Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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1 de agosto de 2016

O primeiro grande show beneficente faz 45 anos - Concerto para Bangladesh

Há tempos penso em criar uma série compartilhando impressões e material sobre shows de música popular que marcaram época, e eventualmente os que eu mesmo assistir ou que seja resenhado por colunista convidado. Ainda não sei qual a forma definitiva, mas pensei em aproveitar a efeméride para começar pelo Concerto para Bangladesh, pioneira iniciativa de fazer um grande concerto de música popular para arrecadar fundos em apoio a uma causa humanitária. George Harrison inclusive compôs a canção de nome "Bangla Desh" para narrar como o apelo de seu amigo e mestre musical, o sitarista Ravi Shankar, lhe inspirou a realizar tal concerto, para o qual convidou grandes nomes da música popular anglófona, incluindo Bob Dylan, Eric Clapton, Ringo Starr, Billy Preston e Leon Russell, entre outros. Certamente a maior performance ao vivo de Harrison após o fim dos Beatles, realizada no momento de pico artístico em sua carreira, após o lançamento do álbum triplo All things must pass e o sucesso do single My Sweet Lord. 


Incorporei a playlist abaixo com muito material do show, infelizmente não há um vídeo único com o show na íntegra circulando livremente:


1 de fevereiro de 2014

O outro lado do Grammy

Assisti, erraticamente, à cerimônia do Grammy 2014, basicamente pela presença de Paul McCartney e Ringo Starr. Pois depois de ver o Ringo e os veteranos da All Starr Band tocarem Photograph, fazendo seu som de forma digna e apresentando-se de modo a colocar a música em primeiro plano, assistir a pirotecnia e encenação de "artistas" quem não tocam e não cantam nada foi um verdadeiro castigo, do qual tentei me poupar o melhor que pude. Tanto que perdi os dois juntos no palco tocando Queenie eye rsrsrs e celebrar os 50 anos do início da invasão britânica. Depois vi pelo You Tube, antes que os donos dos direitos do evento saíssem bloqueando. Enfim, é um negócio da indústria cultural com N, nem compensa render muito em cima disso não.  Acontece que o Trio Corrente, um dos mais prestigiados da música instrumental  brasileira atualmente, levou junto com Paquito D'Rivera o troféu de melhor álbum de jazz latino pelo CD “Song For Maura”. O que não foi devidamente noticiado, inclusive porque ocorreu naquele limbo das premiações paralelas. Acabei lendo a matéria escrita por Kiko Nogueira [completa, aqui], que chamou-me a atenção por conter o relato do pianista Fabio Torres, que "contou o que é ganhar um Grammy sem que ninguém note muito". Um relato vivo e sincero que transcrevo porque é um jeito de ver o outro lado da coisa:

