Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

7 de janeiro de 2019

PRA TOCAR UM BLUE

PRA TOCAR UM BLUE

Faz tempo que não escrevo para esta seção e hoje me veio direto num flash esse raio partido diretamente do início da década de 1990. Então um estudante secundarista começando a pôr o pé na rua para participar de passeata, campanha política, disputando grêmio estudantil, vivendo com bastante intensidade alguns momentos de inauguração. E foi ali também que um indisciplinado aprendiz de violão inaugurava também uma nova trilha na vida, tateando acordes mas riscando, com um pouco mais de convicção, as pautas das páginas que sempre sobravam nos enormes cadernos de 10 matérias, populares naquela época de ensino médio. Mal sabia eu então o grande espaço que a música popular viria ocupar em meu futuro, mas já estava de algum modo fisgado pela ideia de ser mais que meramente um ouvinte. E com algum tempo de convivência no pátio do colégio, tinha feito amizade com um sujeito de longos cabelos, atitude rebelde, e, sobretudo, muito inteligente e talentoso. Enquanto eu era ali um iniciante, Pablo Castro já tinha anos de palco, banda, canções de sua própria lavra. A banda em questão, baseada em Juiz de Fora, se chamava Delirium Tremmens, era formada por ele, seu primo Aluísio Ribeiro (esquematicamente eles se dividiam entre as guitarras solo e base, mas tocavam outros instrumentos também), Messias Lott no baixo e Luciano Baptista na bateria. Fui conhecendo e curtindo o som da banda - ousado e singular - e em algumas poucas oportunidades também pude acompanhar ensaios e shows. Eu era, para todos os efeitos, ainda meio preso, pouco móvel, e na verdade descobria de fato alguma independência naquela época. E era, para todos os efeitos, muito careta. Talvez fosse através dos escritos, incipientes arroubos juvenis, que possivelmente eu me visse escapando um pouco de um cotidiano previsível. Tudo era incipiente, mas ali eu vislumbrava a chance de fazer algo de criativo. 
Em meio a muitos acontecimentos que inflariam demais esse texto, o negócio é que a banda venceu um concorrido concurso promovido pelo Jornal do Brasil, em 1993, cujo prêmio era gravar uma demo no Rio de Janeiro. Nesse ínterim, o Pablo estava compondo um rock danado - bem acima da média, cá entre nós - com um riff bem elaborado, uma forma interessante, uma levada empolgante e energética, como os leitores poderão comprovar ouvindo e assistindo a performance do Delirium Tremmens. Num dia em que eu estava na casa dele, já depois de anunciado o prêmio, num dado momento em que o Pablo estava ocupado com outro assunto eu me vi diante de papel, lápis e oportunidade, de modo que me arvorei, sem combinação alguma, a fazer a letra da canção, tirando inspiração justamente da eminência da ida da banda ao Rio. A letra foi feita numa sentada, e traz algumas sacadas pouco usuais para um rock jovial, como rimas internas e brincadeiras metalinguísticas sobre gênero musicais: o blues, obviamente reforçado no refrão, inclusive na inusitada referência ao vidro de remédio (alvo de vários trocadilhos internos), que me veio à cabeça porque eu andava brincando de usar um para tocar slide, sem proficiência alguma; a bossa nova, à qual eu remeti pelo vocabulário que usava para falar de um Rio mais estereotipado impossível, e o próprio rock and roll. Mas sobretudo minha ideia foi fazer uma espécie de carta de intenções firmadas a partir da ida da banda à Cidade Maravilhosa.
Logo que mostrei, diante da surpresa, felizmente sucedida de convicta aprovação, nasceu nossa parceria, que portanto já acumula mais de um quarto de século de atividade. Foi também, muito apropriadamente, a minha primeira letra de canção a ser gravada em estúdio, no Sonhos e Sons do Marcus Vianna, em 1994.



Pra tocar um blue (Pablo Castro/Luiz H. Garcia)

É maio, eu saio e fico assim
olho pra baixo e caio em mim
É Rio e eu crio fé na mão
ando pra frente pé no chão

Escapo do sofá do prédio
e compro um vidro de remédio
pra tocar um blue

É dia e eu ia ver o cais
mas tô cansado e além do mais
É Rio e eu crio um roquenrou
pra te dizer onde é que eu vou

Escapo...

Entorno a noite e a madrugada te esperando
um blue e nada mais rolando

É sal e eu mal posso entender
a vida é dura de viver
É Rio e eu crio um céu azul
que não combina com meu blue

Escapo...

Entorno a noite...

É sol e eu volto a repetir
há muita estrada pra seguir
É Rio e eu crio um novo som
e canto sempre no meu tom

Escapo...



Um comentário:

  1. Aluísio Ribeiro fez este precioso comentário: Luiz Henrique Assis Garcia bom demais! Sou fã dessa letra, e sou autor de alguns dos trocadilhos feitos com ela. Compro um quilo de remédio, um litro de remédio, fazendo alusões à faculdade de farmácia...

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