Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

22 de outubro de 2016

Eldorado Subterrâneo da Canção - O princípio da incerteza

Há bastante tempo meu parceiro Pablo Castro aventava a ideia de criar uma série de análises - agudas e holísticas, mas não herméticas ou pesadas - de canções de lavra recente, especialmente aquelas compostas por cantautores nossos contemporâne@s da cena mineira que por 'n' razões - que poderão até vir a ser debatidas por aqui - permanecem ainda alheias dos ouvidos de uma parte substancial do público, certamente sem merecer tal destino. Convencionou denominar esse enorme estoque da produção criativa apartada das ondas mais pujantes dos meios massivos de "eldorado subterrâneo da canção". Considerando tal iniciativa mais que urgente e necessária, além de reconhecer nela a correspondência direta com minhas preocupações com o entendimento da música popular como patrimônio cultural, já estava o blog de antenas atentas para a primeira extração de textos trouxesse os tesouros do subsolo às orelhas e olhos de seus leitores. Ei-la:
Luiz H. Garcia (editor)

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Comentei hoje com um amigo uma tese que tenho : pra mim , a grande riqueza harmônica que a música brasileira carrega tem muito a ver com o violão, que é um instrumento barato e portátil, que permite ao músico dedicado e criativo um mundo de combinações de acordes que basta perspicácia e vontade pra explorar.
Não é necessário um grande investimento financeiro para que se busquem nova soluções harmônicas. E elas se expandem para várias direções, não apenas no sentido da complexificação dos acordes e da abundância de dissonâncias.
São minúcias misteriosas que conferem à narrativa afetiva da música novas experiências de fruição. Portanto, eu continuo valorizando esse aspecto da música, sobretudo da música popular. É claro que a música não se resume a harmonia, e muitas e muitas pérolas foram compostas sobre as bases mais simples do tonalismo e do modalismo.
Mas frequentemente vejo novos artistas negligenciando esse aspecto, das possibilidades criativas da harmonia. E pra enriquecer a sua harmonia há tantas possibilidades que me parece, mais do que tudo, preguiça de sequer tentar. 


Pablo Castro entre os parceiros Kristoff Silva e Makely Ka 

Vejo isso também como um subproduto do eterno processo de imposição estrangeira imperialista sobre a música popular. Porque, com a exceção do jazz, e em boa medida do rock sessentista e setentista, a inovação harmonia foi suprimida dos ouvidos das massas.
Digo isso apenas como um preâmbulo para a audição da grande canção O Princípio da Incerteza, dos meus parceiros Kristoff Silva e Makely Ka .
É sabido que Kris quase nunca faz a música antes da letra, prefere quase sempre musicar uma letra pronta. E é notável como ele colore os sentimentos da letra com passagens harmônicas nebulosas, intangíveis, para dar incisividade ao discurso do parceiro. 

Essa é apenas uma das formas geniais de preparar Neston. 
Pablo Castro  




O Princípio da Incerteza ( Kristoff Silva e Makely Ka)
[álbum: Deriva, de Kristoff Silva - ouça aqui]



nossa única certeza é a morte
um princípio e razão fundamental
sua fria beleza é uma arte
nosso elo final com a perfeição
sutileza cirúrgica de um corte
a navalha de Ockan na razão


todo o resto é incerto e duvidoso
um deserto sem sol na escuridão
uma voz de dentro de um fosso
numa língua que não tem tradução


quando tudo jazer inerte
como a lâmina dura do metal
quando o sangue
estancar sua corrente
e então soçobrar respiração
viver cada segundo eternamente
sem sofrer por antecipação

não vai haver qualquer despesa
nem sequer um funeral
um átimo de delicadeza
o peso a entrar em suspensão
21 gramas de leveza
nossos pés já não mais
ao rés do chão 


e se a vida for como uma brisa
um sopro reverso e terminal
o pescoço não sustentar cabeça
o esforço não encontrar ação
esse é o princípio da incerteza
essa é a nossa condição


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