Eu, o baterista Edu Ribeiro e o baixista Paulo Paulelli fazemos música instrumental brasileira, tocando basicamente os grandes autores do choro, do samba e da bossa, como Jobim, Pixinguinha e Baden, e também nossas próprias composições. Escrevo sob o impacto do prêmio por nós recebido no dia 26 de janeiro, o Grammy de melhor álbum de jazz latino, pelo CD “Song for Maura”. Esse trabalho foi fruto de uma parceria entre o Trio Corrente e o saxofonista cubano radicado nos EUA, Paquito D’Rivera. Muita gente me disse: “Eu assisti a cerimônia do Grammy na TV e não vi vocês lá”. É bom esclarecer que além dessa premiação televisionada que reúne as grandes estrelas do Pop, num teatro menor ao lado do imenso Staples Center é realizada uma outra cerimônia que entrega 72 Grammys para as mais diversas categorias como jazz, gospel, música clássica e outras.
Pois bem, é aí que estão incríveis grupos de música de câmara, compositores e intérpretes de música erudita, bem como alguns dos jazzistas mais conceituados dos EUA e do mundo.  Vimos alguns de nossos ídolos ganhando ou perdendo seus prêmios na nossa frente. E, esperamos 40 categorias – mais ou menos 2 horas – até chegar nossa vez. Apenas um brasileiro havia faturado essa categoria até hoje, nosso maestro Tom Jobim em 1996.
Eu fiz de tudo pra fugir do espírito de competição, exorcizar o terrível “winners and losers” dos americanos. Mas o fato é que foram duas horas da mais terrível angústia. E o instante em que anunciaram nosso nome foi algo indescritível. Sim, é um pouco piegas, mas foi exatamente isso. Uma mistura de alívio com extrema felicidade. Pensei também na enorme e artificial distância que nos separava dos outros indicados preteridos. Após nos tornarmos “Grammy Winners” nos tiraram da platéia e nos levaram pra sessões de fotos e entrevistas enquanto os outros eram como que abandonados à própria sorte.
Logo depois fomos ao Staples Center assistir a premiação das estrelas do pop, rock, country, rap etc. Eu estava acompanhado de minha filha e entramos pelo tapete vermelho junto com dois caras com roupas de robô. Também havia muitas luzes e burburinho mas sou completamente ignorante em matérias de ícones pop. Minha filha acha que no centro de uma rodinha muito agitada pela qual passamos estava a Madonna…mas podia ser a…Taylor Swift??
Vimos de pertinho o Paul e o Ringo, o Stevie Wonder e uma negra muito, muito linda que, há pouco descobri, se chama Beyoncé. Claro que, para ouvidos de músico experiente, foi fácil identificar muitos artistas sem nenhuma substância musical, alguns inclusive sendo consagrados e que serão vítimas da efemeridade inclemente. Assim como foi fácil perceber o porquê de alguns veteranos fazerem sucesso durante tanto tempo, tal a verdade de sua arte.
Toda essa experiência inusual me fez pensar muito sobre a música, o sucesso. Pensei na distância que separava a nossa música da música daquelas estrelas. Pensei na estrutura imensa, paquidérmica, que move essa fábrica de celebridades e no quanto, cada vez mais, essa estrutura será ameaçada pela multiplicidade de vozes que a internet traz. 
Muitas pessoas se queixaram da ausência do Trio Corrente na televisão brasileira, na noite da premiação. Achavam que deveria ser destacado o fato de artistas brasileiros serem premiados. Estarei sendo sincero em confessar que isso não diminui nem sequer uma ínfima fração de meu contentamento. Não tenho televisão em casa e tive a sorte de conhecer uma moça que também não tinha e me casar com ela.

Trio Corrente & Paquito D' Rivera
Festival Internacional de Jazz de Punta del Este - Uruguay
Janeiro de 2011

Paquito D'Rivera -clarinete
Fabio Torres - piano
Paulo Paulelli - contrabaixo
Edu Ribeiro - bateria
 

8 de dezembro de 2012

John Lennon hoje agora e sempre

Esses dias à volta com perdas do quilate de Oscar Niemeyer e Dave Brubeck, é inevitável pensar no sentido cultural que guarda o procedimento da homenagem, dentro da seara maior da memória social. A morte, lógico, é assunto inescapável para o historiador, pois está ali como componente indissociável do Tempo, matéria-prima de seu ofício. Nos estudos sobre museologia e patrimônio, parte predominante de minhas atuais pesquisas, muitas discussões giram justamente em torno das formas com que a sociedade intenta, simbólica e materialmente, enfrentar a morte enquanto fenômeno culturalmente percebido. Desse desejo brotam os mausoléus, epitáfios, necrológios, obituários, estátuas e monumentos para imortalizar, tombamentos de casas onde residiram aqueles que devem ser lembrados, por vezes transformadas em museus, memoriais e afins. Certa vez ganhei do pai de um grande amigo que visitara Nova York uma foto do mosaico em pedra portuguesa da calçada do Central Park que é parte de um memorial dedicado a John Lennon, um dos motes dessa postagem de hoje. Assim as pessoas, no intuito de lembrar quem partiu, e neste processo procurar definir coletivamente o que deve compor essa lembrança, modificam o espaço da cidade, escrevem longos textos ou pequenas mensagens, marcam o mundo de forma a denotar esse traço específico da passagem do tempo. . Um ótima análise desse fenômeno está em The past is a foreing country, de David Lowenthal, obra de grande erudição que ando tentando ler em meio à labuta rotineira de final de semestre. Meu projeto de pesquisa Patrimônio urbano e música popular aborda o assunto, ao tratar de lugares como Strawberry Field e Graceland




