Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Mostrando postagens com marcador George Harrison. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador George Harrison. Mostrar todas as postagens

24 de março de 2020

Meu pequeno momento Raymond Williams com George Harrison


Meu caríssimo amigo Guilherme Lentz, um homem de Letras, e de Beatles, postou agorinha essa canção da fase solo de Harrison, Cockamamie Business. A letra é ótima. Deu na telha de tentar entender essa gíria. 



Diz o "sr. google" que veio de decalcomanie, portanto um empréstimo do francês. Sigo em frente para sacar que o negócio tem a ver com o uso do decalque como técnica pelos surrealistas. Procede. O mais provável é que do francês para o inglês, especialmente o das camadas populares, a palavra decalcomanie se modificou.E ainda tem um detalhe estatístico (o google deve estar usando os textos escritos digitalizados como base pra isso, imagino): o auge do emprego de "decalcomania" é nos anos 1950s (gráfico 1), e a curva ascendente do uso de "cockamamie" (com o sentido de implausível, ou como nós usamos às vezes "surreal") começa justo nos anos 1950 (gráfico 2).




Aproveito para recomendar esse útil e inspirador - como todos - livro de Williams, Palavras-chave. Devia ser 1998, pois já havia iniciado o mestrado e tinha ido à Unicamp entre outras coisas procurar para copiar alguns livros que não havia na biblioteca da Fafich da UFMG, um deles era o Keywords do Raymond Williams, e acabei encontrando também a edição inglesa do Costumes in common do Thompson, que não estava nos planos mas acabei xerocando um capítulo. O Palavras-chave é basicamente um dicionário de ciências humanas e sociais, recortando no léxico aquilo que seu autor, estudioso marxista da história da literatura e da cultura britânicas, chamava de vocabulário em "cultura e sociedade".

1 de agosto de 2016

O primeiro grande show beneficente faz 45 anos - Concerto para Bangladesh

Há tempos penso em criar uma série compartilhando impressões e material sobre shows de música popular que marcaram época, e eventualmente os que eu mesmo assistir ou que seja resenhado por colunista convidado. Ainda não sei qual a forma definitiva, mas pensei em aproveitar a efeméride para começar pelo Concerto para Bangladesh, pioneira iniciativa de fazer um grande concerto de música popular para arrecadar fundos em apoio a uma causa humanitária. George Harrison inclusive compôs a canção de nome "Bangla Desh" para narrar como o apelo de seu amigo e mestre musical, o sitarista Ravi Shankar, lhe inspirou a realizar tal concerto, para o qual convidou grandes nomes da música popular anglófona, incluindo Bob Dylan, Eric Clapton, Ringo Starr, Billy Preston e Leon Russell, entre outros. Certamente a maior performance ao vivo de Harrison após o fim dos Beatles, realizada no momento de pico artístico em sua carreira, após o lançamento do álbum triplo All things must pass e o sucesso do single My Sweet Lord. 


Incorporei a playlist abaixo com muito material do show, infelizmente não há um vídeo único com o show na íntegra circulando livremente:


20 de julho de 2016

Canções irmãs, compositores irmãos

Tempo de férias é tempo de dedicar um pouco mais de atenção ao blog. Tirar a poeira aqui e ali, arrumar links quebrados, pensar em novidades, retomar ideias que a falta de tempo não permitiu levar adiante. Enquanto isso vão pintando postagens sugeridas por conversas ou navegações internáuticas, como por exemplo o comentário que segue, do meu parceiro Pablo Castro, sobre as "canções irmãs".A curiosidade extra é que a inspiração foram canções compostas por compositores irmãos [o que pode vir a ser tema de outra postagem]. Obviamente a grande amizade entre parceiros ou companheiros de banda pode ser vista como uma forma de irmandade também, o que certamente é verdadeiro para todos os que estão mencionados no comentário:

"Lô e Márcio Borges fizeram uma espécie de sequência da balada Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, chamada Onde a Gente Está, com o mesmo tipo de abordagem.
Adoro canções irmãs. Os Beatles fizeram muitas vezes isso. George fez Here Comes The Sun e depois Here Comes the Moon, While My Guitar Gently Weeps e depois This Guitar Can´t Keep From Crying.
Paul fez Yesterday e depois Tomorrow, Blackbird e depois Bluebird. Caetano fez Você é Linda e depois Você é Minha. Gil foi além : Refazenda, Refavela, Rebento, Realce, e também Extra e Raça Humana. São canções irmanadas. São como côncavos e convexos. "


Lô Borges, Márcio Borges e Wanderson Eller em intervalo de show de Lô no Circo Voador. Rio de Janeiro, RJ - 1986. [Acervo Museu Clube da Esquina]

Acabei fazendo uma playlist com a maioria das citadas para acompanhar a leitura.


