O lançamento de um disco novo de estúdio de Paul McCartney por si motivaria uma postagem. Não preciso chover no molhado celebrando o talento de um dos maiores cantautores do mundo em atividade. Provavelmente não há paralelo no universo da música popular veiculada pela indústria fonográfica para seu holismo, plenamente registrado neste McCartney III. Como nas duas outras obras dessa agora trilogia, Paul compôs música e letra, cantou (com a exceção de alguns vocalizes de Linda, então sua esposa, no primeiro), arranjou, tocou todos os instrumentos, produziu e fez todo trabalho de engenharia de som (neste contou com alguns auxílios como se vê na ficha técnica), praticamente tudo sozinho. Hoje isso não é particularmente raro ou difícil em si, mas certamente ele é um pioneiro da prática e a excelência com que realizou tal empreitada, agora pela terceira vez, é digna de assombro. E o faz quase aos 80 anos de vida, nesse duro contexto de isolamento motivado pela atual pandemia, com um fôlego impressionante. Sua jovialidade às vezes passa do ponto e o leva a empreitadas tolas - como disse meu parceiro Raul Mariano, a quarentena nos poupou de um provável single com Miley Cyrus ou Taylor Swift. Por outro lado ela ecoa a inesgotável criatividade de quem, entre outras peripécias, junto com os demais Beatles, rompeu a barreira da sala de controle e revolucionou a arte da gravação. Mais notável é que ela se alia a uma maturidade assumida em cabelos brancos (ostentados na contracapa) e experiência de sobra, sinergia que o clima do disco traduz em contrastes que assinalam que inteireza não precisa ser o mesmo que homogeneidade.
Como já foi ressaltado nas primeiras críticas que saíram, os discos que compõem a trinca comungam, além do modo de sua fatura, a demarcação cronológica de lançamento em anos redondos (1970, 1980, 2020) e momentos difíceis: McCartney na separação dos Beatles, McCartney II no fim de sua banda Wings, e este agora, num contexto de apreensão global, ainda que pessoalmente ele esteja tirando de letra, cercado de familiares e trabalhando confortavelmente em seu próprio estúdio em Sussex, numa temporada que divertidamente ele nomeia com o trocadilho 'rockdown'. É preciso dizer que nesse conforto todo ele encontrou um refúgio seguro, mas fez disso impulso para criar sem a interferência de turnês, ensaios com banda, viagens, atividades de divulgação e outras agendas. Claro que seria plenamente possível ter outros músicos tocando, até mesmo à distância, com a tecnologia disponível hoje em dia, mas claramente ele fez dessa solidão sua própria terapia. Uma felicidade que ele tenha compartilhado com todos nós o resultado. Um tremendo workaholic, Paul teve tempo para esculpir lenta e pacientemente cada gravação, pintar camada após camada, trabalhando como um artífice experimentado que inclusive se permite deixar arestas, rudezas, fazendo desse contraste entre o áspero e o delicado um conceito estético que também aproxima os três álbuns mas neste se afirma soberano, expresso inclusive na capa do disco. O dado com a face no três, em que a leitosa superfície branca contrasta com as negras cavidades em trio, o claro e o escuro, o evidente e o misterioso, o polido e o rude, é a tradução visual de sua sonoridade. Também remete ao piano, à combinação de ébano e marfim que mereceu de Paul uma bela canção. Aliás pode ser em um lustrado tampo de um piano que o dado, em impossível equilíbrio, é refletido. Imagem simples, sintética e eficaz.
