Aproveitando o ensejo do lançamento do disco Pra quem está vivo (2016) [aqui uma boa resenha pra começar a conhecer], do parceiro Raul Mariano, vou contar aqui um pouco da feitura de Reinvento, canção que abre o álbum.
Penso sempre em como vou começar esses textos a partir de um ponto diferente, quase como se eu lançasse uma isca para meus dedos perseguirem, como peixinhos famintos nadando no mar de teclas, em busca da próxima palavra. Tentei lembrar então de como surgiu a proposta para fazer a letra para o B da canção, recorrendo ao arquivo do momento, um certo facebook. Uma ferramenta que às vezes absorve muito além da conta, mas que tem desdobramentos interessantes e imprevistos também. Uma conversa trivial, um assunto imediato, acabam registrados e eventualmente escapam assim do esquecimento. Era o final de outubro do ano passado. Raul no embalo da produção do disco, buscando burilar aqui ali uma ou outra coisa, e naquele momento tínhamos concluído uma primeira parceria, Cidade de aço, uma letra minha de tempos atrás que acabou encontrando um ótimo destino nas mãos dele, e da qual certamente falarei futuramente. Enquanto vejo, com muita empolgação, crescer o meu número de parceiros, sinto que uma primeira canção bem sucedida é o pontapé necessário pra coisa engrenar. Para o letrista, entendo que é preciso encontrar a sintonia de cada parceiro, encontrar um vocabulário comum para expressar ideias e emoções, realizar escolhas estéticas. Acho que contam muito as referências compartilhadas, as indicações que um vai fazendo ao outro, e também a descoberta de afinidades para além da música.
Não posso deixar de mencionar que conheci o Raul através da Mostra Cantautores edição 2013 e de tabela dizer que esse tipo de iniciativa é fundamental também por promover esse encontro entre os compositores. Se apreciei de cara o trabalho dele, penso que foi basicamente por 3 motivos: o reconhecimento do traço próprio que ele intenta imprimir às canções que faz, o fato de que ao fazê-lo deixa também entrever referências de sua formação que me apetecem muito, como Beatles e Clube da Esquina, e por fim o que eu chamaria de flerte saudável com a radiofonia, o entendimento de que o gesto autoral não é de todo incompatível com a ambição de atingir um público maior e se acomodar a uma programação que é industrial, massificada, mesmo que assuma uma roupagem alternativa.
Depois dessa ré, vou retomar o fio da narrativa. O Raul então me pediu um "socorros costa"*. Logo que topei ele me mandou uma síntese do conceito gerador da canção:
"Trata-se de uma canção que fala sobre o gesto de cantar. A força da voz enquanto instrumento propagador de ideias. Alguém que canta falando para sua própria voz "cumprir sua missão" ou algo assim."
Falamos mais um pouco sobre a forma e ele me mandou o que já havia feito da letra. Aparentemente a tarefa de arrematar algo tão encaminhado é fácil. É só seguir a linha, sem complicar - e de fato foi coisa de uns dois dias. Mas é preciso encontrar uma porta de entrada, e um jeito de andar pela casa em fase final de arrumação, sem tirar os móveis que estão no lugar. Decidi, ainda na conversa, que entraria pelas citações, ensejadas pelo mote da influência do Clube da Esquina, bem explicitada na retomada do verso de Brant "meu caminho é de pedra". Tarefa determinada e foi pintando aquela sensação boa da urgência de criar. Tinha a motivação extra do disco com as gravações em andamento. Resolvi então colocar o áudio que o parceiro mandara no celular, pra ouvir onde estivesse e ir deixando a melodia me impregnar. Um meio que ainda não tinha usado. Acabei levando papel e caneta pro clube na manhã seguinte, e resolvi por ali, ouvindo com fone e anotando. Foi catando as citações, escolhendo a de Cais "e se lançar" e de Contos da Lua Vaga "a lição sabemos de cór", combinando sem medo de ser feliz com o vocabulário e as imagens mais óbvias para falar de criação e composição. Embarquei sem culpa na visão do processo criativo como combinação do intuitivo, do que se sabe sem intelecção, e do fio consciente da razão que alinhava os impulsos, que arruma a trama. Confesso que quando mais novo devo ter tido um apego maior à vontade de 'gastar' na letra, de encher de referências, citações, de rebuscar. Um dia enquanto eu fazia minha pesquisa eu vi (ou li, estou em dúvida) uma entrevista do Ronaldo Bastos em que ele falava de "emburrecer" a letra de música, no sentido da busca da simplicidade crua, transparente. Se ainda não cumpri plenamente esse ideal, tem hora que ele me compele bastante. Taco lá um 'coração', um 'luz solar', e fico tranquilo. Senti com grande convicção a completude do resultado, acima de tudo porque o que eu escrevi queria atender a proposta do Fernando Brant em Vevecos, panelas e canelas, "Queria fazer agora uma canção alegre/ Brincando com palavras simples, boas de cantar.".
Reinvento (música de Raul Mariano, letra de Raul Mariano e Luiz Henrique Garcia)
Vai minha voz, abre os caminhos que esse mundo tem
Deve haver tanta resposta
quero saber sobre essa força que me leva além
redescobrir minhas verdades
Se perguntar ao coração
quem poderá deter?
A invenção da luz solar
o impulso de criar
e se lançar
quem poderá deter?
A invenção da luz solar
o impulso de criar
e se lançar
Vai minha voz, protege o sonho, guarda a ilusão
já atravessei esse planeta
sigo essa trilha há tanto tempo, sei a direção
meu caminho é de pedra e canção
Saber de cór essa lição
do rumo que eu tomei
fio e razão pra alinhavar
a trama de compor
por onde for... passar
do rumo que eu tomei
fio e razão pra alinhavar
a trama de compor
por onde for... passar
* Pra quem não conhece essa expressão clubesquinística, refere-se à prática adotada por letristas do Clube de dar contribuições a letras já iniciadas por outro membro do grupo, e que empresta o nome de uma companhia de reboques que atuava em Belo Horizonte.
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