O escritor Ítalo Calvino escreveu em "Por que ler os clássicos" que o que faz de um livro um clássico essencialmente é sua atualidade, ou seja, sua capacidade de representar um reservatório constantemente reaproveitável de significado capaz de adquirir sentido em tempo e lugar muito diversos daqueles em que ganhou o mundo. O mesmo há de valer para os discos, mas, talvez ainda mais, para as canções. Até porque no caso delas se apresenta de forma ímpar, evidente, o mecanismo da 'releitura', já que além da possível continuidade de circulação, consumo e reapropriação da primeira gravação que recebeu, uma canção - no contexto histórico da fonografia especialmente - pode ser regravada em versões as mais diversas. Multiplica-se exponencialmente seu potencial de correr de boca em boca, de soar alto pelos palcos e botecos, de ir pelos mares, terras e ares até ouvidos inimaginavelmente distantes daqueles que tiverem sido os primeiros a ouvi-la. Paradoxalmente, claro que essa lógica industrial também destina boa parte de tudo isso à vala da efemeridade e do esquecimento quase instantâneo, e por uma série de razões - que teremos que deixar para explorar em outra postagem - a maior parte das canções, em quaisquer de suas reencarnações, não se tornam 'clássicos'.
Mas esse é certamente o caso de Construção (do LP homônimo de 1971), uma das obras-primas do cancioneiro de Chico Buarque. Recentemente ela marcou presença, em versão instrumental, na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016 [completo aqui]. Sua execução acompanha o cenário de industrialização e urbanização do país, narrada com auxílio de uma coreografia que inclui movimentos de parkour e escalada. A princípio eu me surpreendera ao ler que essa canção faria parte do programa de abertura, pois claramente ela ergue num patamar uma das mais emblemáticas representações do Brasil moderno, exposto com crueza e precisão formal em toda sua imensa contradição. Como me interessa enfatizar a reapropriação não pretendo me alongar numa análise que já encontrou tantos bons intérpretes por essas décadas em que existe a canção. Já foi deslindada a precisão da armação dos andaimes musicais, da fundação harmônica que é tensão em ferro ao arranjo denso e sombrio de Duprat, do jogo formal e lúdico de montar a letra como se fosse lógica ao balanço à beira da queda fatal que encerra sua análise social e psicológica. Construção é o Brasil que ergue e cai, épico e trágico. E nas olimpíadas, se num primeiro momento a sociedade do desempenho parece só ter olhos para a glória e o alto do pódio, é bom lembrar que também a desgraça sempre tem seu lugar na história, e agora o sangue, o suor, a lágrima e a queda encontram também o batalhão de câmeras e vozes empostadas à postos para narrar a derrota como se fosse outra versão da vitória, tão ou mais desejável objeto de consumo.
Espera-se, tradicionalmente, que a abertura seja o desfile alegre de um povo contente, atropelando indiferente qualquer versão dissonante de história nacional que porventura atente aos percalços. As mazelas, as desgraças, a carniça, aos historiadores. O resplendor solar, aos espectadores. Em vários momentos da cerimônia sente-se uma coisa nem lá nem cá, um meio-termo, em que as eventuais arestas eram aparadas ao ponto de quase não se mostrarem. Nada deve ter sido mais grave, nesse sentido, do que a encenação do encontro entre portugueses, indígenas e africanos escravizados apresentados no início, em que o conflito se resumiu a uma ou outra cara feia que só closes brevíssimos vieram revelar, e que a violência do chicote resumiu-se a pontilhados sonoros desprovidos de qualquer emissor concreto. A opção por apresentar Construção em arranjo instrumental me parece ter ido nesse mesmo sentido de apresentar a história apaziguada. É como se o veneno e o remédio da canção, em tudo que ela dói e espreme na gente, fossem habilmente extraídos e higienizados, como quando se faz a vacina com variedades enfraquecidas dos agentes infecciosos. O final, sintomaticamente anacrônico, em que os tijolos da construção derrubados revelam o 14bis de Santos Dummond - afirmação positiva e válida de nosso engenho, mas perniciosa se for lida como demonstração de uma nação construída que deu certo.
Mas penso, para concluir, que canções como Construção são indomáveis e não podem ser transformadas em injeções de ânimo desavisado ou dose de óleo de rícino. Estão aí pra nos tirar do prumo, pra atrapalhar o tráfego, e até pra me botar pra escrever no sábado. Aliás, parar para qualquer coisa e interromper esse trânsito da insensibilidade torna-se necessidade e modo de sobrevivência, quando lemos que um senhor de 91 anos, abalroado por um motociclista, "morreu na contramão, atrapalhando o sábado".
Construção (C. Buarque)
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado