Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

2 de setembro de 2025

OURO SA(N)GRADO

Feliz da vida de voltar a escrever sobre uma parceria assim que a gravação é lançada e começa a chegar aos ouvidos das pessoas. Cada canção, uma história. Ou várias, ainda mais quando passa um longo período entre a lavra e o lançamento, como é o caso desta. Enquanto tento rememorar, eu já sei, inclusive como alguém que se dedica a estudar a memória, que algo já se perdeu nesse caminho. Outro tanto, quem sabe, vou ganhar agora, ao recobrar a lembrança neste instante, no presente. 

Estimo (nos dois sentidos) ter conhecido o parceiro Leandro César em meados da década passada. Tempo em que ele estava envolvido em projetos como o Festival Palavra Som e o Coletivo Casa Azul. Eu tinha retornado de Governador Valadares para BH em 2010, para tomar posse como professor do curso de Museologia da UFMG, e depois disso sei que levou algum tempo para me reconectar com a cena musical da cidade. Encontrar a galera da geração seguinte à minha agistando muito o coreto, com festivais autorais, discos, iniciativas coletivas de toda ordem, foi empolgante e estimulante. Além de tudo me comovia o fato dessa geração seguinte ter proximidade com a minha, conhecer nossos trabalhos, andar junto também. É um sentimento que ainda me toca muito, e que revela a densidade dessa cena autoral Belorizontina, Mineira, Brasileira, da qual tenho muito orgulho de fazer parte. Depois de um tempo nessa aproximação, naturalmente apareceram as primeiras parcerias. Leandro me passou duas melodias, uma delas era a que veio a ser Ouro Sa(n)grado. Acho que ela capta bem um aspecto fundamental que nos une, que é o esmero do ofício: ele como um artesão que se desdobra em tudo que cerca a música, de construir instumentos a compor, arranjar, tocar, cantar e gravar num estúdio que ele mesmo ergueu; eu um historiador e letrista, sempre querendo reunir com as palavras os sons e as histórias vividas.

Minha profissão costuma vir à baila nas sugestões feitas por parceiros quando me entregam uma melodia. Foi o caso. A princípio eu não queria fazer "mais uma" letra de canção sobre a escravidão colonial, um veio tradicional nas temáticas da música popular brasileira. Queria me arriscar numa leitura contemporânea atravessando a História do Brasil, conectando na forma de associações fragmentadas as explorações do passado e do presente. Tentei, mas não estava saindo tão bom quanto eu idealizara, o que ficou evidente pro meu parceiro até mais do que pra mim. Conversamos e eu retomei a feitura da letra numa abordagem mais sólida, tradicional, digamos assim. Mas de alguma maneira - quase sempre é assim - eu dei um jeito de adaptar a minha concepção original, casando a construção de uma narrativa relativamente contextualizada nas Minas coloniais. Logo eu, que apesar de ter sido orientando de IC da grande Carla Anastasia, queria evitar a Colônia, tema de estudos forte na UFMG, tanto que virei um historiador da cultura do Brasil República!  

De todo modo aquela intenção de fugir de uma narrativa linear, pelo menos, preservou-se. Ainda que os versos da primeira e da sexta estrofes sejam "didáticos" ao recapitular a diáspora como travessia do Atlântico no navio negreiro (aqui adotei por sugestão do Leandro o sinônimo Tumbeiro) até as Minas, as demais eu montei a partir do recurso ao "icônico", minerando substantivos que remontavam num mosaico as imagens da exploração dos corpos e dos metais nestas terras. A este garimpo uni a labuta de ourives, que foi arruar rimas internas e reiteração de sonoridades. Acho que logrei captar a dialética da colonização, como diria o grande Alfredo Bosi, reunindo na composição elementos que aludiam a diferentes aspectos da experiência social dos escravizados, ainda que ponto de vista do eu lírico seja de empatia e ênfase no processo histórico que culmina, no saldo de tantas contradições no tempo, em sua libertação e afirmação como sujeitos. 

