Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

13 de agosto de 2016

"Morreu na contramão, atrapalhando o sábado" - aula de canção: Construção (Chico Buarque)


O escritor Ítalo Calvino escreveu em "Por que ler os clássicos" que o que faz de um livro um clássico essencialmente é sua atualidade, ou seja, sua capacidade de representar um reservatório constantemente reaproveitável de significado capaz de adquirir sentido em tempo e lugar muito diversos daqueles em que ganhou o mundo. O mesmo há de valer para os discos, mas, talvez ainda mais, para as canções. Até porque no caso delas se apresenta de forma ímpar, evidente, o mecanismo da 'releitura', já que além da possível continuidade de circulação, consumo e reapropriação da primeira gravação que recebeu, uma canção - no contexto histórico da fonografia especialmente - pode ser regravada em versões as mais diversas. Multiplica-se exponencialmente seu potencial de correr de boca em boca, de soar alto pelos palcos e botecos, de ir pelos mares, terras e ares até ouvidos inimaginavelmente distantes daqueles que tiverem sido os primeiros a ouvi-la. Paradoxalmente, claro que essa lógica industrial também destina boa parte de tudo isso à vala da efemeridade e do esquecimento quase instantâneo, e por uma série de razões - que teremos que deixar para explorar em outra postagem - a maior parte das canções, em quaisquer de suas reencarnações, não se tornam 'clássicos'.
Mas esse é certamente o caso de Construção (do LP homônimo de 1971), uma das obras-primas do cancioneiro de Chico Buarque. Recentemente ela marcou presença, em versão instrumental, na cerimônia de abertura dos  Jogos Olímpicos Rio 2016 [completo aqui]. Sua execução acompanha o cenário de industrialização e urbanização do país, narrada com auxílio de uma coreografia que inclui movimentos de parkour e escalada. A princípio eu me surpreendera ao ler que essa canção faria parte do programa de abertura, pois claramente ela ergue num patamar uma das mais emblemáticas representações do Brasil moderno, exposto com crueza e precisão formal em toda sua imensa contradição. Como me interessa enfatizar a reapropriação não pretendo me alongar numa análise que já encontrou tantos bons intérpretes por essas décadas em que existe a canção. Já foi deslindada a precisão da armação dos andaimes musicais, da fundação harmônica que é tensão em ferro ao arranjo denso e sombrio de Duprat, do jogo formal e lúdico de montar a letra como se fosse lógica ao balanço à beira da queda fatal que encerra sua análise social e psicológica. Construção é o Brasil que ergue e cai, épico e trágico. E nas olimpíadas, se num primeiro momento a sociedade do desempenho parece só ter olhos para a glória e o alto do pódio, é bom lembrar que também a desgraça sempre tem seu lugar na história, e agora o sangue, o suor, a lágrima e a queda encontram também o batalhão de câmeras e vozes empostadas à postos para narrar a derrota como se fosse outra versão da vitória, tão ou mais desejável objeto de consumo. 
Espera-se, tradicionalmente, que a abertura seja o desfile alegre de um povo contente, atropelando indiferente qualquer versão dissonante de história nacional que porventura atente aos percalços. As mazelas, as desgraças, a carniça, aos historiadores. O resplendor solar, aos espectadores. Em vários momentos da cerimônia sente-se uma coisa nem lá nem cá, um meio-termo, em que as eventuais arestas eram aparadas ao ponto de quase não se mostrarem. Nada deve ter sido mais grave, nesse sentido, do que a encenação do encontro entre portugueses, indígenas e africanos escravizados apresentados no início, em que o conflito se resumiu a uma ou outra cara feia que só closes brevíssimos vieram revelar, e que a violência do chicote resumiu-se a pontilhados sonoros desprovidos de qualquer emissor concreto. A opção por apresentar Construção em arranjo instrumental me parece ter ido nesse mesmo sentido de apresentar a história apaziguada. É como se o veneno e o remédio da canção, em tudo que ela dói e espreme na gente, fossem habilmente extraídos e higienizados, como quando se faz a vacina com variedades enfraquecidas dos agentes infecciosos. O final, sintomaticamente anacrônico, em que os tijolos da construção derrubados revelam o 14bis de Santos Dummond - afirmação positiva e válida de nosso engenho, mas perniciosa se for lida como demonstração de uma nação construída que deu certo.  
Mas penso, para concluir, que canções como Construção são indomáveis e não podem ser transformadas em injeções de ânimo desavisado ou dose de óleo de rícino. Estão aí pra nos tirar do prumo, pra atrapalhar o tráfego, e até pra me botar pra escrever no sábado. Aliás, parar para qualquer coisa e interromper esse trânsito da insensibilidade torna-se necessidade e modo de sobrevivência, quando lemos que um senhor de 91 anos, abalroado por um motociclista, "morreu na contramão, atrapalhando o sábado".








