Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

20 de dezembro de 2020

McCartney fez a trinca

O lançamento de um disco novo de estúdio de Paul McCartney por si motivaria uma postagem. Não preciso chover no molhado celebrando o talento de um dos maiores cantautores do mundo em atividade. Provavelmente não há paralelo no universo da música popular veiculada pela indústria fonográfica para seu holismo, plenamente registrado neste McCartney III. Como nas duas outras obras dessa agora trilogia, Paul compôs música e letra, cantou (com a exceção de alguns vocalizes de Linda, então sua esposa, no primeiro), arranjou, tocou todos os instrumentos, produziu e fez todo trabalho de engenharia de som (neste contou com alguns auxílios como se vê na ficha técnica), praticamente tudo sozinho. Hoje isso não é particularmente raro ou difícil em si, mas certamente ele é um pioneiro da prática e a excelência com que realizou tal empreitada, agora pela terceira vez, é digna de assombro. E o faz quase aos 80 anos de vida, nesse duro contexto de isolamento motivado pela atual pandemia, com um fôlego impressionante. Sua jovialidade às vezes passa do ponto e o leva a empreitadas tolas - como disse meu parceiro Raul Mariano, a quarentena nos poupou de um provável single com Miley Cyrus ou Taylor Swift. Por outro lado ela ecoa a inesgotável criatividade de quem, entre outras peripécias, junto com os demais Beatles, rompeu a barreira da sala de controle e revolucionou a arte da gravação. Mais notável é que ela se alia a uma maturidade assumida em cabelos brancos (ostentados na contracapa) e experiência de sobra, sinergia que o clima do disco traduz em contrastes que assinalam que inteireza não precisa ser o mesmo que homogeneidade. 

Como já foi ressaltado nas primeiras críticas que saíram, os discos que compõem a trinca comungam, além do modo de sua fatura, a demarcação cronológica de lançamento em anos redondos (1970, 1980, 2020) e momentos difíceis: McCartney na separação dos Beatles, McCartney II no fim de sua banda Wings, e este agora, num contexto de apreensão global, ainda que pessoalmente ele esteja tirando de letra, cercado de familiares e trabalhando confortavelmente em seu próprio estúdio em Sussex, numa temporada que divertidamente ele nomeia com o trocadilho 'rockdown'. É preciso dizer que nesse conforto todo ele encontrou um refúgio seguro, mas fez disso impulso para criar sem a interferência de turnês, ensaios com banda, viagens, atividades de divulgação e outras agendas. Claro que seria plenamente possível ter outros músicos tocando, até mesmo à distância, com a tecnologia disponível hoje em dia, mas claramente ele fez dessa solidão sua própria terapia. Uma felicidade que ele tenha compartilhado com todos nós o resultado. Um tremendo workaholic, Paul teve tempo para esculpir lenta e pacientemente cada gravação, pintar camada após camada, trabalhando como um artífice experimentado que inclusive se permite deixar arestas, rudezas, fazendo desse contraste entre o áspero e o delicado um conceito estético que também aproxima os três álbuns mas neste se afirma soberano, expresso inclusive na capa do disco. O dado com a face no três, em que a leitosa superfície branca contrasta com as negras cavidades em trio, o claro e o escuro, o evidente e o misterioso, o polido e o rude, é a tradução visual de sua sonoridade. Também remete ao piano, à combinação de ébano e marfim que mereceu de Paul uma bela canção. Aliás pode ser em um lustrado tampo de um piano que o dado, em impossível equilíbrio, é refletido. Imagem simples, sintética e eficaz.

Passemos ao som, o que mais importa. Numa discografia vasta e variada como a de McCartney, é ainda mais inevitável situar um disco novo lançado. Para além da trilogia em si, portanto. Só neste milênio Paul lançou, com este, 7 álbuns de estúdio, apenas um deles - um fato único em sua obra - exclusivamente como intérprete, o ótimo Kisses on the bottom (2012). Entre os demais reluz Chaos and creation in the backyard (2005) que está certamente entre os melhores de toda sua carreira após os Beatles. O resto é cheio de altos e baixos, normal para um artista que seguiu preferindo ser prolífico. Mais recentemente, depois do pouco notável New (2013) ele lançou Egypt Station (2018), um dos pontos mais baixos de toda sua discografia, com canções de uma pobreza terrível para os padrões que ele já atingiu, muita auto indulgência e um comercialismo raso de quem inverte as prioridades e coloca a música a serviço da atração de plateias novas e das execuções em turnês em estádios lotados. Em McCartney III Paul se sentiu totalmente livre dessa fórmula, ainda que ao mesmo tempo construa o disco como um exercício de recapitulação a partir de esboços pinçados dos arquivos de seu celular, ou numa excursão praticamente arqueológica que fez no início do processo ao retomar When winter cames, singelo tema folk com jeito de fábula gravado no início dos anos 1990s que consta ter sido mostrado a George Martin, e acabou sendo a última faixa. Assim como a memória opera mesmo, retomando e atualizando os materiais que recupera, quando Paul quer ele filtra muito bem o que está rolando e assimila ao repertório vastíssimo que tem na cabeça. Livre das colaborações infelizes com os ídolos pop de ocasião, ele contribui consigo mesmo, como se estivesse tocando lado a lado com o Paul dos Beatles, o dos Wings, o de diferentes décadas de sua longa carreira solo - Find my way é o exemplar concentrado de como temperar a levada de hit radiofônico com cravo e camadas de guitarras reiteradas (com pios do riff dobrado de And your bird can sing). E aí ele aplica sua burilada capacidade de mesclar cantigas rústicas em que as cordas de aço do violão parecem cortar sutilmente o ar (a instrumental Long tailed winterbird, que volta como vinheta antes da última faixa) com riffs diretos e furiosos em rocks animados e despretensiosos (Slidin', Lavatory Lil, cruzamento retrô abbeyroadiano do humor negro de Maxwell's Silver Hammer com a pegada sacana de Polythene Pam), concentrados românticos dedilhados assobiáveis (The kiss of Venus, Pretty Boys - cujo traço ciclístico e crítico ao consumismo me remeteu a Biker like an icon e Junk), canções de alma camerística (a beatlelesca Seize the day, decalcando o consagrado mote carpe diem e citando levemente o arranjo de cordas de For no one)  excursões mântricas experimentais (Deep deep feeling), mergulhos embalados em soul emborrachado (Deep down), ou reflexivas e confessionais baladas ao piano (Women and wives). Um breve "faixa a faixa" do próprio Paul foi publicado aqui.

As letras merecem destaque, muito melhores do que no disco anterior. Se há alguns costumeiros deslizes pueris, típicos dele, há apreciações maduras sobre ansiedades e montanhas-russas emocionais de nossa época, bem como um apelo à consequência e ao cuidado. Os títulos haviam me chamado a atenção antes de sair o disco e amarram bem o conceito central de contrapor o cenário de apreensão e dificuldade, simbolizado pelo inverno, ao desejo de superá-lo, metaforizado pelo pássaro e representações associadas a voo e deslocamento. Cigarra e formiga, Paul McCartney canta o necessário abrigo para tempos difíceis já intercalado com o assovio que anuncia que dias melhores virão. Suas canções fazem parte dessa trilha.  


* Deixo um agradecimento especial ao meu amigo Guilherme Lentz, com quem tive o prazer de partilhar uma primeira apreciação e trocar ideias pessoalmente sobre o disco, e ao parceiro Thiakov, pela audição comentada compartilhada numa conversa via whatsapp que anulou a distância transatlântica.  