Dentro da pegada do disco, orgânico, acústico, o arranjo - que fui ouvindo crescer num processo de gestação que o meu parceiro atenciosamente foi compartilhando comigo ao longo do tempo, quase como periódicos ultrassons - me cativou com suas cores e timbres, combinando energias telúricas que aludem à conexão do ser humano com a terra através da labuta com as da cultura que a transcende, alçando nossa imaginação ao sobrevoo que nos dá a ver as várias formas de desafio à opressão e sua superação. E que felicidade que esse canto tenha sido vestido na poderosa voz afrobrasileira de Sérgio Santos, além de tudo grande parceiro em composição de um de nossos maiores letristas, Paulo César Pinheiro. Ambos óbvias referências para qualquer compositor de música popular brasileira tratando deste tema. 

Finalmente, no título, sobrou essa brincadeirinha formal, vanguardeira, que nem sempre as artes gráficas e editoriais captam. O "n" entre parêntesis sintetiza no jogo de sentido cambiante que evoca as faces da moeda colonial e seu papel na formação do Brasil. O fascinante na canção, como linguagem, é que podemos fazer isso sem que soe como uma aula. Compor é mais aprender, com a música e a língua, e compartilhar com os ouvintes a tremenda síntese de sua conjugação. 





Ouro Sa(n)grado

Leandro César & Luiz H. Garcia

 

Quando atravessou no cativeiro

Oceano, vão entre dois mundos

Tumbeiro levou um povo inteiro

Fundo do porão, futuro incerto

 

Corrente, chibata, catedral

Seu corpo, su’alma, seu coração

Pra longe do seu chão


No dente, na tranca, no punhal

Na carne, no ventre, n’ oração

Resistiu

Na mina, na sina, no missal

No ouro sa(n)grado aluvião

 

Na fila, na vila, no curral

mercado, marcado, marginal

Senzala, serviço, união  

No veio, no seio, na prisão, na palma da mão


Mistura o metal e a fé

na lança, na face, a multidão

na dança que atravessa o vão 

Pra se libertar...


Quando aqui chegou tanto tormento

Terra dura cruz dos pés desnudos

Mineiro na lavra o dia inteiro

rude escravidão, palavra nua

 

Cansaço, no braço, um sinal

De santo de guarda de devoção

Traz perto seu irmão 


No dente, na tranca, no punhal

Na carne, no ventre, n’ oração

Resistiu

Na mina, na sina, no missal

No ouro sa(n)grado aluvião

 

Na fila, na vila, no curral

mercado, marcado, marginal

Senzala, serviço, união  

No veio, no seio, na prisão, na palma da mão


Mistura o metal e a fé

na lança, na face, a multidão

na dança que atravessa o vão

 

Pra se libertar...