3 de julho de 2016

Suavemente (ainda) lamenta...

Acabei de ver um vídeo bem bonito produzido a partir da versão de While My Guitar Gently Weeps (Harrison) que foi produzida para o espetáculo Love do Cirque du Soleil. Na verdade trata-se de uma gravação originalmente apenas em voz, violão e órgão gravada por George, acrescida de um arranjo de cordas do agora saudoso George Martin (assistido por seu filho Giles), suave e lamentoso como pede o próprio título da canção.
Com mais altos que baixos, o legado dos Beatles tem sido perpetuado e mantido em circulação através de muitos projetos como esse, que exploram bem o potencial de sua obra para cativar novas gerações de ouvintes. As possibilidades de remixagem e outros artifícios da engenharia sonora têm propiciado várias opções para cumprir tal intento, particularmente desde o projeto Anthology. Essas verdadeiras "re-produções" atualizam as canções de uma forma diferente daquela que já era proposta pela versão por outros intérpretes, ou pelas execuções ao vivo. Neste caso, é a própria gravação em sua materialidade que é alvo da atualização. Mas toda essa parafernália me despertou na lembrança o grão de simplicidade que está no princípio da composição da canção, como foi relatada pelo próprio Harrison: 
"I wrote While My Guitar Gently Weeps at my mother's house in Warrington. I was thinking about the Chinese I Ching, the Book of Changes... The Eastern concept is that whatever happens is all meant to be, and that there's no such thing as coincidence - every little item that's going down has a purpose. While My Guitar Gently Weeps was a simple study based on that theory. I decided to write a song based on the first thing I saw upon opening any book - as it would be a relative to that moment, at that time. I picked up a book at random, opened it, saw 'gently weeps', then laid the book down again and started the song." George Harrison, Anthology
Assim, a pequena fagulha da criação foi acesa pela abertura ao acaso de um livro. O fato de haver um extenso material sobre o trabalho dos Beatles circulando por aí (apesar da última e lamentável providência de retirar suas composições originais do You Tube) pode instigar todo tipo de investigações e reflexões sobre seu processo criativo. Além do depoimento de George, também contamos com takes antigos e versões manuscritas da letra, em que constam mesmo muitos versos que não ficaram na versão definitiva registrada no Álbum Branco. Por exemplo esse "I look at my watch it was 1/4 to 4 (a quarter to four)" [olho pro meu relógio era quinze pras quatro] ou  os agora mais conhecidos (já que revelados na singela gravação que figurou no Anthology):
I look from the wings at the play you are staging,
While my guitar gently weeps.
As I'm sitting here, doing nothing but ageing,
Still, my guitar gently weeps.
Gosto especialmente das duas últimas linhas, especialmente se pensarmos no peso que tem o emprego da palavra 'envelhecendo' por aqueles que eram definitivamente ícones da cultura jovem - e aqui numa atitude compenetrada, distante do clima jocoso da mccartneyana When I'm 64. A opção por reduzir a letra para dar forma final à canção parece que deixa à mostra alguma incerteza de George, até porque posteriormente, em apresentações ao vivo, ele novamente joga com essa indefinição ao mesmo tempo que propõe outras interpretações, como em sua conturbada turnê pela América do Norte em 1974 quando muda muitos dos versos e faz alguns desabafos pessoais, como quando canta "they bought and sold me" (me compraram e me venderam). É um exemplo de como uma canção pode ter seu sentido transformado no tempo, até mesmo para seu próprio autor.