** Paul respondeu muitas questões de fãs - inclusive sobre o disco - na rede social Reddit, aqui

*** Faixas bônus

Bonus Japan Women And Wives ( Studio Outtake

Lavatory Lil ( Studio Outtake

The Kiss Of Venus ( Phone Demo

Slid in’ ( Düsseldorf Jam )

****Um bom artigo que complementa [aqui]

13 de dezembro de 2020

DEIXA ACONTECER

Aproveitando o embalo vou fazer mais uma postagem no estilo "contando as letras". Mais uma das minhas parcerias com o Daniel Guimarães, feita totalmente à distância mas bem antes desse impositivo momento que infla indesejavelmente o apelo aos recursos digitais de comunicação. Foi uma das primeiras que fizemos. No intuito de compensar a falta do contato pessoal trocávamos longas mensagens através da rede. Enquanto ainda buscávamos um entrosamento que certamente veio com o tempo, eu procurava relatar com certa minúcia o que vinha à minha cabeça à medida que ia escrevendo. Tenho aqui algumas "anotações" que vou compartilhar para dar um pouco essa sensação de bastidor, de making of. Expressão que me veio a calhar aqui agora porque além de uma sugestão de que a música tinha sido a princípio sobre um personagem errante, e numa outra versão sobre uma tempestade, ela me soou desde sempre cinematográfica. Relatei assim minhas impressões após o primeiro esboço que encaminhei ao parceiro:

Comecei com esse imperativo, “abra”, e de uma certa forma foi pintando uma ideia de conciliar de algum modo esses temas sugeridos, o errante e a tempestade. E a coisa foi surgindo meio num conceito cinematográfico, filme de faroeste. Ficou uma coisa mais icônica, representando a ruptura com uma situação prévia indesejada. De uma certa forma isso também foi inspirado por uma conversa com a minha filha de 16 hoje sobre a dificuldade dela sair da aula de teatro.



E quando chegou ao final eu tinha que arrumar companhia para o “deixa acontecer” me ocorreu que a ideia era mais um ato de amadurecimento que de rebeldia, saber deixar a mudança acontecer... pensei no lance do samurai. Curiosamente foi uma palavra que eu evitei propositadamente em “Ponto Oriental”, mas aqui acho que cabe, até pelo lance de Sete homens e um destino ser uma versão d’Os sete samurais do Kurosawa. 

Engraçado que certas conciliações aparentemente improváveis, ou aproveitamentos de frases casuais ou até nomes de arquivos, podem acabar dando muito certo. Quanto mais esse tipo de coisa funciona, mais eu tento. A forma é clássica e direta, verso e refrão.
Usei imperativos com a vogal aberta "a" para abrir as estrofes, procurando ainda fazer rimas cruzadas na "cabeça" e na "cauda" das estrofes ímpares e paresinterpolando rimas paralelas, de modo que o esquema é algo como A *BB* C (1-3) ou D (2-4), com uma desobediência na primeira estrofe, porque eu não quis mudar os versos espontâneos que deram a esporada inicial da cavalgada. Igualmente espontâneo foi o "deixa acontecer" do refrão, que é literalmente metanarrativo em relação à confecção da letra - ou seja, meu ouvido me soprou as palavras e eu simplesmente deixei acontecer, sem duvidar dele. Em certas situações a gente precisa ser um pouco menos aferrado, sentir o vento mesmo. A canção no fundo é sobre como lidar com a mudança e tocar em frente.

 

Deixa acontecer (Daniel Guimarães/Luiz H. Garcia)

Abra
Atreva-se a partir
O horizonte em dois
O sol em cruz

Sela
O dorso do alazão
Um raio pela mão
O vento atrás

Alça
O voo do urubu
Abraça o tempo nu
Avista a luz

Vela
A sombra do caubói
Corte que ainda dói
Sem sangrar mais

Ultrapassa os temporais
Deixa acontecer
Na paz sagaz dos samurais
Deixa acontecer  

Deixa acontecer 


 

