Uma das formas de repercussão cultural que considero particularmente interessante é o comentário. Uma breve notícia, ao ser comentada, dependendo da argúcia ou mesmo da verve de quem a comenta, pode desencadear um imenso debate, que por vezes pode superar a condição de festival de verborragia e realmente acrescentar algo, lançar uma nova luz sobre o que motivou a discussão inicial ou ao menos representar uma reunião de posições relevantes para que o debate possa seguir e se aprofundar. Hoje em dia isso acontece com frequência via facebook mas às vezes sinto que o encadeamento do processo se perde quando o tempo passa e o ímpeto suscitado pelo comentário arrefece. No caso abaixo achei que valia a pena transformar em postagem, na tentativa de deixar ao menos um registro que fosse além das "linhas do tempo"...
A notícia
A Retratos da Vida descobriu o cachê que Caetano Veloso e Gilberto Gil
vão receber para cantarem no réveillon de Salvador. Cada um dos baianos
embolsará R$ 600 mil. A festa está sendo organizada pela empresária
Flora Gil, cujo sobrenome entrega de quem ela é mulher. A virada do ano
na capital da Bahia está sendo financiada com dinheiro público e de
empresas privadas.
O comentário da notícia, por Pablo Castro
Caetano e Gil vão receber, cada um, 600 mil reais para cantar no
reveillón de Salvador. Estou pra escrever um artigo mais longo sobre
esse assunto, mas já cabe aqui apontar em que medida esses dois
baluartes do tropicalismo se tornaram uma espécie de coronéis da cultura
brasileira. Nada justifica um cachê desse porte, ainda mais para dois
milionários.
Ao invés de propor um debate sobre o sucateamento da música brasileira, eles se contentam em engrossar sua fortuna com dinheiro público. Injustificável.
Ao invés de propor um debate sobre o sucateamento da música brasileira, eles se contentam em engrossar sua fortuna com dinheiro público. Injustificável.
O comentário do debate no facebook, por Luiz H. Garcia
Acho que algumas coisas se perdem e argumentos truncam
quando não fica claro onde estão os nós. Primeiro, quando se trata de
dinheiro público não se pode raciocinar estritamente dentro de uma
lógica de mercado. Cabe exigir sempre transparência e responsabilidade
dos administradores, e aí cabe questionar o montante, mas também a
própria decisão. Por que o Estado, que nem dá conta de garantir com boa
qualidade os serviços essenciais, gasta recursos com festa de reveillon,
inaugurações e afins? Mesmo que seja legal, será legítimo? Assim, mesmo
com zero desvio, zero superfaturamento, zero favorecimento de x ou y,
mesmo assim seria questionável. E outra coisa, prefeitura tem que pensar
em política, em equipar a cidade,com esse dinheiro dá pra fazer coisas
que atenderiam gerações, anos e anos, ao invés de fazer um espetáculo de
uma noite cujos benefícios, por mais que existam, se dissipam
rapidamente. Por que as empresas, que se interessam pela publicidade
direta ou indireta desses eventos, não pagam a conta toda do bolso
delas? Não dizem que a propaganda é a alma do negócio? Então? Os
argumentos até aqui nem colocam em questão quem são Gil e Caetano, nem a
qualidade ou perenidade da obra deles, sequer da atuação deles como
cidadãos. Personalizar e medir afetos e desafetos não funciona, aliás é
um verdadeiro traço de cordialidade, no sentido proposto por Sérgio
Buarque de Holanda. Entrar nessa de quem merece, quem não merece, não é
razoável até porque no final vamos ter que encarar que vivemos numa
sociedade totalmente desequilibrada em relação à forma de remunerar o
merecimento (há exemplos acima). Isso portanto já é uma premissa. Agora o
nó mais apertado, difícil de debater é a questão ética. Sem
bom-mocismo, sem cinismo, devemos debater isso sim. Para efeito de
raciocínio novamente não interessa quem são Gil e Caetano. Interessa que
são cidadãos brasileiros e que vão se apresentar em espaço público.
Seria mesmo absurdo demais desejar que dois cidadãos nessas condições
propusessem cachês menores, que ainda fossem plenamente satisfatórios
para remunerar uma noite de trabalho, por considerar a dimensão pública
dessa apresentação?? Queremos um Estado transparente, administradores
responsáveis, mas nós não precisamos agir assim?? E mais, ante um
comportamento cuja legitimidade é questionável, devemos é nos calar
porque no fundo supostamente gostaríamos de estar na mesma posição para
ter o mesmo comportamento? E quem age assim não deve nem ao menos
receber a crítica? Sem romantismo, repito, mas é possível aperfeiçoar
uma democracia esperando que um Estado comprometido com o bem público
brota por geração espontânea, que bons governantes descerão de discos
voadores? Enfim, um debate mais que urgente e importante, que é bom que
seja feito sem pequenez, sem picuinha, sem personalismo.
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