Pra contar a história da letra dessa canção eu poderia começar de tantos pontos diferentes no tempo... há alguns meses, em maio deste ano, aconteceu um show do meu parceiro Pablo Castro e banda (Guilherme De Marco (guitarra) Paulim Sartori (baixo) D'Artagnan Oliveira (bateria) Alê Fonseca (teclado) n'A Autêntica - bastião da canção autoral nas plagas do Curral D'El Rei - com participação antológica de Lô Borges tocando, segundo as palavras do próprio, o mais próximo do original os clássicos Trem Azul, Um girassol... e Para Lennon e McCartney. Foi demais, inesquecível e inenarrável... Não vou tentar descrever em palavras o que o Lô representa pra nós. Eu só conseguia lembrar da gente no apê que o Pablo morava, na Zoroastro Torres, ele tirando os discos do álbum que tinha aqueles dois meninos, um branco e um negro, pondo pra rolar, a gente ouvindo (entre tantos outros), e ele me mostrando as canções dele e depois a gente começando a fazer as nossas parcerias. E depois vi um longo arco do tempo descrevendo o desenho que levou até a noite daquele dia. Coisa de sonho real.
Eis que, no final de julho, o Pablo me telefona cheio de novidades, dentre elas a que motiva essa postagem, ou seja, que estava compondo uma canção com o Lô. Quase fiquei sem fala - quase, porque imediatamente perguntei se já tinha letra. Ele tinha começado, mas não estava propriamente satisfeito. Não hesitei, me prontificando a entrar na história e dar prosseguimento. Nos últimos tempos temos feito algumas canções assim, e pelo entendimento de tantos anos de parceria e amizade não há mistério nisso. Dessa vez, porém, um ingrediente a mais, e que ingrediente. Tremendamente generoso o Lô, nessa história toda. Quis trabalhar rápido, como se fosse preciso colocar logo a mão no troféu, não deixar escapar a oportunidade. Como pontos de partida, a gravação caseira, Pablo e Lô tocando a canção ainda sem letra, um A e um B e a partícula final lançada pelo Lô. E a parte da letra iniciada pelo Pablo, de que mantive até alguns versos inteiros (como Ávido, virei fiel/A cada sua aparição ), a ideia de usar proparoxítonas ( súbito, cálido, ávido, e depois lancei mais algumas, como órbita, átomos, partículas) e o tema romântico, contudo sem pieguice. Mas ainda faltava aquele conceito pra amarrar, sem o qual dificilmente eu consigo trabalhar. Foi pintando a temática sideral, muito forte na obra do Lô, e por ser a astronomia um assunto que curto desde a infância, enquanto o Pablo sempre teve uma ligação com astrologia. Custei mas achei o começo novo para a letra, pensando literalmente no começo do universo. Como bom fã de Cosmos penso que acertei na escolha de "pincel da Criação" - seria plausível imaginar Carl Sagan começando um programa comentando o teto da Capela Sistina, se é que não aconteceu mesmo. Como disse o Luiz Gabriel Lopes em sua relampejante leitura da canção, "referência bibliográfica é MATO". Se deixar enfio um monte mas ao mesmo tempo não poderia ficar parecendo um texto de astrofísica. Achei então os "sábios", lembrando da imagem de alquimistas, astrólogos antigos, etc., como a ilustração que tinha num livro que eu guardei desde criança e reproduzi aqui. Daí parti para aquele verdadeiro inventário do vocabulário afim, pensando especialmente em constelações, pois a ideia seria descrever a relação amorosa por meio delas. Quase tudo caiu, virou estrela cadente: Cruzeiro do Sul, cinturão de Órion, Hércules e o Leão, Virgem, Libra, Gêmeos...