12 de dezembro de 2020

SANTA PIRAMBEIRA

Mais um aniversário da terra natal. Belorizonte, Beagá, seja como for, é nossa. Passei oito anos trabalhando no museu histórico da cidade, fora o tanto que continuei pesquisando e escrevendo sobre ela, ainda que procurando também variar escalas de observação e dar uma mudada de foco pra não enjoar. Por uma feliz coincidência, meu grande parceiro Maurício Ribeiro fez uma "live" hoje direto da Espanha e tocou nossa mais recente parceira, "Santa Pirambeira", que nada mais é que um despretensioso sambinha cuja letra é uma homenagem a um bairro de Belo Horizonte, o Santo Antônio, o que mais gosto e onde morei a maior parte da minha vida, especialmente depois de adulto. Agora estou no bairro ao lado, mas é questão de metros. Ainda subo e desço várias de suas pirambeiras com frequência. 

Seria longo, e provavelmente desinteressante para boa parte dos leitores, fazer um relato autobiográfico cujo resumo é que gosto do bairro, apesar de seus muitos morros, vivi em 5 endereços diferentes nele, em etapas distintas da vida, criei filhos, cultivei amizades dentre as que marcaram a infância, a juventude e as que perduram até o presente, numa dada época estudei, fiz judô e até catecismo numa igreja católica, como bom filho de família mineira classe-média, até me rebelar com 12, 13 anos rsrs. Das lembranças afetivas da paisagem, a mais bem guardada é olfativa: o cheiro de Dama da noite que embalou incontáveis caminhadas.



Queria muito fazer uma letra sobre esse pedaço da cidade, que fica na zona sul mas tem uma certa diversidade propiciada pela proximidade da Copasa e algumas repartições, escolas públicas, predinhos pequenos de condomínio barato, uma economia de bairro que ainda subsiste, casais de idosos persistentes em uma ou outra casa velha. O sambinha simpático, cheio de ginga e com a costumeira dose de variação melódica e formal do Maurício veio a calhar, me remetendo imediatamente a uma situação divertida, a imagem de uma mulher de salto alto descendo um morrão. Isso foi sugerindo alguns quadros e situações, e como tenho feito quando sinto que não tenho assim tanto espaço (se tiver eu vou tentar resumir um romance) apelei para uma coisa mais telegráfica e menos narrativa. Fiz um rol de ruas e depois me surgiu a ideia de uma corrida de táxi imaginária (e com licença poética em termos de urbanismo) como se o eu-lírico estivesse orientando o motorista até chegar ao destino, um bar - lógico, é quase que um a cada esquina, ou às vezes vários na mesma - onde esperaria sua paquerada dama de salto alto. As vias que preferi foram os que permitiam rimas internas e duplos sentidos interessantes, e as nomeadas por árvores frutíferas me sugeriram o "pirambeira", quando eu não achei jeito de botar Santo Antônio em lugar nenhum. Foi melhor, deixou a coisa um pouco menos explícita. E finalmente, dentro do espírito lúdico que a lira nos garante, achei esse rolimã rimado com scarpin (pronunciada iscarpã), jogada usual para craques como Aldir e Chico, ainda que aqui seja mais previsível porque a primeira já foi uma adaptação do francês ao português. Segue a live do facebook, e se a curiosidade for muito grande, a canção em questão entra ali por volta de 1:08:00. 

Santa pirambeira (música de Maurício Ribeiro, letra de Luiz Henrique Garcia)

Sobe, de primeira a
Mangabeira, Marabá
Flor que sim se cheira
Perfume lembrará

Toca de bobeira
Pirambeira, Matipó
Toda sexta-feira
Bato ponto aqui, ó

Vou esperar num bar
Na Mar de Espanha
Vai passar Primeira Dama
Na calçada a desfilar

Salto scarpin
Santa pirambeira
rolimã
Santa pirambeira
Scarpin
(alterna)

Santa pirambeira, piram-beira, piram...bá (final)

Vira Pitangueiras
Primavera, volta já
Abre Campo inteira
Viçosa cresce lá

Corta na Teixeira,
Entra a Viera pela mão
Morros e Bandeiras
três carolas no portão

Vou esperar num bar
Na Carangola
A Princesa Leopoldina
Elegância a desfilar

Salto...