Construção (C. Buarque)


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

7 de agosto de 2016

Né qualquer um que consegue não: homenagem a Vander Lee

O falecimento do cantautor Vander Lee ontem (05/08) deixou a todos em choque, sentimento que se intensifica aqui em Belo Horizonte, sua terra natal . Uma perda para a música popular brasileira em geral e mineira em particular. Penso no papel que cabe a um blog como este nessas horas, devotado especialmente ao conhecimento, à apreensão, ainda que de variados ângulos, do que representa a música popular. Além, portanto, de homenageá-lo, senti que seria justo trazer algumas linhas sobre sua carreira e obra. Entretanto eu não queria que fosse nada como esses epitáfios de praxe, como os que os leitores poderão encontrar em portais de notícia e jornais de grande circulação [matéria completa]. Como tantas vezes ocorre, meu parceiro Pablo Castro produziu um texto à altura da tarefa e eu me senti incumbido a abrir espaço aqui:

"Que dia estranho ...
Acordar com a notícia da morte prematura e inesperada do Vander Lee ...
Ele era, de todos os mineiros cantores e compositores independentes, o mais bem sucedido, tinha público no país inteiro, cantava suas composições que tinham um pé no Brasil profundo, e nunca resvalavam para o popularesco, para o fácil, apelativo, ainda que estivesse sempre próximo do clichê radiofônico. Muito bom letrista, muito bom melodista, muito bom cantor, versátil, capaz de sambas, emboladas, toadas, baladas, tudo seguro na sua mirada.
Para além disso, era um de nós. Não encarnava nunca qualquer pretensão de superioridade advinda desse sucesso, não um sucesso estrondoso, espalhafatoso, mas um sucesso silencioso, enterrado nas raízes quase invisíveis do gosto popular. Na lida pessoal, um sujeito elegante, perspicaz, grande espirituosidade, ouvia e falava pouco mas com propriedade de todos os assuntos, com algumas pitadas enigmáticas.
Morávamos na mesma rua e ficamos de combinar umas violãozadas, mas não deu tempo.
Hoje passei a tarde no estúdio gravando vozes e mais vozes e pensando na extrema fugacidade que é esta profissão: fazer constructos tão abstratos mas capazes de ser tão resistentes, duradouros e ao mesmo tempo fugidios, as canções.
Há poucas semanas, dividimos um rochedão no Santa Tereza, ele, Telo Borges e eu. Lembro-me de pensar nessa trinca ali, um vencedor do Grammy, um cantautor do Brasil profundo mas que teimava em permanecer nessa estranha província, e eu, que nem sei me definir e cuja obra é insignificante, em vários aspectos, em comparação à deles. Mas estávamos ali na total informalidade, como amigos e partícipes de uma coisa maior. Tínhamos feito juntos uma viagem para a Itália, há muitos anos, no mesmo clima.
Essa coisa maior ficou maior ainda hoje, e nós perdemos um dos mais nobres contribuintes dessa coisa que poder-se-ia chamar música mineira.
Salve Vandeco Do Cavaco !!!" Por Pablo Castro

