Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

9 de agosto de 2024

Milton + Esperanza

 "E se..." Eu ficaria aqui pra sempre listando um sem número de conversas sobre música popular iniciadas por este preâmbulo. E dentre estas, destacaria aquelas que tratam de reuniões improváveis, impossíveis, inacreditáveis, ou pelo menos difíceis, por razões por vezes inexplicáveis. Mas não farei isso, claro. Tenho mais é que falar desta, que, talvez por um triz, aconteceu: a reunião de Milton Nascimento e Esperanza Spalding. A reunião da "voz de deus", nosso Bituca, um raio que só caiu uma vez no mundo, com a mais prodigiosa artista estadunidense que surgiu na cena do jazz mas já a extravasou faz tempo é o acontecimento do ano, no mínimo. Duas forças raras da natureza, separadas por hemisférios e gerações, mas unidas pela música que supera todas as fronteiras. 

Acho que o som fala por si mesmo, então, ouçamos:

Álbum completo: 

Vou inserir também os belos vídeos que estão disponíveis, além da apresentação ao vivo no Tiny Desk Concerts da rádio NPR:



















21 de julho de 2024

FORA DO EIXO


Como sempre faço, vou escrever sobre a feitura de uma canção que bateu asas e voou para fora do ninho da criação. Pensei muito antes de iniciar o relato sobre essa, procurando encontrar o melhor caminho  para contar como nasceu esse pássaro, de uma forma especialmente idiossincrática. É que Fora do Eixo foi inicialmente motivada por um episódio grave, ocorrido em 2013
, quando se expôs publicamente todo tipo de práticas nefastas e criminosas adotadas pelo coletivo de mesmo nome. Para quem quiser tomar conhecimento, lembrar ou se aprofundar, deixo o link da postagem que fiz aqui no blog à época. Em suma era a perversão mais dolorosa de um modelo de financiamento à cultura que sempre critiquei e ainda o faço, até porque sintomaticamente mesmo com esse e outros casos escandalosos nada foi feito para mudar essa concepção que no fundo dá a empresas privadas (o que no fundo era o Fora do Eixo) a gerência sobre recursos públicos recolhidos por impostos e assim o Estado acaba por bancar gratuitamente a promoção de sua marca, produtos, isso sem falar em várias burlas e desvios. O mais chocante era ali a maneira vil com que se explorava o trabalho dos artistas, num esquema que lembrava o de seitas religiosas, o que indignou muita gente, incluindo aí desde a primeira hora meu parceiro Pablo Castro, cuja crítica contundente neste caso compartilhei imediatamente. Decidi colocar em forma de letra todo meu protesto, ainda no calor do momento. Relembro aqui um trecho do original, recuperado em arquivo txt, que demonstra toda a intensidade do sentimento de raiva do "eu lírico" bravo, especialmente no refrão. 

Fora do eixo


Me deixe fora
fora do eixo
deixa que eu deixo
tô rolando meu seixo
tô rachando freixo
pra fender, pra estratocar

(ref.)
Madeixas do meu cabelo
deixa que eu sei cuidar
eu derrubo tronco
eu pego no tranco
atiro de Parabelo
zelo pelo meu lugar

Dei a letra para o Pablo em seguida, naqueles dias mesmo. Ocorre que o processo de compor música a partir da letra é geralmente mais difícil e moroso, mais ainda em parceria. Essa versão nunca ganhou a luz do dia, e muito tempo se passou até que ele me mostrasse alguma coisa que era outra, totalmente retrabalhada, ainda que trazendo ecos do que eu tinha escrito. Vinha numa levada incrível e muito brasileira, incutindo uma malemolência sincopada que se desdobrava na letra da estrofe inicial que ele tinha feito, adentrando uma linha tradicional do nosso cancioneiro popular dançante que é carregada do uso de duplos sentidos e conotações sexuais, quiçá reciclada numa chave boscoblancesca. Ao mesmo tempo trazia uma intenção de atualidade tremenda, que depois ficou perfeitamente traduzida no arranjo que remete ao maracatu eletrizado do Mangue Beat. Além de um esboço do refrão, não havia muito mais e minha tarefa era levar a cabo a letra daquele petardo. Pablo sugeriu o uso do dicionário de rimas, método que os melhores não hesitam em adotar, vide relato de gente do calibre de Chico Buarque. Pra mim era inédito, o que me empolgou, e ainda guardo vários rascunhos feitos naquela tarde/noite, que trazem desde o vocabulário pouco usual que empreguei em alguns trechos, como "usufruto" e "apetrecho", mas também muitas rimas que não entraram, incluindo aí o explícito "sexo" (rsrs). 


Nos esmeramos nas rimas internas, ricas e nas sonoridades recorrentes, como chiados e anasalados.  Observem por exemplo o paralelismo entre versos de estrofes diferentes, como "um charuto, aguardente, um despacho"; "usufruto, contente, esse cacho"; "e lhe incuto premente apetrecho". Modéstia às favas, é coisa de gente grande. Trabalhamos de forma entrosada e num processo dinâmico de ir revisando conjuntamente, trocando pitacos e risadas inevitáveis, afinal tinha algo jocoso naquela virilidade ostensiva como que temperando o rancor que vinha da reação ao fato que fora o estopim daquilo tudo. O próprio processo, cheio de idas e vindas, era muito lúdico e o condão da arte tem disso, permitindo fundir emoção e razão num resultado surpreendente que pode transcender o contexto e até mesmo os criadores, ganhando vida própria. Eu, que ironicamente estou longe de ser um pé de valsa, sentia como se estivesse dançando com a letra, num festejo popular que ganhou contornos mais níticos na gravação, especialmente com a presença da sanfona que reforça alusões a Luiz Gonzaga e seus conterrâneos musicais. Um verdadeiro rebu, uma orgia com as palavras e sons, mestiço e sacana. Não fosse pelo título, o tiro de parabelo no plexo solar do Fora do Eixo seria críptico em demasia, mas taí, nem precisa mexer a rapa do tacho. 




Fora do eixo (Pablo Castro/Luiz H. Garcia)

Ô mama me deixe fora do eixo
deixa que eu deixo
um charuto, aguardente, um despacho
enquanto essa foda me deixa um pau roxo
tem quem ache fácil
siririca em rebu é um negócio

Eia...

Ô mama me mexa a rapa do tacho
abaixa o teu facho
usufruto contente esse cacho
me sirva essa ameixa que eu boto no bucho
tem quem ache ócio
sacanagem se espalha no Face

(ref.) 
Madeixas pra lá meu cabelo, meu pelo
meu falo não calo
revele essa senha 
que eu meto essa lenha
e nós vamo queimá
Sem essa de amor pose de pós rancor
dou de parabelo no plexo solar
amor só se for pra batê e arrebatá

Ô mama me rache a lasca do seixo
agacha que encaixo
e lhe incuto premente apetrecho
ofende mas fende que eu não deixo frouxo
tem quem ache dócil
mocho na pintassilga é tão bruto

Eia...

(ref.)

14 de julho de 2024

O QUE FAZ FALTA

Este ano de 2024, com o lançamento completo do álbum "O riso e o juízo", do meu parceiro Pablo Castro, finalmente tenho a oportunidade de tratar dessa canção, composta há vários anos. Trata-se de uma balada de separação, ainda que seu andamento seja um pouco mais célere, o que cria um certo impulso que previne o resultado final de ser propriamente triste ou melancólico, ainda que não deixe de ser doído. Quando a ouvi a primeira vez, ao violão, a batida ecoava aquela que Caetano usou em "Você é linda", embora aqui o tom apaixonado convicto, em que a amada é celebrada através de sua associação a elementos e objetos percebidos pela beleza, seja substituído por outro em que o "eu lírico" se dirige a ela entre inquisitivo e perplexo, sondando os sentimentos próprios e alheios diante de seu mútuo afastamento.