Enfim, era um tipo de amor que oscilava entre o transcendental e a matéria, e me veio a ideia do cometa, puxado pela palavra "aparição", e ele por sua vez puxou "rastro" e "farol". Com alguns comentários feitos depois que a canção se tornou pública eu acabei recordando que a nossa geração teve uma onda com o cometa Halley e também que eu quando criança viajava muito pra Campinas-SP em ônibus da viação Cometa. Curiosamente, foi dentro de um ônibus, a caminho do campus da UFMG na Pampulha (ou na volta, talvez), que rascunhei mais uma boa parte da letra, usando pra tirar ideias um pequeno livro de astronomia para crianças que foi dos meus filhos e no dia que concluímos a letra dei para o filho do Pablo, meu afilhado. Foi dentro do busão que achei a chave da letra do B (escrevi: as leis da atração; gravidade; corpos) e saquei o título, homenageando a canção dos Beatles "Across the universe", que já foi lindamente gravada pelo Toninho Horta. Enfim, a gente, o Lô, Clube da Esquina e Beatles, nem preciso continuar explicando né. Daí encontrei também o lance do final, E ao final restar o nosso amor além/pelo bem de quem ainda amar a versão personalizada que eu sempre quis fazer dos versos de The End do medley final do Abbey Road. A partir daí não tive como fugir do desejo de fazer várias citações / homenagens às canções e aos letristas do Clube - Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Murilo Antunes, referências importantíssimas pra nós, ideias que ia anotando no verso de página de cópia de um artigo acadêmico escrito faz um tempo. Mas esse ouro não vou entregar, deixo pros leitores a tarefa de sair identificando letras citadas, estilos. Minto, vou dar a pista de uma só, porque é bem fora da curva: existe uma citação indireta, lateral, a uma canção de Hendrix. As outras são relativamente fáceis. Pra concluir, na gravação que eu tinha e fiquei ouvindo na viagem de ônibus (sim, porque da minha casa ao campus, com trânsito bom, gasto no mínimo 40 minutos), no final o Lô falava rapidamente sobre a última parte, usando a palavra "partícula". Resolvi que iria colocar essa palavra na letra, por mais inusitada e difícil de encaixar. Acabou saindo toda uma ideia para o final, pensando na morte e renascimento dos astros, na dança da matéria, no balé dos átomos. Foi literalmente como um cometa que essa canção pintou no nosso céu. Que ela tenha um destino no mínimo equivalente à emoção que foi fazê-la, e possa entrar na órbita da vida das pessoas.
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Por Todo o Universo ( Pablo Castro / Lô Borges / Luiz Henrique Garcia )
Sábios contam como o céu nasceu
Breve feito o raio rompe meu breu
Súbito mas natural
O pincel da Criação
Espalhou constelações ao léu
Véu que veste a noite se despiu
Órbita precisa de um cometa
Ávido, virei fiel
A cada sua aparição
O seu rastro certo é meu farol
Linhas do destino
O que se aproxima
Touro guarda a rosa pra domar meu coração
Lei da gravidade
invade nossos corpos
Por todo o universo em expansão
A cada beijo seu aflora um sol
Na espiral da minha Via Láctea
Cálido e atemporal
Nebulosa em combustão
Concebendo estrelas num lençol
Se tudo terminar numa explosão
Partículas de um sonho violeta
Átomos que fomos nós
par a par irão bailar
colorindo o espaço sideral
Linhas...
E ao final restar o nosso amor além
pelo bem de quem ainda amar
Breve feito o raio rompe meu breu
Súbito mas natural
O pincel da Criação
Espalhou constelações ao léu
Véu que veste a noite se despiu
Órbita precisa de um cometa
Ávido, virei fiel
A cada sua aparição
O seu rastro certo é meu farol
Linhas do destino
O que se aproxima
Touro guarda a rosa pra domar meu coração
Lei da gravidade
invade nossos corpos
Por todo o universo em expansão
A cada beijo seu aflora um sol
Na espiral da minha Via Láctea
Cálido e atemporal
Nebulosa em combustão
Concebendo estrelas num lençol
Se tudo terminar numa explosão
Partículas de um sonho violeta
Átomos que fomos nós
par a par irão bailar
colorindo o espaço sideral
Linhas...
E ao final restar o nosso amor além
pelo bem de quem ainda amar
Luiz Gabriel Lopes [via facebook] : kebelezza meus txai. vejo - oiço - o genuíno traço loborgiano de progressões cromáticas alla beatles com engendros harmónicos simples porém belos - acorde broxa, subV com 7M, etc #javicasosassim temática viajandona estelar mezo-mística algo setentista - NEBULOSA EM COMBUSTÃO imagem síntese do lirismo telúrico baluniano Garcia - tudo alinhavado pelo sábio conhecimento alquímico cancional queiroziano em seus chicotinhos vocais de segunda maior #javicasos #adoro & outros singulares trejeitos que conferem à presente peça vocação instantêna de clássico. BRAVO.
ResponderExcluirRafael Senra [via facebook]: Cara, que fantástico esse entrelaçamento. O Lô, que é esse Peter Pan do Clube, em plena atividade e compondo canções novas tão belas, se unindo a vocês, Pablo e Luiz, talentosos e profundamente conectados com o lastro fundamental do ethos clubista. E o resultado guarda o melhor do olhar dos três, na letra que aborda essa dualidade cósmico/cotidiano mantendo-se inspirada e distante de clichês, ou na melodia sinuosa que nunca incorre em soluções comuns. Um viva! para vocês, e parabéns pela criação e pelo encontro!
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