meus tinham e tem
essa profissão, e eu achava que isso seria melhor que a burocrática carreira
acadêmica que se anunciava.
Cartaz de show, produzido pelo próprio autor.
Se
minha relação com música hoje em dia é teórica num lado e prática no outro, é
porque aprendi nos barzinhos que amar e fazer música são contas
que nem sempre batem. Na minha curta carreira como músico de bar, enfrentei
bravamente as madrugadas com alegria e fôlego, e creio que até fiz alguns olhos
e ouvidos brilharem. Mas...
As
frustrações cresciam como mato. Ainda que meu repertório fosse popular, as
pessoas pediam que eu tocasse material do infame sertanejo universitário. Fazia
apresentações de três horas em média, sozinho, as vezes sem intervalo. Em
alguns lugares, sequer me davam o que comer, muito menos transporte, e por
várias vezes pagavam menos que o combinado. Já fiz shows longos por 50 reais,
por 10 reais, já toquei de graça, já paguei para tocar. Ouvi desaforo de dono
de bar, mais de uma vez, coisas por vezes mesquinhas e rancorosas. Percebi que
o músico pertence ao lado fraco da predatória cadeia do entretenimento
regional.
Antes
disso, tive bandas na época de faculdade, em São João del-Rei (MG), coisas
consideradas mais cult – e aqui preciso fazer um parêntese: é engraçado
como o erudito de ontem se torna o popular de hoje, e viceversa. Por exemplo,
quando toquei bandolim em um grupo de chorinho, fui acusado por algumas pessoas
de trair minhas raízes de músico popular. Como se o choro tivesse sido música
das cortes reais ou da aristocracia européia na Idade Média...
Sobre
o "popular" de então, participei também de bandas de pop rock, mesmo
no período da faculdade, e até antes. Poucas composições minhas deram o ar da
graça nessas bandas. Tocar material autoral sempre representou algo meio que de
resistência, como se o zeitgeist da minha geração fosse a lógica
"Emerson Nogueira"; uma constante reciclagem de hits cristalizados no
tempo, um eterno ruminar das enquetes radiofônicas dos tempos áureos da
indústria fonográfica.
No
entanto, quando ainda pensava em investir no trabalho autoral para valer,
demorei a adequar minhas ambições aos novos tempos de mp3, pirataria e nichos
de mercado. Sonhava anacrônico, hipnotizado com as histórias que lia sobre
tantas bandas que alcançaram um alto patamar de respeito profissional. Os
primeiros sites populares de internet (e, ainda antes, revistas como a Showbizz)
narravam as lendas de artistas iluminados, recompensados pelo seu dom, ricos e
adorados por milhões. Eu buscava a opulência e a fama dos dinossauros da música
popular, acreditava ter o potencial para conquistar um lugar ao sol do
inconsciente coletivo. Em
2001, tive uma banda onde as promessas que orbitavam eram grandes. Até nosso
nome era divino: Mahadeva. Nossa formação lembrava o Abba, com dois homens e
duas meninas lindas. O irmão do baterista tinha um estúdio, onde iríamos gravar
nosso CD (e até gravamos uma composição antiga minha, chamada Som de Sonho).
Vencemos um festival de música em nossa cidade. Tudo parecia grandioso. Mas a
banda acabou tão rápido quanto começou.
Como guitarrista da banda Mahadeva, 2001.
O
que fiz antes disso musicalmente era menos ambicioso, no sentido de se adequar
a padrões radiofônicos e tentar algum tipo de sucesso comercial. Quando toquei
com duas bandas de rock progressivo em Congonhas, a pretensão era sobretudo
estética. Não saímos da garagem, mas realizamos um ímpeto pessoal, mais livre,
um rito de amor ao som que ouvíamos em casa: Yes, Marillion, Genesis, Rush. O
que nos faltava em técnica, sobrava em entusiasmo (e cabelos compridos!). Fui
vocalista nas duas, decerto por falta de candidatos adequados.