Outro detalhe digno de nota é que a letra já ia bastante avançada, e o convite era para que eu a complementasse, o que basicamente consistia em fazer mais um par de estrofes e dar talvez um ou outro pitaco. Ainda que a música tenha me cativado de cara, por outro eu julguei tremendamente difícil entrar numa conversa cujo tom pessoal era evidente. Mesmo considerando os muitos anos de convivência e o nosso introsamento como compositores, seria preciso encontrar um caminho para entrar naquela história que não era minha sem parecer intruso. Só restava tentar entrar me ajustando à estética e ao teor da narrativa propostas. Tinha de um lado a forma ABABCC', de outro um texto com um repertório que remetia à MPB de voos líricos, metáforas surpreendentes e sonoridades bem marcantes, com rimas em "em", "ã", "é", "is". O anasalado era uma recorrência significativa, e apelei dos vocábulos dos mais óbvios como "maçã" aos mais improváveis, como "Irã". O eco djavanístico era irresistível, magnético como a peculiar prosódia em "ímã". Assim procurei me inspirar no estilo por vezes enigmático (porém não incompreensível ou sem sentido como querem os apressados) e inconfundível deste grande cantautor alagoano, sintetisando o inconformismo do emissor com o verso "um velho profeta réu no Irã". Num paradoxo muito humano, essa disposição revoltosa representa força e fraqueza do sujeito, diante da separação, que, por mais adiada, é inevitável.

      

O que faz falta (Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)

O que me faz falta fica pra além
depois de amanhã
O amor vai e volta é como um ímã

O que não se espera
pode aparecer
e a ferida se abrir

Momento de culpa, colo de mãe
demora a manhã
um tempo poeta nu no divã

Vai me perguntar
e contar pra você
onde foi que eu perdi

Não sei se lhe importa
que eu olhe pra trás
ou tente entender o que lhe conduz

Você já não volta
talvez por um triz
se o que lhe faz falta você nunca diz
se o que lhe faz falta é quem você não quis

O que me faz falta pra ficar bem
depois do café
amargo a revolta e como a maçã

A mochila pronta
pode parecer
preparada pra ir

Momento de raiva, golpe na fé
adeus num afã
um velho profeta réu no Irã

Vai me desvendar
e contar pra você
o que me fez sentir

Não sei se lhe importa
que eu pire de vez
ou tente encontrar de onde vem a luz

Você já não volta
talvez por um triz
se o que lhe faz falta você nunca diz
o que me faz falta é ver você feliz