5 de março de 2025

Anjo negro é o Sol que faz a Portela cantar




Acabei de assistir, em VT completo, o desfile da Portela na Marquês de Sapucaí homenageando Milton Nascimento no carnaval deste ano. Acertadamente, a meu ver, fugiram da linha biográfica explícita e cronológica. O enredo “Cantar será buscar o caminho que vai dar no sol” aborda de forma inteligente e criativa a relação do artista e de sua obra com o povo e a cultura brasileira, organizada conceitualmente na forma de uma procissão que se desloca por um dia imaginário, partindo do subúrbio carioca em direção ao interior de Minas. 
Antes de qualquer coisa, vale ressaltar a importância da homenagem em si, e o fato dela ter sido feita em vida, com Bituca lúcido e com saúde bastante para desfilar na avenida, e ir, literalmente, até onde o povo está - ainda que possamos debater à exaustão onde e como fica o povo no sambódromo, num contexto em que isso tudo virou um espetáculo multimidiático e um grande negócio. 
Sobre o desfile, não tenho grande propriedade para falar de muitos aspectos estéticos e de execução que chegaram a um patamar assombroso com todos esses anos, esforços das comunidades do samba e também, claro, com a força da grana. 
Preciso primeiro dizer que, sem ser um torcedor dedicado, acompanho os desfiles pela TV desde garoto, e escolhi a Portela como escola de predileção graças à imponência de seu símbolo, a águia, um animal que sempre me fascinou. Este ano a águia veio predominantemente em azul, com detalhes dourados, bonita e barroca. O ouro predominou junto aos tradicionais azul e branco da escola. Os carros alegóricos quase todos muito opulentos, tirando o que trazia um Milton representado jovem em meio à sua discografia e fotos dos membros da comunidade portelense que se sentem tocados por sua música, que foi o que achei mais lírico e expressivo do enredo. Me pareceu que algumas alas tentaram contrapor o excesso de brilho que a ideia de culminar tudo no sol - o próprio Milton, no último carro, raiando no dia seguinte ao da procissão - com algumas alusões à simplicidade da cultura popular. 
Até por isso achei o mirrado trenzinho azul no meio de uma ala de girassóis algo mal realizado. Creio que não captaram a essência da habilidade de Milton e seus parceiros em capturar a grandeza no simples, o extraordinário no cotidiano. Mas também não vou contradizer a sabedoria do saudoso Joãozinho Trinta, quando dizia que intelectual é que gostava de pobreza. O luxo fantasioso do carnaval é também uma provocação, um desafio ante a concentração da riqueza e injusta distribuição dos bens materiais em nossa sociedade.
A esssa afirmação se soma outra do valor da contribuição afrodiaspórica ao caldeirão da cultura brasileira, ainda que essencialmente pelo viés dos terreiros que deram solo à história do samba. Teria sido interessante, a meu ver, uma abordagem mais nítida da afromineiridade de que Milton se tornou um grande exponencial, ainda que houvessem referências salpicadas. A bateria poderia ter inovado por aí. Mas gostei das paradas introduzidas ao longo da execução, botando o povo pra cantar a cappella
No geral o samba me agradou, bem-feito, pelas mãos e mentes de Samir Trindade, Fabrício Sena, Brian Ramos, Paulo Lopita 77, Deiny Leite, Felipe Sena e JP Figueira. Eis a letra:

Manhã, Alvorada das nossas lembranças
Peito aberto, carrego esperança
Do altar de São Sebastião
Estou onde a mãe do ouro me afaga
E fiel abraçado à Águia
Vou partir em procissão

Na fé, que faz do artista entidade
E sagrada as amizades
Ardem vozes, mil tambores
Nas mãos, girassóis na travessia
Minh’alma em cantoria
Vem a tarde, vão-se as dores

Nessa estrada, é sonho, é poeira
Passa o trem azul, sigo em paz
Feito Rio… só me leva
Pra Deus filho de Maria
Tantos mares em um cais

E as raízes se juntaram
Na esquina uniram a nação
Venceram as lutas que travavam
Pra ver Zumbi no céu da canção

Noite apaga o arrebol
Num milagre ser farol
E continuar…
Quem acredita na vida
Não deixa de amar

Dorme a maldade após o temporal
Na bandeira a liberdade, vem Bituca triunfal
Cheguei com meu povo, mesmo sentimento
Onde Candeia é chama
Brilha Milton Nascimento

Iyá chamou Oxalá preto rei pra sambar
Iyá chamou Oxalá preto rei pra sambar
Anjo negro é o Sol que faz a Portela cantar
Anjo negro é o Sol na minha Portela