Se eu posso acrescentar alguma coisa, é apenas uma breve nota que ressalta aquilo que tem sido a tecla batida por todos os músicos da cena mineira com quem convivo na hora de apreciar a criação de Vander Lee - sua habilidade em produzir canções afinadas a certos traços do gosto popular sem deixar de lado a elaboração e o acabamento cuidadoso em música e letra, atingindo um equilíbrio possível que lhe permitiu alcançar um grande público, ter sucessos radiofônicos e ser gravado por grandes intérpretes, dentre as quais Gal, Bethânia e Elza Soares, que além de tudo o amadrinhou, tendo influência decisiva no andamento de sua carreira.
Escolhi dar à nota um tom pessoal, escolhendo falar de "Galo e Cruzeiro". Lembro a primeira vez que ouvi essa canção na tv, ele tocando em algum programa local, que nem deve existir mais. A simpatia pela canção foi imediata, um samba carismático, mas a letra é que realmente me chamou à atenção, cheia de achados e mesmo assim mantendo o apelo popular. Na condição de letrista, àquela altura tratando o ofício como algo que merecia o devido esmero, fiquei bem impressionado com a habilidade dele em combinar os universos semânticos da rivalidade futebolística e do relacionamento amoroso sem cair em lances desgastados ou "tocar de lado". Sua desenvoltura em acionar o vocabulário do cotidiano, cozido numa espécie de comédia de costumes, tem um poderoso efeito que é o de desenrolar a narração da partida com imensa fluência e naturalidade. Esperamos certas palavras e situações, e elas aparecem mesmo. Simultaneamente, há dribles mais desconcertantes, passes em profundidade, ou um sutil toque de calcanhar, como quando ele brinca com as palavras em "ela é quem bota fogo" que também remetem ao nome de um famoso clube de futebol, Botafogo. Um toque magistral é a comparação de "status de relacionamento" do eu lírico da canção com o posicionamento do jogador em campo, em    "Caí de centro-avante, pra médio-volante, agora sou zagueiro", cujo sentido depende da compreensão de nossa cultura futebolística, que define uma hierarquia simbólica em que o ataque é privilegiado sobre a defesa. E, por fim, com muita visão de jogo, ele brinca com o mascote de seu próprio clube do coração, o Atlético, deixando para a rival amada cruzeirense o papel dominante no espaço em que se dá o certame amoroso, invertendo a figuração recorrente do imaginário futebolístico belorizontino em "Ela fala, eu me calo, ela canta de galo lá no meu terreiro". Isso, pra quem de fato vivencia e reconhece essa rivalidade intestina, tem grande efeito para dar sentido à intensidade do relacionamento de que a canção trata.  Em súmula, tudo isso sem perder o gingado, tocando massivamente no AM e no FM.
Né qualquer um que consegue não.



Minha Preta não fala comigo
desde primeiro de janeiro
Ela me deu a mala eu fui dormir na sala,
fiquei sem dinheiro
Não tem mais feijoada, nem vaca atolada,
rabada ou tropeiro
Já fez greve de cama diz que não me ama,
quebrou meu pandeiro
Na hora do cruzamento, ela deu impedimento
ou falta no goleiro
Pra aumentar meu tormento, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro


Com o gol anulado, saí do gramado,
voltei pro chuveiro
Isso tudo porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro


Caí de centro-avante, pra médio-volante,
agora sou zagueiro
No último domingo ela foi jogar bingo
e eu fiquei de copeiro
Ela fala, eu me calo, ela canta de galo
lá no meu terreiro
Ela apita esse jogo, ela é quem bota fogo
no nosso palheiro
Ela finge que não, mas no seu coração
ainda sou artilheiro
Só faz isso porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro


Ela finge que não, mas no seu coração
ainda sou artilheiro
Só faz isso porque, meu irmão,
eu sou Galo e ela é Cruzeiro
 

6 de agosto de 2016

De nome e de alma, Discos Marcus Pereira

Um lampejo, um oásis dedicado a fazer o registro fonográfico de diferentes vertentes da música popular produzida no Brasil, especialmente aquela de marcado traço regional e que não encontrava nas gravadoras que dominavam o mercado brasileiro o espaço merecido. Foi isso que representou a Marcus Pereira Discos entre 1974-1981 [aqui uma boa matéria sobre]. Seu criador pôs o nome e a alma nela, e assim fazendo realizou um grande serviço ao patrimônio cultural musica deste país. Que satisfação imensa encontrar, organizado num canal do You Tube, todo o catálogo dessa gravadora pioneira e fundamental para a história da nossa música popular. Caros leitores e leitoras, bom proveito!

1 de agosto de 2016

O primeiro grande show beneficente faz 45 anos - Concerto para Bangladesh

Há tempos penso em criar uma série compartilhando impressões e material sobre shows de música popular que marcaram época, e eventualmente os que eu mesmo assistir ou que seja resenhado por colunista convidado. Ainda não sei qual a forma definitiva, mas pensei em aproveitar a efeméride para começar pelo Concerto para Bangladesh, pioneira iniciativa de fazer um grande concerto de música popular para arrecadar fundos em apoio a uma causa humanitária. George Harrison inclusive compôs a canção de nome "Bangla Desh" para narrar como o apelo de seu amigo e mestre musical, o sitarista Ravi Shankar, lhe inspirou a realizar tal concerto, para o qual convidou grandes nomes da música popular anglófona, incluindo Bob Dylan, Eric Clapton, Ringo Starr, Billy Preston e Leon Russell, entre outros. Certamente a maior performance ao vivo de Harrison após o fim dos Beatles, realizada no momento de pico artístico em sua carreira, após o lançamento do álbum triplo All things must pass e o sucesso do single My Sweet Lord. 


Incorporei a playlist abaixo com muito material do show, infelizmente não há um vídeo único com o show na íntegra circulando livremente: