Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

24 de dezembro de 2013

Quanto vale o show?

Uma das formas de repercussão cultural que considero particularmente interessante é o comentário. Uma breve notícia, ao ser comentada, dependendo da argúcia ou mesmo da verve de quem a comenta, pode desencadear um imenso debate, que por vezes pode superar a condição de festival de verborragia e realmente acrescentar algo, lançar uma nova luz sobre o que motivou a discussão inicial ou ao menos  representar uma reunião de posições relevantes para que o debate possa seguir e se aprofundar. Hoje em dia isso acontece com frequência via facebook mas às vezes sinto que o encadeamento do processo se perde quando o tempo passa e o ímpeto suscitado pelo comentário arrefece. No caso abaixo achei que valia a pena transformar em postagem, na tentativa de deixar ao menos um registro que fosse além das "linhas do tempo"...

A notícia
A Retratos da Vida descobriu o cachê que Caetano Veloso e Gilberto Gil vão receber para cantarem no réveillon de Salvador. Cada um dos baianos embolsará R$ 600 mil. A festa está sendo organizada pela empresária Flora Gil, cujo sobrenome entrega de quem ela é mulher. A virada do ano na capital da Bahia está sendo financiada com dinheiro público e de empresas privadas.

O comentário da notícia, por Pablo Castro
Caetano e Gil vão receber, cada um, 600 mil reais para cantar no reveillón de Salvador. Estou pra escrever um artigo mais longo sobre esse assunto, mas já cabe aqui apontar em que medida esses dois baluartes do tropicalismo se tornaram uma espécie de coronéis da cultura brasileira. Nada justifica um cachê desse porte, ainda mais para dois milionários.
Ao invés de propor um debate sobre o sucateamento da música brasileira, eles se contentam em engrossar sua fortuna com dinheiro público. Injustificável.

O comentário do debate no facebook, por Luiz H. Garcia
Acho que algumas coisas se perdem e argumentos truncam quando não fica claro onde estão os nós. Primeiro, quando se trata de dinheiro público não se pode raciocinar estritamente dentro de uma lógica de mercado. Cabe exigir sempre transparência e responsabilidade dos administradores, e aí cabe questionar o montante, mas também a própria decisão. Por que o Estado, que nem dá conta de garantir com boa qualidade os serviços essenciais, gasta recursos com festa de reveillon, inaugurações e afins? Mesmo que seja legal, será legítimo? Assim, mesmo com zero desvio, zero superfaturamento, zero favorecimento de x ou y, mesmo assim seria questionável. E outra coisa, prefeitura tem que pensar em política, em equipar a cidade,com esse dinheiro dá pra fazer coisas que atenderiam gerações, anos e anos, ao invés de fazer um espetáculo de uma noite cujos benefícios, por mais que existam, se dissipam rapidamente. Por que as empresas, que se interessam pela publicidade direta ou indireta desses eventos, não pagam a conta toda do bolso delas? Não dizem que a propaganda é a alma do negócio? Então? Os argumentos até aqui nem colocam em questão quem são Gil e Caetano, nem a qualidade ou perenidade da obra deles, sequer da atuação deles como cidadãos. Personalizar e medir afetos e desafetos não funciona, aliás é um verdadeiro traço de cordialidade, no sentido proposto por Sérgio Buarque de Holanda. Entrar nessa de quem merece, quem não merece, não é razoável até porque no final vamos ter que encarar que vivemos numa sociedade totalmente desequilibrada em relação à forma de remunerar o merecimento (há exemplos acima). Isso portanto já é uma premissa. Agora o nó mais apertado, difícil de debater é a questão ética. Sem bom-mocismo, sem cinismo, devemos debater isso sim. Para efeito de raciocínio novamente não interessa quem são Gil e Caetano. Interessa que são cidadãos brasileiros e que vão se apresentar em espaço público. Seria mesmo absurdo demais desejar que dois cidadãos nessas condições propusessem cachês menores, que ainda fossem plenamente satisfatórios para remunerar uma noite de trabalho, por considerar a dimensão pública dessa apresentação?? Queremos um Estado transparente, administradores responsáveis, mas nós não precisamos agir assim?? E mais, ante um comportamento cuja legitimidade é questionável, devemos é nos calar porque no fundo supostamente gostaríamos de estar na mesma posição para ter o mesmo comportamento? E quem age assim não deve nem ao menos receber a crítica? Sem romantismo, repito, mas é possível aperfeiçoar uma democracia esperando que um Estado comprometido com o bem público brota por geração espontânea, que bons governantes descerão de discos voadores? Enfim, um debate mais que urgente e importante, que é bom que seja feito sem pequenez, sem picuinha, sem personalismo.

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