Dentre as muitas práticas dedicadas a promover a rememoração dos que passaram, as homenagens musicais são das mais poderosas, especialmente quando feitas de modo a transcender o contexto específico do falecimento do homenageado e de alguma forma possibilitar de maneira mais intensa a vinculação entre o passado da perda e o presente do ato de lembrar, estabelecendo um elo de sentido e beleza que se desprende da morte em si, e na passagem do lamento à celebração, permitem atualizar o significado da presença do homenageado no mundo e na vida de quem as ouve. esse modo, homenageio todos esses que deixaram sua marca e perduraram enquanto houver que delas fale ou ouça, através de canções feitas para Lennon.

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 Estamos em 2014 e achei por bem atualizar essa postagem. O projeto que mencionei anteriormente caminhou um bocado, já teve parte de seus resultados apresentados em eventos acadêmicos, bolsistas que se envolveram, relatórios parciais, pesquisas em campo. Acabei de receber a aprovação do CNPq para continuá-lo, e interpreto esse apoio como reconhecimento ao trabalho que vem sendo realizado. Em breve trarei mais informações e postagens de alguns dos resultados aqui no blog.

Por fim, achei que uma homenagem a Lennon merecia ser complementada com canções. Me dei conta, numa rápida comparação entre as que foram compostas por seus irmãos de jornada, como Harrison (All those years ago) e McCartney (Here today) expressam visões complementares de seu amigo. All those years ago remete ao Lennon do mundo, num tom de tributo e até acerto de contas do presente com o passado, profundamente honesto como era próprio do George, apontando para a vileza com que Lennon foi por vezes tratado ("While they treated you like a dog"; "And you were the one they backed up to the wall", etc...) e fugindo de uma interpretação rósea da trajetória do companheiro. Here today fala de dentro, da intimidade de parceiros de uma vida, e é para aí que converge o exercício de rememoração de Paul, a partir do mote da constatação da presença/ausência de John. Também aqui há o exercício de uma franqueza, no reconhecimento do que era diferença entre os dois ("You'd probably laugh and say that we were worlds apart"), distância que era superada pelo afeto. 
Mas as duas canções coincidem na forma como apresentam a enunciação, pois nas duas o eu lírico dirigi-se diretamente a Lennon, produzindo um diálogo com o homenageado - ou mais efetivamente, com esse destinatário que é produzido no gesto mesmo da rememoração. Se Harrison insere a voz de Lennon por meio de referências a suas canções (All you need is love, Imagine), McCartney deduz das lembranças frases que poderiam sair de sua boca "If you were here today". Os arranjos das duas gravações, por seu turno, são contrastantes e correspondem ao quadro que propus inicialmente. O de Here today é intimista, centrado no confessional amálgama de voz e violão de Paul, acompanhado delicadamente pelo quarteto de cordas (remissão inevitável a Yesterday). Já All those years ago traz uma arranjo de banda, meio jazzy, até aliviando no clima alguma aspereza que a letra traz, com o detalhe de trazer Ringo na bateria e Paul, junto com Linda e Denny Laine, nos backing vocals. Dois belos tributos a alguém que deixou sua marca no mundo e nas pessoas.




7 de maio de 2012

Entre o pop e o progresso

Enquanto não acho o tempo necessário para elaborar postagens novas, o trabalho de recuperar e eventualmente ajustar algumas postagens antigas vai andando, e remexer em material antigo pode provocar alguma inspiração. Ao ver a imagem da capa do compacto simples de Strawberry Fields Forever/Penny Lane que utilizei para ilustrar outro texto, e já que estou preparando um texto que aborda uma questão relacionada a capas de discos, lembrei que neste caso já tinha algo escrito e publicado (um artigo) por aí. Decidi destacar de lá algum trecho que tratasse das capas do compacto e também do Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise está mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. Um trecho que funciona de aperitivo para o artigo, e também para discussões vindouras...

Em depoimento ao jornal underground Internacional Times (que Paul ajudara a criar), George Harrison dizia que os Beatles não deveriam mais se limitar ao pop, achando inclusive que “(...) a gente se conteve demais em coisas como ‘Strawberry Fields’ (...) acho que provamos que a música eletrônica pode se misturar com a música ‘pop’, e provaremos que música indiana, eletrônica e ‘pop’ podem andar juntas” (HEYLIN, 2007: 138). Ele acrescentaria mais um ingrediente ao caldeirão de sons ao propor unir música de concerto e instrumentos indianos na canção Within you, Without you[1]. Essa atitude tornara-se possível num contexto em que os Beatles, abandonado as excursões, mudaram seus métodos de trabalho, levando canções apenas esboçadas para construí-las no estúdio e improvisando durante horas - deixando os técnicos exaustos e entediados. George Martin declarou que a parte mais difícil do LP foi começar a gravar às sete da noite e trabalhar até as três (HEYLIN, 2007: 100). Seu papel como produtor mudara, do de dar direções para o de concretizar as idéias dos Beatles – por mais mirabolantes que fossem. Mais importante do que ter acesso à tecnologia de gravação era ter alguém que pudesse conduzi-la no rumo desejado. Mas que rumo? Em direção ao passado suburbano ou a última moda de Londres? 
Falando em moda, SAMUEL localiza na Swinging London de meados dos anos 1960 o fenômeno do retro-chique, ou “indústria da nostalgia”, em que a tecnologia recente é aplicada aos produtos de modo a obter uma estética que remete ao antigo (SAMUEL, 1994: 83), influenciando do vestuário às capas de disco. Mesmo sendo uma forma de revival, tem um caráter paródico:

“Ao contrário do restauracionismo e do conservantismo (...) o retro-chique é indiferente ao culto da autenticidade. Ele não se sente obrigado a permanecer fiel ao período (...) borra a distinção entre originais e reciclados (...) abole as diferenças de categorização entre passado e presente, abrindo um trânsito de mão dupla entre eles” (SAMUEL, 1994:112-113)


Há dois pontos de contato com o caso que estamos investigando. Musical: como vimos, os arranjos das duas canções atravessam gêneros e temporalidades diferentes. Visual: é significativo que tenham sido produzidos e lançados filmes promocionais para as duas canções, uma vez que o mesmo autor identifica neste mesmo período o início do predomínio do ‘visual’ sobre o ‘auditivo’ na cultura britânica (SAMUEL, 1994: 337-339). Ironicamente, não há qualquer cena dos Beatles em Liverpool. No filme de Strawberry Fields a cidade sequer aparece, pois a única locação é um morro, em que eles estão junto a um piano de armário sobre o qual está um tear, cujos fios se entendem até um carvalho. No de Penny Lane, externas do local mostrando placas e ônibus estampando o nome do logradouro são intercaladas com cenas dos Beatles atravessando Londres a cavalo, vestindo casacos de caça à raposa, em direção a um parque onde será servida uma aristocrática refeição (DANIELS, 2006: 42). Nos dois a montagem segue o ritmo das canções e consegue traduzir as técnicas usadas nas gravações, especialmente na cena em que Paul se move de trás para frente e “cai para cima” de um galho da árvore. Esteticamente, o primeiro filme é bem mais vanguardista, dando uma pista sobre a diferença na recepção de cada lado do compacto. As seqüências finais, por sua vez, evidenciam no improviso iconoclasta - com um quê de nonsense e sem qualquer agressividade explícita - sua semelhança no confronto entre o convencional e o transgressor: em uma, após derramar tintas no tear, eles derrubam o piano; na outra, no momento em que vão ser servidos, derrubam a mesa.
Transgressão que voltavam contra sua aparência pop. Desde 1966 vinham abandonando os ternos e cortes de cabelo padronizados, e depois que encerraram a última turnê Lennon passou a usar óculos de ‘vovô’ (aros circulares) e todos adotaram roupas psicodélicas e bigodes, que passariam depois a ser vistos nos chamados “heróis da classe trabalhadora”, (SAMUEL, 1994: 97). Lay-out propositalmente datado que aparece na capa do compacto, que ainda traz estampada uma moldura em torno da foto, de modo a imitar um porta-retratos antigo. O visual combinava com os uniformes de regimento eduardiano usados depois na capa de Sgt. Pepper’s. A influência do ambiente contracultural londrino aparece com força nesta legítima criação retro-chique de um artista do circuito de vanguarda, Peter Blake:

“A capa (...) pertence a (...) uma democracia de entretenimento no qual os showmen dos velhos tempos – reunidos – são amontoados com outros recentemente mortos (...) No som, o tambor da banda de metais, a clarineta e as cornetas tomaram o lugar dos amplificadores eletrônicos(...)um réquiem (...) ” (SAMUEL, 1994: 341)

Como a música, a capa é uma verdadeira colagem em arranjo surrealista que reúne na pose datada a banda com a platéia por atrás, aproximando a voga do culto aos artistas de cinema mortos, as referências culturais[2] dos Beatles e seu desejo de mudar a própria imagem. Àquela altura, o conceito do álbum sobre memórias de infância ganhara outro colorido. Paul compôs a canção título e imaginou a tal banda como alter-egos dos Beatles tocando num parque em algum lugar do norte (suas próprias estátuas de cera assistem ao show). O toque teatral foi dado a seguir pela entrada (sem intervalo) em cena de seu líder, Billy Shears, personagem vivido por Ringo na animada canção do norte With a little help from my friends[3], e como seu próprio intérprete entrega, o conceito de espetáculo foi realizado “(...) nas primeiras faixas e depois isso se dispersou pelo álbum” (HEYLIN, 2007: 141). O conceito, em seu estado inicial ou final, de fato é disperso, mas é possível ouvir seu eco, seja nas referências ao music hall [4]– gênero “impuro” e “cômico” (FRITH, 1996: 27; 209) - em When I’m 64[5] (satírica, mas gentil), nas composições que partem de fragmentos do dia-a-dia ou em frases emblemáticas como “Foi a vinte anos atrás, de hoje”; “muitos anos desde agora”; “dar uma volta pela velha escola”; “um período esplêndido está garantido para todos”. Encarando de forma mais abstrata, trata-se de metamorfose: morte e nascimento, réquiem e fanfarra, como explicou um crítico quando o disco saiu, assegurando ainda que as canções do compacto “foram prévias perfeitas” (HEYLIN, 2007:171)
Dialeticamente, se toda essa encenação da mudança mostra os Beatles se afastando de suas personagens de estrelas do pop, era justamente seu êxito até aquele momento que lhes dava respaldo diante da EMI para “ir longe”. Harrison disse ao repórter da revista Life que acompanhava uma noite de gravações:

“Acabamos de descobrir o que podemos fazer como músicos. Quais fronteiras podemos cruzar. Não faz mais tanta diferença se estamos em 1º lugar nas paradas. Tudo bem se as pessoas não gostarem de nós. Só não tentem nos podar” (HEYLIN, 2007: 135)

McCartney faria coro, afirmando que não se abrir para coisas novas poderia significar sucesso e fracasso ao mesmo tempo. Ele disse a Thomas Thompson, de Life: “(...) vamos perder alguns fãs. Nós os perdemos em Liverpool quando trocamos nossas jaquetas de couro por ternos (...) chegamos a um ponto onde não existem barreiras (...)” (HEYLIN, 2007: 135). Mas, oscilante, também demonstrava estar preocupado em evitar “ir longe demais” e distanciar-se dos fãs – o que explica a ousadia de Penny Lane ser dosada por uma melodia cantarolável, com um refrão que ecoa “cantigas de playgroud” (DANIELS, 2006: 41). Era a árdua busca do equilíbrio entre pop e progresso.