4 de junho de 2024

ALMA MOLHADA

 ALMA MOLHADA

Eu e o Mário Wamser já nos conhecíamos há uns bons anos. E já tinha um tempinho também que acalentávamos a ideia de fazer uma canção em parceria. Nos espaços costumeiros de convivência, como o Vento Leste em BH, a gente se encontrava já brincando com isso, “e a parceria?” “agora vai”, “e aí, futuro parceiro?” e o que mais se possa inventar em torno de uma expectativa que fica sendo adiada, por nenhum motivo em especial, simplesmente pela falta da fagulha inicial. Ano passado, numa noite daquelas teve mesmo uma tentativa curiosa, meio à moda antiga, na mesa de boteco. Com nossa musa inspiradora ali por perto, decidi caçar papel e caneta na hora e sapecar alguma coisa de pronto. Até saiu, mas depois a letra não era assim tão inspirada, e a música não estava ali dormindo à espera de ser despertada. Esse modo de compor costuma ser mais raro, especialmente em parceria. Tem outra situação que é musicar poema, mas aqui não seria propriamente isso, quando eu escrevo antes já penso na forma de canção. Enfim, não foi daquela vez. Mas estava esquentando, como se diz no “chicotinho queimado”. Foi então que em janeiro desse ano ele me manda uma gravação com um tema, cantarolando e tocando aquele violão todo trabalhado dele. Aí bateu a responsa. A música tinha umas quatro partes diferentes, bem definidas e articuladas, de modo a sugerir uma narrativa consequente, lógica. Ela tinha leveza, mas de alguma forma também uma sensação de desafogo. Foi justamente o que ele explanou num pequeno áudio que enviou em seguida, acrescentando que queria poucas variações na letra já que pretendia repetir a forma toda. Acessível, “popularmente falando”, e bem mineira, portanto sem banalidade. Lá fui eu. Embora um esboço não tenha demorado tanto a sair, eu não costumo fazer o famoso “monstro”, ou seja, uma letra guia só pra marcar a melodia, divisões, acentuações, etc. Faço às vezes uns tracinhos, como se contasse as sílabas, e quando a nota se alonga eu faço o traço longo. Cada vez mais eu tento acertar de primeira, me impondo o desafio de chegar o mais perto do desejado e depois ir só cortando as arestas. Neste caso eu fui por partes, como diria Jack... vocês sabem... O “B” (ou ponte) deixei por último, era o mais difícil, porque tinha que funcionar na letra como na música, ou seja, ser um tipo de ponderação ou questionamento dos versos iniciais “A” e ligá-los às partes subsequentes, em que o “C” é o clímax e o D uma espécie de epílogo. Eu fui entendendo isso enquanto fazia, que precisava levar o “eu” do seu alegre e lírico despertar até um estado mais reflexivo, em que ele encontra a paz depois da tormenta - provavelmente isso é um ponto de identificação com a canção para mim, para o Mário e para qualquer ouvinte dela: quem nunca?  Por isso a palavra “chuva trás da curva” (bem mineiro :P) foi uma espécie de centro gravitacional, indicando que a fumaça já se dissipara e lançando no tempo presente a disposição de seguir adiante, viver, tocar violão, “te” encontrar (sempre lembrando os Beatles da primeira fase, mestres da interpelação direta do intérprete para o/a ouvinte). Essa chamada trás no final uma espécie de convite convicto, imperativo, para que o ouvinte compartilhe essa onda, encha os pulmões, dance, e claro, escute a música (se for essa mesmo, melhor ainda, vale a propaganda subliminar rsrs). Tudo portanto terminaria no gesto final de respirar, depois do sufoco, e a princípio “Respira” era também o título da canção, mas meu parceiro veio com a sugestão de “Alma molhada” (foi uma repaginada dos versos do Brant em Nos bailes da vida) e eu gostei, tem personalidade e deu mais cara de música mineira mesmo rsrs. Acho que poucas experiências na vida me ensinam tanto sobre co-laboração quanto a parceria para compor. Não é simples traçar a linha entre até aonde vai a nossa personalidade e onde começa sua dissolução num recipiente diferente em que a criação é compartilhada. Saber receber isso é bonito, e tenho tido sorte. E banhado minha alma muitas e muitas vezes!

Alma molhada (música: Mário Wamser; letra: Luiz H. Garcia) jan-2024

 

A         Tirei

            Os meus pés do chão

Eu valsei no vão

Entre qualquer lugar

e a hora de acordar

 

A’         Sono leve

Despir do lençol

Servir um café

Um brinde ao sol alçar

nessa manhã sem par

 

B         Um dia que a gente respira

Depois que dissipa a fumaça

a alma molhada de sonho

deságua

 

C         Chuva

Trás da curva lá já lavou

nuvem passageira

outra vida inteira

agora quero andá(r)

Pego a trilha

Aprendendo sem decorar

Pra valer viver, tocar um  violão, quem sabe te encontrar?