I look at you all see the love there that's sleeping
While my guitar gently weeps
I look at the floor and I see it needs sweeping
Still my guitar gently weeps

I don't know why nobody told you
How to unfold your love
I don't know how someone controlled you
They bought and sold you

I look at the world and I notice it's turning
While my guitar gently weeps
Every mistake, we must surely be learning
Still my guitar gently weeps

I don't know how you were diverted
You were perverted too
I don't know how you were inverted
No one alerted you

Vídeo da versão de Love:




Filme da turnê 1974:

7 de dezembro de 2013

Há versões e (a)versões

Um tema que dá muito pano pra manga é o das versões. Há aquelas versões que são basicamente as que são feitas por intérpretes diferentes quando gravam a mesma composição, sem grandes alterações em relação ao andamento, ao estilo de interpretação, ao arranjo, enfim ao padrão geral da gravação. Isso ocorre em geral num curto período de tempo, em que diversos intérpretes gravam uma canção bem sucedida num determinado momento, procurando incorporá-la a seu repertório e esperando sua boa recepção por parte do público. Há aquelas versões que extrapolam essa referência fonográfica e procuram recriar a canção e a gravação que tomam como referência, acrescendo à história da composição novos traços. Muitas vezes são versões que nascem pelo gesto de transportar canções no tempo e/ou no espaço (e nesse caso podem ser, além de versões, traduções), motivado por homenagens, songbooks, participações especiais, pesquisas de repertório, interesses mercadológicos, decisões dos produtores, preferências dos músicos, o que mais for. Há intérpretes que imprimem de forma tão inconteste sua marca que suas versões podem tornar-se mais memoráveis que aquela primeira gravação, e por vezes consagram-se como aquela que servirá de parâmetro pelo qual todas as subsequentes serão medidas. Podemos pensar na versão dos Beatles para Twist and shout, ou em várias das interpretações de Elis Regina para o repertório canônico da MPB. Uma situação ímpar é a dos compositores que se revelam excepcionais "versionistas", capazes de impregnar a canção com sua própria assinatura estilística, de modo muito próximo a uma coautoria. Dentre vários exemplos possíveis, me ocorrem imediatamente Caetano Veloso e George Harrison. Os leitores, se quiserem, podem sugerir outros nomes à lista.    

Enfim, são várias possibilidades de abordagem e material abundante que permitiria mil e um estudos, ensaios, pesquisas. Como o gás em final de semestre é pouco vou contentar-me agora com essa pequena incursão, motivada pela postagem do Francisco de Paula, garimpeiro da hora e membro da página do Blog do Clube da Esquina. Ele postou por lá essa versão do conjunto vocal novaiorquino Manhattan Transfer para Viola violar (Milton Nascimento/Márcio Borges), que eu não conhecia ou ao menos não me recordava de ter ouvido. Gravada no disco Brasil (1987), e com a participação do próprio Bituca, ela aparece transmutada numa ode de teor ecológico bizarramente intitulada The jungle pioneer (O pioneiro da selva). Na música não traz grandes inovações, a não ser pela parte central em que a ponte instrumental recebeu letra e que apresenta uns tamborins na percussão, fincados ali como uma espécie de bandeira do Brasil timbrística. A versão da letra (Brock Walsh), além de não traduzir minimamente o conceito expresso na original, é de lavra ruim mesmo, com pérolas do tipo... [quem quiser ler a letra completa, original aqui versão aqui]

"Here where we stand there used to be a forest     eu estou bem seguro nesta casa
A timber rising endlessly before us                           minha viola é o resto de uma feira
We cleared away that Godforsaken jungle               a minha fome morde o seu retrato
And in return the Indians adore us                             brindando a morte em tom de brincadeira

What was mud now is a highway                               e amanhã mais vinte anos
Reaching wide into a prairie                                      desfilados na avenida
Horses run, cattle are grazing                                    arranha-céu, ave noturna
You would swear, it's Oklahoma (...)                          no circuito dessa ferida (...)

See in the field my little son and daughter                eu estou bem seguro nesta casa
Not long ago that ground was under water"             comendo restos nesta quarta-feira




Claro que há grandes letristas norte-americanos. Acontece que quando se trata de versar grandes pérolas do cancioneiro brasileiro, via de regra as gravadoras de lá incumbem autores medianos que não conseguem traduzir ou muitas vezes nem tentam, fazem outra coisa, limitada e provavelmente mais palatável ao que imaginam ser o provável ouvinte de lá. Obviamente as versões são importantes veículos dos fluxos transculturais e certamente alguns ouvintes poderão, mesmo a partir de trabalhos fracos, desenvolver maior interesse e procurar as gravações dos compositores, tomando contato com outras músicas populares. Porém são também expressão da assimetria com que se movem esses fluxos e mostram bem como as versões podem ser veículo de estereótipos culturais. Como bônus, deixo as versões da mesma canção gravadas por Quarteto em Cy e Alaíde Costa.





1 de maio de 2013

Grandes encontros da música popular - Bob Dylan e George Harrison

Não é sempre que músicos desse porte chegam a se encontrar. Muito menos a colaborar, e menos ainda a se transformar em amigos e parceiros. Foi exatamente isso que aconteceu entre Dylan, considerado por todos os Beatles como grande referência, e George Harrison. Entre parcerias e gravações, colaborações em concertos (com destaque para a participação de Dylan no Concerto para Bangladesh) e a formação da banda Travelling Willburys, muita história pra contar e muita música para ouvir. Numa dessas várias ocasiões encontraram-se no Estúdio B da Columbia records em Nova York, material que justamente foi o motivo inicial dessa postagem. 

Dylan + Harrison Estúdio B (player com 19 faixas)


Artigo Bob Dylan and George Harrison through the years, incluindo p
equena cronologia

Ensaiando If not for you para o Concerto para Bangladesh  




Num dos primeiros takes da parceria I'd have you anytime



Uma belíssima versão de George para Mama You've Been On My Mind, de Dylan.
 

31 de dezembro de 2012

Adeus ano velho, feliz ano novo

Enfim o mundo não acabou e nós chegamos ao último dia do ano de 2012. Venho fazendo uma retrospectiva de postagens desse ano, não necessariamente as "melhores", mas as mais significativas por um motivo ou outro. Nada propriamente sistemático mas geralmente escolhi uma por mês. Vou ver se coloco os links ao final dessa postagem ou em uma página separada. No geral posso dizer que foi um ano importante para consolidar algumas ideias em relação ao blog, fazer melhorias e crescer em acessos e assinantes, especialmente pelo sucesso da lista das canções do Clube da Esquina feita pelo Pablo Castro neste dezembro. Muitos planos para 2013, incluindo maiores colaborações e mudanças no layout que já estou estudando. 
Para encerrar o ano acabei reunindo alguma coisa a partir de uma canção de ano novo, Ding Dong, Ding Dong, de George Harrison (compacto simples e disco Dark Horse, 1974). Uma das maiores qualidades dele, que sempre me causou forte impressão, é a inclinação para a auto-ironia. Uma canção aparentemente despretensiosa, calcada numa expressão de uso corrente para celebrar a virada do ano, estava de fato impregnada pela eminência de sua separação - "Ring out the old, ring in the new". Ring nesse caso remete ambiguamente ao soar dos sinos e ao uso do anel. Essa citação, trecho da seção do poema In memoriam de Lorde Tennyson, e outras tantas frases e expressões, George encontrou gravadas em vários pontos de Friar Park, a mansão cheia de jardins em que viveu e que pertecera ao advogado e homem de ciência da Inglaterra vitoriana, Sir Frank Crisp. Além de homenageá-lo com uma canção de seu álbum solo de estréia, All things must pass, Ballad of Sir Frankie Crisp (Let It Roll), Harrison deixou em outras canções pistas da influência de Crisp, que além de naturalista era membro eminente da Real Sociedade de Microscopia. Daí viria a referência ao microscópio em The Answer's at the End (1975, Extra Texture): "Scan not a friend with a microscopic glass/ You know his faults now let his foibles pass". Outra inscrição aparece citada na 2a. parte de Ding Dong, Ding dong, uma brincadeira com a passagem do tempo - e uma provável ironia direcionada principalmente a McCartney e os títulos de suas canções "Yesterday, today was tomorrow / And tomorrow, today will be yesterday", mas de modo geral sarcástica em relação a qualquer sentimento nostálgico relativo aos tempos dos Beatles. O vídeo promocional deixa tudo tão evidente que nem preciso falar mais nada. Só Feliz Ano Novo!






8 de dezembro de 2012

John Lennon hoje agora e sempre

Esses dias à volta com perdas do quilate de Oscar Niemeyer e Dave Brubeck, é inevitável pensar no sentido cultural que guarda o procedimento da homenagem, dentro da seara maior da memória social. A morte, lógico, é assunto inescapável para o historiador, pois está ali como componente indissociável do Tempo, matéria-prima de seu ofício. Nos estudos sobre museologia e patrimônio, parte predominante de minhas atuais pesquisas, muitas discussões giram justamente em torno das formas com que a sociedade intenta, simbólica e materialmente, enfrentar a morte enquanto fenômeno culturalmente percebido. Desse desejo brotam os mausoléus, epitáfios, necrológios, obituários, estátuas e monumentos para imortalizar, tombamentos de casas onde residiram aqueles que devem ser lembrados, por vezes transformadas em museus, memoriais e afins. Certa vez ganhei do pai de um grande amigo que visitara Nova York uma foto do mosaico em pedra portuguesa da calçada do Central Park que é parte de um memorial dedicado a John Lennon, um dos motes dessa postagem de hoje. Assim as pessoas, no intuito de lembrar quem partiu, e neste processo procurar definir coletivamente o que deve compor essa lembrança, modificam o espaço da cidade, escrevem longos textos ou pequenas mensagens, marcam o mundo de forma a denotar esse traço específico da passagem do tempo. . Um ótima análise desse fenômeno está em The past is a foreing country, de David Lowenthal, obra de grande erudição que ando tentando ler em meio à labuta rotineira de final de semestre. Meu projeto de pesquisa Patrimônio urbano e música popular aborda o assunto, ao tratar de lugares como Strawberry Field e Graceland




Dentre as muitas práticas dedicadas a promover a rememoração dos que passaram, as homenagens musicais são das mais poderosas, especialmente quando feitas de modo a transcender o contexto específico do falecimento do homenageado e de alguma forma possibilitar de maneira mais intensa a vinculação entre o passado da perda e o presente do ato de lembrar, estabelecendo um elo de sentido e beleza que se desprende da morte em si, e na passagem do lamento à celebração, permitem atualizar o significado da presença do homenageado no mundo e na vida de quem as ouve. esse modo, homenageio todos esses que deixaram sua marca e perduraram enquanto houver que delas fale ou ouça, através de canções feitas para Lennon.

--\\//--

 Estamos em 2014 e achei por bem atualizar essa postagem. O projeto que mencionei anteriormente caminhou um bocado, já teve parte de seus resultados apresentados em eventos acadêmicos, bolsistas que se envolveram, relatórios parciais, pesquisas em campo. Acabei de receber a aprovação do CNPq para continuá-lo, e interpreto esse apoio como reconhecimento ao trabalho que vem sendo realizado. Em breve trarei mais informações e postagens de alguns dos resultados aqui no blog.

Por fim, achei que uma homenagem a Lennon merecia ser complementada com canções. Me dei conta, numa rápida comparação entre as que foram compostas por seus irmãos de jornada, como Harrison (All those years ago) e McCartney (Here today) expressam visões complementares de seu amigo. All those years ago remete ao Lennon do mundo, num tom de tributo e até acerto de contas do presente com o passado, profundamente honesto como era próprio do George, apontando para a vileza com que Lennon foi por vezes tratado ("While they treated you like a dog"; "And you were the one they backed up to the wall", etc...) e fugindo de uma interpretação rósea da trajetória do companheiro. Here today fala de dentro, da intimidade de parceiros de uma vida, e é para aí que converge o exercício de rememoração de Paul, a partir do mote da constatação da presença/ausência de John. Também aqui há o exercício de uma franqueza, no reconhecimento do que era diferença entre os dois ("You'd probably laugh and say that we were worlds apart"), distância que era superada pelo afeto. 
Mas as duas canções coincidem na forma como apresentam a enunciação, pois nas duas o eu lírico dirigi-se diretamente a Lennon, produzindo um diálogo com o homenageado - ou mais efetivamente, com esse destinatário que é produzido no gesto mesmo da rememoração. Se Harrison insere a voz de Lennon por meio de referências a suas canções (All you need is love, Imagine), McCartney deduz das lembranças frases que poderiam sair de sua boca "If you were here today". Os arranjos das duas gravações, por seu turno, são contrastantes e correspondem ao quadro que propus inicialmente. O de Here today é intimista, centrado no confessional amálgama de voz e violão de Paul, acompanhado delicadamente pelo quarteto de cordas (remissão inevitável a Yesterday). Já All those years ago traz uma arranjo de banda, meio jazzy, até aliviando no clima alguma aspereza que a letra traz, com o detalhe de trazer Ringo na bateria e Paul, junto com Linda e Denny Laine, nos backing vocals. Dois belos tributos a alguém que deixou sua marca no mundo e nas pessoas.