[1] Harrison, George. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967.
[2] O encarte da edição em CD traz a lista completa das personalidades reunidas na capa.
[3] Lennon, John & McCartney, Paul. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967. Esta foi a última faixa nova gravada para o disco, mas é a segunda na ordem final.
[4] Variedade espetáculo teatral que envolvia comédia e música popular. Também é usado como referência apenas ao tipo de música própria dos espetáculos em questão.
[5] Lennon, John & McCartney, Paul. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967. A canção, refeita por Paul a parir de uma de suas composições mais antigas, chegou a ser cogitada como lado B para o compacto até dar lugar a Penny Lane.

31 de janeiro de 2012

A estrela de Ringo versão 2012

Ringo Starr lançando seu novo álbum, Ringo2012. Entrevista bem bacana para o USAToday, Ringo descontraído como de costume, fala de sua próxima turnê com a AllStarr Band, do disco, das canções que tem feito sobre Liverpool, de sua forma de compor, de sua defesa dos ideias sessentistas de "paz e amor" e dos Beatles, claro. Entre os destaques, o ponto em que ele menciona a visita de Stewart Copeland (ex-The Police) em um de seus shows no Brasil ano passado e agradece o elogio que o colega baterista fez à banda. Bem legal também quando Ringo menciona a apropriação das músicas dos Beatles pelas gerações mais novas pela internet sem se prederem aos álbuns, e confessa que também fez as suas seleções, já que tem tempo pra isso (risos). Fala ainda de seu processo de criação, sobre o difícil começo com Don't pass me by, naturalmente intimidado no meio dos outros Beatles, e até conta alguns pormenores da composição de Back off, bugaloo. Por fim, explicando suas decisões sobre o novo álbum, mandou uma daquelas frases dele, "when it's me it's me" (quando sou eu, sou eu). É claro que é. 

P.S. 2019
O link original partiu-se. Encontrei outra entrevista da mesma época. Improvável recuperar a anterior.

20 de janeiro de 2012

You belong to me - uma canção, vários tempos

Acompanhar uma canção através do tempo, tendo contato com diversas gravações e intérpretes, além de ser um exercício instigante, é um estímulo à sensibilidade musical e histórica. Contrastando versões, é possível aprender muito sobre mudanças nos estilos de interpretação, nas concepções de arranjo, nas tecnologias de captação de som, e como estão relacionados a uma dada época, a um contexto específico que influencia a produção, a circulação e a recepção da canção em questão. Algumas delas passam de geração em geração, e mesmo que evoquem sentimentos parecidos, são sempre re-significadas diante de situações novas, e lhes dando, como disse meu caro amigo Pedro Munhoz (colaborador dessa postagem), novo fôlego. Uma singela canção como essa - You belong to me ( Pee Wee King, Chilton Price, and Redd Stewart) - atravessou mais de meio século, nas vozes de artistas tão diferentes quanto Sue Thompson (a 1a. a gravá-la em 1952), Jo Stafford (versão de maior êxito comercial, chegando ao topo das paradas nos EUA e Reino Unido, ainda em 1952),  Patsy Cline, Bob Dylan, Judy Garland, Ella Fitzgerald, Ringo Starr, Carla Bruni e Rose McGowan (que a canta na abertura do filme Planeta Terror, de Robert Rodrigues).
Embora a canção seja do início dos anos 1950, o Pedro comentou que o ápice da carreira da Jo Stafford foi durante a Segunda Guerra (ela chegou a cantar para os soldados, explica). Daí percebi que a letra remete a um enredo de aventura, exploração, viagem, que é bem a 2a. Guerra mesmo (vista por um prisma romantizado, lógico) como se a cantora falasse para o soldado, você está ai, vendo o mundo, mas lembre-se, você pertence a mim. Basta ler os 1os. versos:

See the pyramids along the Nile
Watch the sun rise on a tropic isle 
Just remember darling all the while
You belong to me