D         Enche seus pulmões

Põe as mãos na arei_a

Dança em pleno ar

Ouve um som na vei_a

Respira 



24 de maio de 2024

O BRASIL QUE CAI NO SAMBA

 O BRASIL QUE CAI NO SAMBA



Tava doido pra contar a história dessa canção que acabou de sair, quentinha, no EP Novelo da jovem cantora Flor Grassi [
aqui para ouvir tudo, que tá lindo!]. Certa manhã, final de semana, já estava combinado de encontrar meu parceiro Dan Oliveira, no estúdio Música aos Montes. Era pra fazer uma letra pra uma música nova dele, já meio que na leva das que poderiam figurar em seu primeiro disco solo, que estava começando a ser aventado. Ocorre que eu acordei animado e do nada me veio (fato raro) uma melodia sincopada, um esboço de um sambinha simpático e maroto. Essencialmente era o verso de “O Brasil que cai no samba”. Eu já no ônibus, indo, meio catando as palavras, não estou certo se apenas mentalmente ou se anotei em algum lugar, pois como eu estava indo pra fazer uma letra certamente levei papel e caneta. Cheguei lá com essa primeira parte ainda sem acabamento, e dois motes principais: o primeiro era uma espécie de antídoto de alegria aos maus bocados dos primeiros anos do governo Bolsonaro - era meados de 2019; o segundo, meio derivado, era a afirmação da brasilidade a partir da reação à infâmia e ignorância da turba reacionária, cuja metonímia seria aquele bordão “o Brasil jamais será vermelho”, que desconhece a origem da própria palavra que dá nome a nosso país. Preciso dizer que estava muito eufórico e compartilhei com meu parceiro aquele germe de canção na esperança de que ele gostasse e topasse levar o rebento adiante. Pois ainda que eu tenha uma limitada leva de obras só minhas, arranhe no violão e cante para consumo próprio, os parceiros com quem componho estão em outro patamar, e no caso do Dan eu nem hesitei porque estava certo de que ele iria levar o samba à maioridade. Dito e feito, num piscar de olhos ele consolidou a primeira parte, colocando a solução melódica da estrofe que traz uma espécie de brequinho, muito característico, e ainda fez uma segunda parte. Eu ia engordando a letra e me veio a ideia de homenagem a referências musicais, como Tom Jobim, João Gilberto, Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga. Bem manjado mesmo, sem grilo. Um nome puxa outro, inclusive pela sonoridade. Até cheguei a pensar em colocar mais, ia virar uma “Paratodos do samba”, mas como sempre eu já tinha tanta ideia, que era o risco da síndrome de Bye, bye Brasil, ou seja, de fazer uma letra quilométrica e depois ter que cortar. São nomes que são pilares, então achei que estava de bom tamanho. Não deixa de ser curiosidade o fato de que o João era o único vivo da turma, mas agora também está jogando na seleção da posteridade. Com o resto da música rolando, eu botei o Brasil caindo no samba e depois ataquei o B, em que me ocorreu dar uma tensionada no excesso de lauda, então meti “Chega de saudade dessa terra” e taquei uma carga panfletária mesmo, esse é um traço meu, contra o qual não luto. E foi em frente com a espetadinha em outro símbolo nacional, o futebol, que tá “mal da perna” já faz um tempo. Mas não rompi o clima de festa – que o arranjo à la Novos Baianos e a interpretação graciosa da Flor ressaltaram ainda mais - e ainda deu pra citar vagamente uma canção do Chico que eu adoro, Feijoada completa, aí pra mencionar esse equivalente culinário do samba, também tributário da mistura que nos constitui. Qualquer crítica cultura me questionaria por usar “samba” e “Brasil” como entidades, reproduzir clichês sobre a identidade nacional, mas isso aqui não é tese, é letra de canção. Que sim, transporta ideias e por isso mesmo merece ser pensada e esmerada. Levei pra casa, finalizei, batemos o martelo, fizemos uma gravação caseira, mas o mundo ainda ia dar muitas voltas até a canção chegar a este momento de lançamento. O estado de felicidade que me tomou ao acordar com uma melodia pintando na cuca floresceu durante esse tempo, com tanta gente legal regando a planta. Que o povo não seja privado desse fruto, bora espalhar esse som o máximo possível. Caiam no samba!

P.S.: Ah! De quebra eu ainda comecei a letra da outra, a que eu fui lá fazer, inspirada num documentário sobre Tarkóvski, mas essa história deixo pra contar em breve.

O Brasil que cai no samba (Luiz Henrique Garcia e Dan Oliveira)


Vem ver o sol nascer hoje, majestoso,
O Brasil, amoroso
O Brasil, que dá gozo
O Brasil que cai no samba

Na rua a gente se encontra, se abraça
O Brasil, sem farsa
O Brasil, tá na praça
O Brasil que cai no samba

Ao som de Tom e João, Pixinguinha
O Brasil, caminha
O Brasil da Chiquinha
O Brasil que cai no samba

Chega de saudade dessa terra
De privar o povo dos seus frutos
Saiba que o futuro é feito agora
Na hora de colher a própria História

Olha que a Geral já vem à forra
Pode preparar a feijoada
Se o futebol tá mal da perna
O samba vai tocando a madrugada

À noite a lua ilumina o rosto
O Brasil que dá gosto
O Brasil tá disposto
O Brasil que cai no samba

Espreme aquela ferida, que vaza
O Brasil, ganha asa
O Brasil, feito brasa
O Brasil que cai no samba

Chega...
Olha...
Ao som...