Com os amigos num show de rock em Conselheiro Lafaiete, 1998.
Mas
na verdade, comecei minha vida de músico como baterista numa banda de pop rock
chamada Alquimia. Tudo levava a crer que a percussão seria meu instrumento, mas
tentei aprender violão com o objetivo de criar alguma noção melódica. Acabei
largando as baquetas, e até hoje o violão se configura como meu instrumento
seminal. A partir dele, vieram as primeiras tentativas de fazer música, e é a
ele que devo o prazer lúdico da composição. Ter
banda foi algo que surgiu pra mim só a partir dos 14 anos. Entre os 10 e os 14,
fui apenas ouvinte. Nesses anos de acnes e revistas de mulher pelada, cunhei
boa parte da base do que até hoje se configura como meu gosto musical: rock
progressivo e pop rock principalmente (a paixão pela MPB viria forte só uns
três anos depois).
Homenageando os Beatles a caminho de uma festa à fantasia, anos 1990.
Nos
anos 90, pré-internet, as pessoas formavam seus gostos a partir de rádio, TV e
boca-a-boca. Era inevitável que eu me tornasse fã de rock progressivo. Começou
quando fiquei fissurado num CD do Genesis que aluguei na locadora (será que
meus netos vão acreditar que, no fim do século XX, se alugavam CDs?). Depois,
fiquei obcecado com alguns clipes do Rush que passavam no programa Kliptonita.
Na época da MTV, a canção Owner of a Lonely Heart do Yes virou quase um
mantra pessoal. Ao longo dos anos, liguei os pontos e descobri que todos os
artistas acima se situavam no mesmo estilo.
Show do Yes no estacionamento do Minas Shopping (BH), 1998.
Mas
o boom de curtir rock veio mesmo com Nirvana e Metallica, que era o que
meus vizinhos de quarto ouviam no internato. Fechados naquele enorme colégio,
éramos como que uma centena de irmãos, que trocavam dicas de sons através de
fitas cassete, em meio à capina das hortas e as missas. Ainda no internato,
peguei com o amigo Daniel Moreira o hábito de criar bandas e discos
imaginários. Criei toda uma discografia para a banda fictícia Adaga, com várias
capas heróicas e um repertório de títulos que incorporavam todo o léxico de um
hiperativo menino de 10 anos de idade.
Um dos primeiros shows tocando violão, festival sertanejo em Congonhas (MG), talvez 1998.
Na infância, lendo quadrinhos ao lado do pai.
Antes
disso, na infância, não fui tão emocionalmente conectado com música (meu
coração nessa época pertencia às histórias em quadrinhos). Mas já captava
nuances que mais tarde influenciariam meu gosto. Recordo-me de um jogo de
videogame chamado Strider, cuja trilha sonora era composta por melodias
cheias de dissonâncias e sofisticação. Quando ouvi Emerson Lake and Palmer,
anos depois, encontrei muita da magia que me emanava de trilhas como essas.
Mas
minhas lembranças mais antigas com música remetem a uma das categorias que
citei bem no início do texto, e sobre a qual falo com menos propriedade de
rememorar – a das lembranças alheias. Minha mãe conta que, ainda muito guri, eu
tinha todo um ritual com minha pequena coleção de vinis. Eu largava os
brinquedos, ia até o som, pegava uma capa, tirando o disco cuidadosamente do
plástico com as mãozinhas pequenas e gordinhas, o inseria na vitrola, adequava
a agulha, e me sentava ao lado, com pose de gente grande.
Devem
haver outras histórias, enterradas nessa cronologia que apresento às avessas,
mas deixo tais ruínas para o anjo que Walter Benjamin avistou na pintura de
Paul Klee, voando de costas para o presente, enquanto enxerga atrás (ou na
frente) de si "tanta coisa ainda por dizer". Mas confesso que, entre
o menininho habil no manuseio da vitrola e o homem barbudo que pesquisa e
compõe música, existe uma calorosa e bela colcha de retalhos.
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