31 de agosto de 2012

De onde jorra a inspiração?


De onde jorra a inspiração? Inusitados são os caminhos da criação. Em trecho de entrevista à BBC em 1975 George Harrison explica a motivação para compor "This guitar (can't keep from crying)", uma espécie de gêmea bivitelina da marcante "While my guitar gently weeps". Muito franco como de costume, ele argumenta que "poderia ser só uma desculpa pra tocar guitarra" mas basicamente que, ao se dar conta do sucesso da 1a., pensou "porque não fazer outra?" 

 


George também resolveu parir uma canção gêmea univitelina de sua obra-prima Here comes the sun, e foi outra maravilha...


Here Comes The Sun 





Embora fosse muito ligado em questões espirituais e tenha feito várias e várias canções de inspiração religiosa, George tirava igualmente proveito de situações corriqueiras e até mesmo das adversidades mais terrenas para inspirar-se. Foi assim que nasceram "Taxman", repúdio à sanha fiscal do governo britânico, "Sue me, sue you blues", rancoroso lamento sobre os embates jurídicos travados durante a dissolução dos Beatles e "This Song", crônica bem humorada do julgamento por plágio a que foi submetido e condenado.





7 de maio de 2012

Entre o pop e o progresso

Enquanto não acho o tempo necessário para elaborar postagens novas, o trabalho de recuperar e eventualmente ajustar algumas postagens antigas vai andando, e remexer em material antigo pode provocar alguma inspiração. Ao ver a imagem da capa do compacto simples de Strawberry Fields Forever/Penny Lane que utilizei para ilustrar outro texto, e já que estou preparando um texto que aborda uma questão relacionada a capas de discos, lembrei que neste caso já tinha algo escrito e publicado (um artigo) por aí. Decidi destacar de lá algum trecho que tratasse das capas do compacto e também do Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise está mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. Um trecho que funciona de aperitivo para o artigo, e também para discussões vindouras...

Em depoimento ao jornal underground Internacional Times (que Paul ajudara a criar), George Harrison dizia que os Beatles não deveriam mais se limitar ao pop, achando inclusive que “(...) a gente se conteve demais em coisas como ‘Strawberry Fields’ (...) acho que provamos que a música eletrônica pode se misturar com a música ‘pop’, e provaremos que música indiana, eletrônica e ‘pop’ podem andar juntas” (HEYLIN, 2007: 138). Ele acrescentaria mais um ingrediente ao caldeirão de sons ao propor unir música de concerto e instrumentos indianos na canção Within you, Without you[1]. Essa atitude tornara-se possível num contexto em que os Beatles, abandonado as excursões, mudaram seus métodos de trabalho, levando canções apenas esboçadas para construí-las no estúdio e improvisando durante horas - deixando os técnicos exaustos e entediados. George Martin declarou que a parte mais difícil do LP foi começar a gravar às sete da noite e trabalhar até as três (HEYLIN, 2007: 100). Seu papel como produtor mudara, do de dar direções para o de concretizar as idéias dos Beatles – por mais mirabolantes que fossem. Mais importante do que ter acesso à tecnologia de gravação era ter alguém que pudesse conduzi-la no rumo desejado. Mas que rumo? Em direção ao passado suburbano ou a última moda de Londres? 
Falando em moda, SAMUEL localiza na Swinging London de meados dos anos 1960 o fenômeno do retro-chique, ou “indústria da nostalgia”, em que a tecnologia recente é aplicada aos produtos de modo a obter uma estética que remete ao antigo (SAMUEL, 1994: 83), influenciando do vestuário às capas de disco. Mesmo sendo uma forma de revival, tem um caráter paródico:

“Ao contrário do restauracionismo e do conservantismo (...) o retro-chique é indiferente ao culto da autenticidade. Ele não se sente obrigado a permanecer fiel ao período (...) borra a distinção entre originais e reciclados (...) abole as diferenças de categorização entre passado e presente, abrindo um trânsito de mão dupla entre eles” (SAMUEL, 1994:112-113)


