Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

7 de dezembro de 2013

Há versões e (a)versões

Um tema que dá muito pano pra manga é o das versões. Há aquelas versões que são basicamente as que são feitas por intérpretes diferentes quando gravam a mesma composição, sem grandes alterações em relação ao andamento, ao estilo de interpretação, ao arranjo, enfim ao padrão geral da gravação. Isso ocorre em geral num curto período de tempo, em que diversos intérpretes gravam uma canção bem sucedida num determinado momento, procurando incorporá-la a seu repertório e esperando sua boa recepção por parte do público. Há aquelas versões que extrapolam essa referência fonográfica e procuram recriar a canção e a gravação que tomam como referência, acrescendo à história da composição novos traços. Muitas vezes são versões que nascem pelo gesto de transportar canções no tempo e/ou no espaço (e nesse caso podem ser, além de versões, traduções), motivado por homenagens, songbooks, participações especiais, pesquisas de repertório, interesses mercadológicos, decisões dos produtores, preferências dos músicos, o que mais for. Há intérpretes que imprimem de forma tão inconteste sua marca que suas versões podem tornar-se mais memoráveis que aquela primeira gravação, e por vezes consagram-se como aquela que servirá de parâmetro pelo qual todas as subsequentes serão medidas. Podemos pensar na versão dos Beatles para Twist and shout, ou em várias das interpretações de Elis Regina para o repertório canônico da MPB. Uma situação ímpar é a dos compositores que se revelam excepcionais "versionistas", capazes de impregnar a canção com sua própria assinatura estilística, de modo muito próximo a uma coautoria. Dentre vários exemplos possíveis, me ocorrem imediatamente Caetano Veloso e George Harrison. Os leitores, se quiserem, podem sugerir outros nomes à lista.    

Enfim, são várias possibilidades de abordagem e material abundante que permitiria mil e um estudos, ensaios, pesquisas. Como o gás em final de semestre é pouco vou contentar-me agora com essa pequena incursão, motivada pela postagem do Francisco de Paula, garimpeiro da hora e membro da página do Blog do Clube da Esquina. Ele postou por lá essa versão do conjunto vocal novaiorquino Manhattan Transfer para Viola violar (Milton Nascimento/Márcio Borges), que eu não conhecia ou ao menos não me recordava de ter ouvido. Gravada no disco Brasil (1987), e com a participação do próprio Bituca, ela aparece transmutada numa ode de teor ecológico bizarramente intitulada The jungle pioneer (O pioneiro da selva). Na música não traz grandes inovações, a não ser pela parte central em que a ponte instrumental recebeu letra e que apresenta uns tamborins na percussão, fincados ali como uma espécie de bandeira do Brasil timbrística. A versão da letra (Brock Walsh), além de não traduzir minimamente o conceito expresso na original, é de lavra ruim mesmo, com pérolas do tipo... [quem quiser ler a letra completa, original aqui versão aqui]

"Here where we stand there used to be a forest     eu estou bem seguro nesta casa
A timber rising endlessly before us                           minha viola é o resto de uma feira
We cleared away that Godforsaken jungle               a minha fome morde o seu retrato
And in return the Indians adore us                             brindando a morte em tom de brincadeira

What was mud now is a highway                               e amanhã mais vinte anos
Reaching wide into a prairie                                      desfilados na avenida
Horses run, cattle are grazing                                    arranha-céu, ave noturna
You would swear, it's Oklahoma (...)                          no circuito dessa ferida (...)

See in the field my little son and daughter                eu estou bem seguro nesta casa
Not long ago that ground was under water"             comendo restos nesta quarta-feira




Claro que há grandes letristas norte-americanos. Acontece que quando se trata de versar grandes pérolas do cancioneiro brasileiro, via de regra as gravadoras de lá incumbem autores medianos que não conseguem traduzir ou muitas vezes nem tentam, fazem outra coisa, limitada e provavelmente mais palatável ao que imaginam ser o provável ouvinte de lá. Obviamente as versões são importantes veículos dos fluxos transculturais e certamente alguns ouvintes poderão, mesmo a partir de trabalhos fracos, desenvolver maior interesse e procurar as gravações dos compositores, tomando contato com outras músicas populares. Porém são também expressão da assimetria com que se movem esses fluxos e mostram bem como as versões podem ser veículo de estereótipos culturais. Como bônus, deixo as versões da mesma canção gravadas por Quarteto em Cy e Alaíde Costa.





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