Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Páreo duríssimo. Claro, antes de mais nada é muito bom ver um disco que eu amo e admiro ser considerado o melhor da história da música brasileira. É muito bom também constatar que com muita persistência, num esforço para o qual tenho o maior orgulho de ter contribuído, o Clube da Esquina venceu o nariz torcido da grande mídia eternamente centrada no eixo Rio-São Paulo, e tem hoje todo o reconhecimento de crítica que merece, dentro e fora da academia. Quanto ao público, sempre se pode alcançar outras mentes e corações, e por isso também esse tipo de iniciativa se justifica para gerar um burburinho
Essas listas são sempre muito discutíveis - já tratei disso no blog, especialmente em Famigeradas listas e a questão do gosto, e Mais uma lista. Eu preferia que tivessem dito que era apenas da MPB, por exemplo, pq essencialmente é o que está na lista aí. A concentração num período relativamente curto da história (por mais que eu adore, e até estude esse período), deixa evidente que o "juri" foi muito homogêneo. Só os Racionais "furaram"entre os 10 primeiros (me recuso a usar o termo top)... mesmo considerando os artistas, eu acharia por exemplo Matita Perê mais disco que Elis & Tom... ou o Edu & Tom... poderia preferir Joia/Qualquer Coisa a Transa... ou Noites do norte a ambos... Expresso 2222 do Gil é o projeto tropicalista mais bem acabado de todos, quiçá ultrapassado... enfim... a única coisa boa mesmo em lista é a possibilidade de discuti-la.
Como parte das atividades da bolsa de iniciação científica (IC) concedida pelo CNPq para o projeto Patrimônio urbano e música popular: acervos e lugares que coordeno, o bolsista Isac Santana produziu uma pequena resenha que decidimos em conjunto transformar em postagem do blog. O foco é a comparação entre listas de consagração de bens culturais elaborados por políticas de patrimônio e as listas elaboradas por compositores populares para celebrar seus pares. Transcrevi-a abaixo, com algumas pequenas modificações.
Referência: TRAVASSOS, Elizabeth. Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular.Porto Alegre, 03 maio 2006, 11p.Texto elaborado para o debate A memória da música popular promovido peloProjeto Unimúsica 2006 – festa e folguedo. [para baixar o texto, aqui]
A autora, em 2008.
Ao falar de música popular em seu texto, Elizabeth Travassos traz os elementos das listas comparando aquelas que foram criadas pelas políticas de patrimônio e as listas feitas em canções populares, apresentando um contraste existente nas análises dessas listas. Para elucidar seus pensamentos sobre as listas, a autora começa apresentando as proclamações da UNESCO sobre obras-primas do patrimônio cultural oral e imaterial da humanidade, que abrangem praticas, representações, conhecimentos e técnicas, o que nos instiga a olhar as práticas sociais e festas como obras-primas. Dentro dessa lista da UNESCO temos como exemplo arte gráfica e oral dos índios Wayãpi, o canto védico na Índia o teatro de bonecos na Indonésia e a festa dos mortos no México. Ao proclamar esses objetos a UNESCO tenta reconhecer o seu “valor” mas não trabalha esses patrimônios diretamente com os agentes produtores de cultura. A antropóloga Barbara Kirshenblat-Gimblett observa que: “o patrimônio é um modo de produção cultural que insufla vida nova nos fenômenos culturais em vias de extinção ou que saíram de moda, ao exibi-los como patrimoniais”. Mesmo a lista tendo efeitos importantes sobre as comunidades geradoras dessas obras é difícil prever os impactos dessas proclamações. Aqui no Brasil, além de participar das proclamações da UNESCO, temos nossa própria política sobre patrimônio imaterial. Os nossos bens culturais são registrados em quatro livros de acordo com a sua categoria: há um livro para os Saberes e Modos de Expressão, outro para as Celebrações, outro para as Formas de Expressão e outro para os Lugares. Como esclarece Travassos:
Observe-se que os documentos brasileiros não empregam a categoria ‘obra-prima’. Tampouco acentuam o ato de proclamar. Entre nós, a ênfase do discurso está na inscrição em Livros, em registrar por meio da letra o que era falado e vivido sem necessidade da escrita. (TRAVASSOS, 2006, p.3)
A autora destaca propositalmente itens na lista da UNESCO relacionados a música e dança para enfatizar que são sempre grandes potenciais e merecedoras de proteção, e começa então a apresentar as listas que são usadas dentro da música popular. Elizabeth escolhe 3 canções. A primeira canção que usa como exemplo é do Sr. Joaquim Crisóstomo, de São João d’Aliança. A lista utilizada nessa moda traz os nomes dos foliões, parentes e amigos do Sr. Joaquim.
“Nesta hora eu me lembrei
De tudo que já passou
Me alembrei de tanta gente
Que pro céu Deus já levou
Me alembrei de Zé di Telo
E do caixeiro Fulô
Vendo as moda de Domingo
Só a saudade ficou...”
Outro exemplo usado é a canção Paratodos de Chico Buarque:
“O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro...
...Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethânia, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista...”
Nessas duas canções, os autores listaram pessoas representativas dentro dos contextos sociais que pertenceram. A primeira traz uma memória local, seus parentes e sujeitos próximos. A canção de Chico também se inicia em um contexto familiar e vai abrindo espaço para pessoas de uma linhagem musical consagrada nacionalmente, composta por membros de várias regiões brasileiras, mostrando assim que a música popular é “paratodos”. Outra lista apresentada bem similar à lista de Chico é Beba dosamba de Paulinho da Viola.
Nessas canções os compositores criam sua própria lista para proclamar seus heróis em forma de registro. A autora as utiliza para mostrar como esses grupos sociais gravam em forma de composição suas memórias, que se assemelha bastante a algumas políticas da UNESCO, como os “tesouros humanos vivos” que atraem novos aprendizes para herdar determinadas sabedorias e estudar com esses mestres. As canções populares aqui descritas ao apresentar figuras celebres também desperta a vontade de aprender os conhecimentos desenvolvidos por esses mentores. A maior diferença que a autora destaca sobre a UNESCO e as canções populares, é que os agentes da UNESCO que votam e escolhem os patrimônios nunca serão tão próximos e conviventes com os objetos culturais como os compositores das canções. Para ela é importante frisar que "Todas as listas são discutíveis, sob certo ponto de vista, e isso se aplica, naturalmente, à minha própria lista de listas. Seus critérios de seleção sempre podem ser objeto de disputas" (TRAVASSOS, 2006, p.8).
Concluindo, ela ressalta que ambos buscam salvaguardar memórias, preservar fontes identidade cultural que assegurem a diversidade que é fundamental para as relações humanas.