Há dois pontos de contato com o caso que estamos investigando. Musical: como vimos, os arranjos das duas canções atravessam gêneros e temporalidades diferentes. Visual: é significativo que tenham sido produzidos e lançados filmes promocionais para as duas canções, uma vez que o mesmo autor identifica neste mesmo período o início do predomínio do ‘visual’ sobre o ‘auditivo’ na cultura britânica (SAMUEL, 1994: 337-339). Ironicamente, não há qualquer cena dos Beatles em Liverpool. No filme de Strawberry Fields a cidade sequer aparece, pois a única locação é um morro, em que eles estão junto a um piano de armário sobre o qual está um tear, cujos fios se entendem até um carvalho. No de Penny Lane, externas do local mostrando placas e ônibus estampando o nome do logradouro são intercaladas com cenas dos Beatles atravessando Londres a cavalo, vestindo casacos de caça à raposa, em direção a um parque onde será servida uma aristocrática refeição (DANIELS, 2006: 42). Nos dois a montagem segue o ritmo das canções e consegue traduzir as técnicas usadas nas gravações, especialmente na cena em que Paul se move de trás para frente e “cai para cima” de um galho da árvore. Esteticamente, o primeiro filme é bem mais vanguardista, dando uma pista sobre a diferença na recepção de cada lado do compacto. As seqüências finais, por sua vez, evidenciam no improviso iconoclasta - com um quê de nonsense e sem qualquer agressividade explícita - sua semelhança no confronto entre o convencional e o transgressor: em uma, após derramar tintas no tear, eles derrubam o piano; na outra, no momento em que vão ser servidos, derrubam a mesa.
Transgressão que voltavam contra sua aparência pop. Desde 1966 vinham abandonando os ternos e cortes de cabelo padronizados, e depois que encerraram a última turnê Lennon passou a usar óculos de ‘vovô’ (aros circulares) e todos adotaram roupas psicodélicas e bigodes, que passariam depois a ser vistos nos chamados “heróis da classe trabalhadora”, (SAMUEL, 1994: 97). Lay-out propositalmente datado que aparece na capa do compacto, que ainda traz estampada uma moldura em torno da foto, de modo a imitar um porta-retratos antigo. O visual combinava com os uniformes de regimento eduardiano usados depois na capa de Sgt. Pepper’s. A influência do ambiente contracultural londrino aparece com força nesta legítima criação retro-chique de um artista do circuito de vanguarda, Peter Blake:

“A capa (...) pertence a (...) uma democracia de entretenimento no qual os showmen dos velhos tempos – reunidos – são amontoados com outros recentemente mortos (...) No som, o tambor da banda de metais, a clarineta e as cornetas tomaram o lugar dos amplificadores eletrônicos(...)um réquiem (...) ” (SAMUEL, 1994: 341)

Como a música, a capa é uma verdadeira colagem em arranjo surrealista que reúne na pose datada a banda com a platéia por atrás, aproximando a voga do culto aos artistas de cinema mortos, as referências culturais[2] dos Beatles e seu desejo de mudar a própria imagem. Àquela altura, o conceito do álbum sobre memórias de infância ganhara outro colorido. Paul compôs a canção título e imaginou a tal banda como alter-egos dos Beatles tocando num parque em algum lugar do norte (suas próprias estátuas de cera assistem ao show). O toque teatral foi dado a seguir pela entrada (sem intervalo) em cena de seu líder, Billy Shears, personagem vivido por Ringo na animada canção do norte With a little help from my friends[3], e como seu próprio intérprete entrega, o conceito de espetáculo foi realizado “(...) nas primeiras faixas e depois isso se dispersou pelo álbum” (HEYLIN, 2007: 141). O conceito, em seu estado inicial ou final, de fato é disperso, mas é possível ouvir seu eco, seja nas referências ao music hall [4]– gênero “impuro” e “cômico” (FRITH, 1996: 27; 209) - em When I’m 64[5] (satírica, mas gentil), nas composições que partem de fragmentos do dia-a-dia ou em frases emblemáticas como “Foi a vinte anos atrás, de hoje”; “muitos anos desde agora”; “dar uma volta pela velha escola”; “um período esplêndido está garantido para todos”. Encarando de forma mais abstrata, trata-se de metamorfose: morte e nascimento, réquiem e fanfarra, como explicou um crítico quando o disco saiu, assegurando ainda que as canções do compacto “foram prévias perfeitas” (HEYLIN, 2007:171)
Dialeticamente, se toda essa encenação da mudança mostra os Beatles se afastando de suas personagens de estrelas do pop, era justamente seu êxito até aquele momento que lhes dava respaldo diante da EMI para “ir longe”. Harrison disse ao repórter da revista Life que acompanhava uma noite de gravações:

“Acabamos de descobrir o que podemos fazer como músicos. Quais fronteiras podemos cruzar. Não faz mais tanta diferença se estamos em 1º lugar nas paradas. Tudo bem se as pessoas não gostarem de nós. Só não tentem nos podar” (HEYLIN, 2007: 135)

McCartney faria coro, afirmando que não se abrir para coisas novas poderia significar sucesso e fracasso ao mesmo tempo. Ele disse a Thomas Thompson, de Life: “(...) vamos perder alguns fãs. Nós os perdemos em Liverpool quando trocamos nossas jaquetas de couro por ternos (...) chegamos a um ponto onde não existem barreiras (...)” (HEYLIN, 2007: 135). Mas, oscilante, também demonstrava estar preocupado em evitar “ir longe demais” e distanciar-se dos fãs – o que explica a ousadia de Penny Lane ser dosada por uma melodia cantarolável, com um refrão que ecoa “cantigas de playgroud” (DANIELS, 2006: 41). Era a árdua busca do equilíbrio entre pop e progresso.



[1] Harrison, George. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967.
[2] O encarte da edição em CD traz a lista completa das personalidades reunidas na capa.
[3] Lennon, John & McCartney, Paul. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967. Esta foi a última faixa nova gravada para o disco, mas é a segunda na ordem final.
[4] Variedade espetáculo teatral que envolvia comédia e música popular. Também é usado como referência apenas ao tipo de música própria dos espetáculos em questão.
[5] Lennon, John & McCartney, Paul. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967. A canção, refeita por Paul a parir de uma de suas composições mais antigas, chegou a ser cogitada como lado B para o compacto até dar lugar a Penny Lane.

5 de novembro de 2011

1a. c/ a 7a. (música e cinema) I

Fazendo uma pequena brincadeira, inauguro a seção 1a. c/ a 7a., a partir da numeração das artes. E pra começar, o ótimo documentário dirigido por Scorsese, George Harrison -- Living in the Material World. Foi realmente sensacional assistir perto e junto de pessoas tão queridas, na casa de um grande amigo. Mesmo para quem conhece tão bem a história e a obra dos Beatles e do George, é recheado de momentos inesquecíveis. Não deixem de ver. O trailer do documentário está disponível nesse canal do You Tube.
Sinopsis
Directed by Martin Scorsese, George Harrison -- Living in the Material World is a stunning double-feature-length film tribute to one of music's greatest icons. Scorsese uses never-before-seen footage from George Harrison's childhood, throughout his years with The Beatles, through the ups and downs of his solo career, and through the joys and pain of his private life, to trace the arc of George's journey from his birth in 1943 to his passing in 2001. Living in the Material World features private home videos, photos and never before heard tracks to chronicle the incredible story of the extraordinary man. Despite its epic reach, the film is deeply personal. Ringo Starr, Eric Clapton, Paul McCartney, Yoko Ono, Olivia and Dhani Harrison, among many others, talk openly about George's many gifts and contradictions and reveal the lives they shared together. In every aspect of his professional, personal and spiritual life, until his final hours, George blazed his own path. As his friend John Lennon once said: "George himself is no mystery. But the mystery inside George is immense. It's watching him uncover it all little by little that's so damn interesting."

P.S. 2016
Consegui reunir os links para assistir a partes do documentário:

Parte 1
Parte 2




 

1 de junho de 2011

44 anos atrás hoje

Escrever sobre o Sgt. Pepper's é quase tão bom quanto ouvi-lo.
"O estúdio torna-se um novo instrumento que permite alterar de diversas formas o som gravado: o corte, a sobreposição, a distorção, a alteração da velocidade da fita, a inserção de outros sons como recurso de citação (e não a citação composicional) aproximam a gravação das técnicas cinematográficas . Neste sentido, George Martin foi sem dúvida o Einsenstein da música popular". (GARCIA, 2000)