Passemos ao som, o que mais importa. Numa discografia vasta e variada como a de McCartney, é ainda mais inevitável situar um disco novo lançado. Para além da trilogia em si, portanto. Só neste milênio Paul lançou, com este, 7 álbuns de estúdio, apenas um deles - um fato único em sua obra - exclusivamente como intérprete, o ótimo Kisses on the bottom (2012). Entre os demais reluz Chaos and creation in the backyard (2005) que está certamente entre os melhores de toda sua carreira após os Beatles. O resto é cheio de altos e baixos, normal para um artista que seguiu preferindo ser prolífico. Mais recentemente, depois do pouco notável New (2013) ele lançou Egypt Station (2018), um dos pontos mais baixos de toda sua discografia, com canções de uma pobreza terrível para os padrões que ele já atingiu, muita auto indulgência e um comercialismo raso de quem inverte as prioridades e coloca a música a serviço da atração de plateias novas e das execuções em turnês em estádios lotados. Em McCartney III Paul se sentiu totalmente livre dessa fórmula, ainda que ao mesmo tempo construa o disco como um exercício de recapitulação a partir de esboços pinçados dos arquivos de seu celular, ou numa excursão praticamente arqueológica que fez no início do processo ao retomar When winter cames, singelo tema folk com jeito de fábula gravado no início dos anos 1990s que consta ter sido mostrado a George Martin, e acabou sendo a última faixa. Assim como a memória opera mesmo, retomando e atualizando os materiais que recupera, quando Paul quer ele filtra muito bem o que está rolando e assimila ao repertório vastíssimo que tem na cabeça. Livre das colaborações infelizes com os ídolos pop de ocasião, ele contribui consigo mesmo, como se estivesse tocando lado a lado com o Paul dos Beatles, o dos Wings, o de diferentes décadas de sua longa carreira solo - Find my way é o exemplar concentrado de como temperar a levada de hit radiofônico com cravo e camadas de guitarras reiteradas (com pios do riff dobrado de And your bird can sing). E aí ele aplica sua burilada capacidade de mesclar cantigas rústicas em que as cordas de aço do violão parecem cortar sutilmente o ar (a instrumental Long tailed winterbird, que volta como vinheta antes da última faixa) com riffs diretos e furiosos em rocks animados e despretensiosos (Slidin', Lavatory Lil, cruzamento retrô abbeyroadiano do humor negro de Maxwell's Silver Hammer com a pegada sacana de Polythene Pam), concentrados românticos dedilhados assobiáveis (The kiss of Venus, Pretty Boys - cujo traço ciclístico e crítico ao consumismo me remeteu a Biker like an icon e Junk), canções de alma camerística (a beatlelesca Seize the day, decalcando o consagrado mote carpe diem e citando levemente o arranjo de cordas de For no one) excursões mântricas experimentais (Deep deep feeling), mergulhos embalados em soul emborrachado (Deep down), ou reflexivas e confessionais baladas ao piano (Women and wives). Um breve "faixa a faixa" do próprio Paul foi publicado aqui.
As letras merecem destaque, muito melhores do que no disco anterior. Se há alguns costumeiros deslizes pueris, típicos dele, há apreciações maduras sobre ansiedades e montanhas-russas emocionais de nossa época, bem como um apelo à consequência e ao cuidado. Os títulos haviam me chamado a atenção antes de sair o disco e amarram bem o conceito central de contrapor o cenário de apreensão e dificuldade, simbolizado pelo inverno, ao desejo de superá-lo, metaforizado pelo pássaro e representações associadas a voo e deslocamento. Cigarra e formiga, Paul McCartney canta o necessário abrigo para tempos difíceis já intercalado com o assovio que anuncia que dias melhores virão. Suas canções fazem parte dessa trilha.
* Deixo um agradecimento especial ao meu amigo Guilherme Lentz, com quem tive o prazer de partilhar uma primeira apreciação e trocar ideias pessoalmente sobre o disco, e ao parceiro Thiakov, pela audição comentada compartilhada numa conversa via whatsapp que anulou a distância transatlântica.
** Paul respondeu muitas questões de fãs - inclusive sobre o disco - na rede social Reddit, aqui.
*** Faixas bônus
Bonus Japan Women And Wives ( Studio Outtake )
Lavatory Lil ( Studio Outtake)
The Kiss Of Venus ( Phone Demo )
Slid in’ ( Düsseldorf Jam )
****Um bom artigo que complementa [aqui]