Não farei uma análise pormenorizada, para não sobrecarregar a leitura. Gostei das partes, do refrão intenso com a imagem central do anjo negro sendo "o sol". Se me dá muita preguiça um certo revivalismo militante que exalta monarquias africanas como se existissem num plano mítico, infalíveis e nada humanas, é válido evocar esse imaginário apenas na medida em que traduz apreço e admiração por um artista do calibre de Milton. Além de dar conta da narrativa proposta, a letra encadeia bem o padrão de samba-enredo que exalta a escola, seus símbolos, baluartes e devoções, ao mesmo tempo que faz citações espertas, ao invés de colagens óbvias. O léxico do Clube da Esquina surge com sol, girassol, trem, cais, temporal... Os compositores demonstram bom conhecimento do repertório de Bituca e seus parceiros, o que foi inclusive transposto para os nomes das alas, ainda que algumas alusões pudessem ter sido melhor aproveitadas em fantasias.  
O mesmo eu não posso falar dos apresentadores da Globo. Assistindo o VT a primeira vez achei um extremo despreparo da parte deles. Não só não indicaram boa parte das alusões, não citaram nenhum dos parceiros de Milton Nascimento - absurdo pois praticamente toda sua obra é feita em conjunto com letristas seminais da música popular brasileira - e nem mesmo souberam identificá-los quando alguns deles figuraram (sem maior destaque, e nisso vou criticar a Portela) no imponente carro branco em que eu consegui ver Wagner Tiso, Márcio Borges e Ronaldo Bastos. Claro que eles reproduzem a esparrela recente de destacar como amigos figuras como Maria Gadu e Djonga, artistas novos que ficam ali rondando agregados na abordagem marqueteira do filho adotivo de Milton.
Mas vou relevar, afinal se trata sobretudo de uma homenagem, digna do que ele representa no cenário da música brasileira e mundial. Como pesquisador que tem a trajetória longamente conectada à sua obra, e ao Clube da Esquina, e também como compositor que a tem como referência, registro minha felicidade de ter assistido mesmo que pela tela, e que se soma às minhas andanças nestes dias de carnaval por Belo Horizonte, onde eu ouvi em vários blocos - para além do que é dedicado à Esquina mais inacreditável do planeta - executando versões dessas canções que embalam nossos corações o ano todo. 

2 de janeiro de 2025

Bolacha completa: Cativo, ábum de Clayton Prósperi



Estou devendo há um tempão uma resenha desse trabalho impecável do meu parceiro e amigo Clayton Prósperi. Penso que entre as muitas conotações do título Cativo, a primeira que me ocorre é aquela de um vínculo férreo, mineral, do mesmo modo que dizemos “cadeira cativa”. Com ele, está reservado o lugar do Clayton neste vasto estádio da MPB, não na condição de mero espectador, continuador de seja o que for, e sim de criador com toda autoridade, maduro, de canções belíssimas e arranjos esmerados que receberam um registro de primeira categoria.

Cativados, no sentido hiperbólico de aprisionados, ficam os nossos ouvidos, conquistados pela inegável força desse repertório autoral que os convida a tudo. Ritmos hipnóticos, letras poéticas, harmonias ousadas, melodias voadoras. Tudo isso embalado numa produção impecável, acompanhado por gente que é do ramo, feito Tutuca, Ismael Tiso, Enéias Xavier e Teco Cardoso, entre outros. Encontramos um vasto panorama de invenção na música popular, que vai dos arranjos vocais aos solos de guitarra, das pausas sugestivas a energéticos pulsos de baixo, das faunas timbrísticas a alternâncias rítmicas que demonstram quão alargada e proficiente é a concepção de Cativo. É como se fôssemos alçados ao alto das montanhas do Sul de Minas e de lá divisássemos o mundo. Se a in/fluência da música e poesia mineira mais universal que há se apresenta, nas picadas abertas por monstros sagrados como Milton (onipresente), Toninho Horta (que toca em uma faixa) ou Drummond, também se apresenta o Prósperi com sua própria voz e caminhos, com suas teclas audazes que percutem não as cordas do piano, mas nossas fibras, neurônios, artérias.

Sim, habemos baladas, como a faixa título e Conta, ou Samba em sete, um compasso lunar, digamos assim, trova em toada como De Mar e de Drummond, hibridações que navegam por águas impressionistas até eventualmente as costas da península Ibérica, feito o par Vinheta da quietude/Inquietação (esta última em parceria com Edson Penha), ou a sutil brasilidade jobinianamente sincopada de Hora senhora. E claro, aquela mistura subversiva de fronteiras em que se pode reconhecer as pegadas dos sons imaginários de um certo Clube que ocupou a Esquina mais aberta do planeta, ouvida em Caminhante (com Talis Júlio) e Feira da fé, por exemplo.

Por fim, muito apropriado que a arte do álbum traga o traço extremamente humano da nossa querida Loló Weissman. É tudo, enfim, muito próprio e apropriado. E indisfarçável é a minha alegria em ter o Clayton como parceiro, com a sensação de que muitas canções ainda vamos botar nos trilhos dessa terra. Assim, pela Prosperidade da música popular brasileira, ouça. Se possível, de fone.