Resolvi apurar, porque muitas vezes a canção pode ser composta num momento e gravada depois. Na mosca. Descobri que a autora original foi Chilton Price, que trabalhava numa rádio do Kentucky, junto com King e Stewart. O título então era "Hurry home to me" (a métrica é a mesma) e era justamente um pedido para o amado soldado voltar pra casa. Enquanto Price era uma compositora amadora, os outros eram músicos já estabelecidos mercadologicamente. Não fica claro pelas fontes se chegaram a realizar mudanças, apenas que não deve ter sido nada digno de nota, e que os créditos vieram por terem se ocupado da divulgação da canção, como se depreende do depoimento da autora ao Cincinatti Post em 2002. Price não guarda mágoa, relatando que os outros dois lhe proporcionaram um alcance que não teria sozinha. Sua postura generosa, no entanto, não abona a incorreção que é preciso corrigir, e também revela um dos grandes vícios da indústria fonográfica quando se trata de autoria. Esse é um padrão generalizado, inclusive em tintas bem mais turvas, como ocorria na compra de alguns sambas.
Seja como for, modificada a canção fez sucesso nos anos 1950. Vale considerar que a partir daí os EUA mantiveram tropas estacionadas em todo o globo em razão da Guerra Fria. Mas parece mais justo entender que a letra poderia ser apropriada fora do momento que a inspirou. Podemos imaginar como essa canção foi passeando "de ouvido em ouvido". Da leitura country da Patsy Cline, por exemplo, pode ter derivado a versão do Dylan, sugere o Pedro. Eu a conheci cantanda pelo Ringo, num momento em que me interessava muito mais o repertório dele do que essa arqueologia das gravações esboçada agora. Outro caminho passa pelo cinema, já que ela foi definitivamente incorporada ao repertório de Hollywood... além de Planeta Terror, Pedro recorda que a versão do Dylan está em Assassinos por Natureza, do Oliver Stone, e por aí vai. Interessante que a versão do Ringo busca "atualizar" a canção, no início dos anos 1980, enquanto a cantada por McGowan tem uma arranjo "retrô", mas insere altas doses de sensualidade, uma vez que sua personagem era uma stripper (numa espelunca, lógico). Para encerrar, não inseri todos os vídeos aqui para não sobrecarregar, basta clicar no nome do intérprete que o link fará o resto (ao menos por enquanto...).


4 de novembro de 2011

Depoimento de um colecionador beatlemaníaco

Vejam o depoimento de um colecionador beatlemaníaco daqueles, meu grande amigo Guilherme Lentz. Segue um trecho e para o texto completo comfiram o blog dele!

Dentre os muitos presentes que os Beatles, sendo eles mesmos já o maior presente - suprema generosidade -, trouxeram para minha vida, está a carreira solo do Ringo.No início, eu não poderia sonhar que ela existiria em minha vida. Em 1989, os discos dos ex-Beatles estavam quase todos fora de catálogo aqui. Não havia internet nem contato com outros fãs. Um mercado colecionadorístico institucionalizado não existia nem em fantasia. Eu não sabia de quase nada.Felizmente, por outra sorte, eu tinha, como metaleiro, já um hábito de frequentar lojas de discos onde quer que elas existissem. Parecia que eu era atraído por elas. Podia acontecer de, andando na rua, eu meio que sentir um tipo de cheiro, e encontrar aquela lojinha no fundo de alguma galeria. Além do mais, já trazia do heavy metal a cultura do disco raro, da joia à espera de ser descoberta.Foi assim que consegui meu primeiro item do Ringo: um compacto de sete polegadas com "Only you" e "Call me", ambas retiradas do álbum "Goodnight Vienna":

1 de junho de 2011

44 anos atrás hoje

Escrever sobre o Sgt. Pepper's é quase tão bom quanto ouvi-lo.
"O estúdio torna-se um novo instrumento que permite alterar de diversas formas o som gravado: o corte, a sobreposição, a distorção, a alteração da velocidade da fita, a inserção de outros sons como recurso de citação (e não a citação composicional) aproximam a gravação das técnicas cinematográficas . Neste sentido, George Martin foi sem dúvida o Einsenstein da música popular". (GARCIA, 2000)