Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

4 de novembro de 2014

Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 2a. parte

Retomando agora, após permanecer em estado de hibernação e enfrentar uma longa seca, a nova lista de mais 30 canções geniais do Clube da Esquina retorna em grande estilo, para embalar, com as costumeiras análises minuciosas de meu grande parceiro e amigo Pablo Castro. Sem mais delongas!
6. Aqui, oh!
Agora, de Toninho Horta e Fernando Brant, samba acelerado e molhado de tempero harmônico que só Toninho sabe fazer :
A ironia dissimulada da letra de Aqui, oh! pode levar o ouvinte a se enganar, julgando ser um samba mineiro exaltação ; trata-se, na verdade, de uma crítica sagaz a Minas Gerais, onde “alegria é guardada em cofres, catedrais “ , “ tem benção de Deus todo aquele que trabalha no escritório”, onde “um caminhão leve quem ficou por vinte anos ou mais” ... os desníveis e o sentido profundamente vertical das montanhas são traduzidos pela austeridade, a severidade do julgamento, o rigor da moral cristã, a condenação ao “trabalho sério”, a vida dignificada na penitência da avareza , no recolhimento e na apropriação sacramental da riqueza, e a humilhação de ter que ir a pé até o “pai”, figura suprema da encarnação da autoridade e dos deveres de um homem de bem. Até mesmo a redenção do amor encontrado na varanda, que representaria um escape desse universo rígido e opressor, em modulação na harmonia, é subitamente enquadrada na mesma equação em que tudo o mais é posto, como mais um dos frutos benditos concedidos pelo senhor ao homem honrado que cumpre suas obrigações. ( Em “Ele Falava Nisso Todo Dia”, de Gil, o protagonista da narrativa tem um destino tragicômico , em decorrência da busca incessante da segurança financeira ...) O eu lírico dessa canção se compraz com a ironia de sua mirada a Minas, sem cair no amaldiçoamento de Crônica da Casa Assassinada , do romancista Lúcio Cardoso, para quem Minas , segundo suas palavras, deveria ser simbolicamente destruída, por ser fonte de repressão atávica, mas também longe de uma louvação ufanista banal ; Minas aparece aqui como espelho de sinais ambíguos e invertidos da vida que se preconiza e aquela que, de fato, se vive, ainda que a pé e sem um tostão.
Toda essa ambigüidade e profusão de sentidos é expressa pelas harmonias altamente temperadas de Toninho Horta, embora encadeadas em firme quadratura , num tom de Mi Maior ; a forma já menos clássica, com uma parte A de 20 compassos , desembocando em uma breve parte B , modulada para Fá Sustenido, “na varanda eu vejo o meu amor”, em seis compassos, seguida por uma espécie de estribilho : “bendito é o fruto dessas Minas Gerais” .
Interessante notar como o movimento pendular dos dois primeiros acordes da música, E7M(9) e C7M(13)(9), depois dá lugar a um tempo mais longo de E7M , seguido por um Lá alterado , A7(9)(#11)(13) , depois do que o ritmo harmônico se acelera . O percurso harmônico insinua uma modulação não-confirmada para Sol Maior, com Am7(9) e D7(13) , quando o que vem é a cascata de dominantes, G#7(13), G#7(b13), C#7(11)(9) , C#7(b9)(#11) , e voltando ao tom por meio da sequência F#m(7)(9) ( Segundo grau do campo harmônico de Mi Maior) , G#m7(9) ( Terceiro grau alterado, pela nona justa, do mesmo campo harmônico) , Am7(9) (Quarto grau menor) e B7(11)(b9) (Quinto grau dominante do homônimo Mi Menor) . e voltamos, brevemente ao tom de Mi, para mais uma volta ao dominante do dominante do dominante (C#7(b9) ) e enfatizamos mais tempo o Dominante do Dominante, F#7(9)(13). Esse acorde tem um sentido irônico, quase jocoso, o que enfatiza a mensagem provocativa da letra. E ele é repetido como um amuleto modal para os vários compassos de improviso que costumam preencher essa canção, transformada por muitas vezes em tema para improvisação.
A primeira versão dessa canção saiu no disco da igrejinha, o Milton Nascimento de 1969, com o próprio Toninho no violão e no contracanto; de fato, essa era a primeira composição dele a ser gravada por Bituca, de uma série de pérolas, e também traz a assinatura do então jovem Fernando Brant. Mais tarde, em 1983, Toninho lançaria uma versão de Aqui, oh! no seu segundo disco, já com uma instrumentação mais recheada e virtuosística a provar o desafio de improvisar sobre tão elaborada harmonia. De todos os membros do Clube, o único a fazer frequentemente sambas foi o Toninho, mas sambas tão molhados de sua concepção harmônica, que passaram despercebidos aos guetos tradicionais do gênero.

Aqui , Oh! ( Toninho Horta e Fernando Brant)

Oh Minas Gerais
Um caminhão leva quem ficou
Ou vinte anos, ou mais
Eu iria a pé
Oh, meu amor
Eu iria até meu pai
Sem um tostão
Em Minas Gerais a alegria é
Guardada em cofres, catedrais
Na varanda eu vejo o meu amor
Tem bênção de Deus
Todo aquele que trabalha no escritório
Bendito é o fruto (x3)
dessas Minas Gerais
(Minas Gerais...)




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7. Nascente ( Flávio Venturini – Murilo Antunes )
Balada suprema de Flávio Venturini e Murilo Antunes, já eternizada em dezenas de releituras, Nascente lhes valeu o convite para o ingresso no restrito grupo de compositores gravados por Milton Nascimento, na década de 70, quando, depois da estréia em gravação do primeiro disco de Beto Guedes, A Página do Relâmpago Elétrico, de 77, ela foi regravada no Clube da Esquina II , no ano seguinte, com participação vocal do próprio Flávio , e arranjo do grande Francis Hime.
Mas a versão que tenho como base é mesmo a primeira, de Beto, em que este canta seu falsete metálico e executa a bateria, o compositor Flávio no órgão, Novelli ao piano, Nelson Ângelo ao violão e Toninho Horta no baixo e na orquestração. A introdução se vale de ataques repentinos e suspense que vai sendo cautelosamente criado pela alternância de piano, violão, órgão e os pratos do cantor. Essa introdução, que depois volta sob a função de interlúdio instrumental, é essencial para o efeito que a melodia vocal causa ao entrar a voz : atacando, depois de um salto, dramaticamente a quarta justa da escala do tom recém-descoberto Sol Maior, o começo da melodia é já uma espécie de apogeu antecipado, de uma força incomum para a primeira frase vocal.
A letra, de um erotismo a um mesmo tempo incandescente e contido, vagueia entre metáforas visuais, quando a “estrela” aponta a nota mais aguda e alta da tessitura melódica, e surpreende pelo cume de seu salto ; nada é devidamente desentranhado desse rol de imagens que seja mais prosaico ; ao contrário, o sentimento da canção jorra muito além do que qualquer racionalização pudesse explicar. E Nascente é uma das baladas com maior carga de emoção que pode acometer um cantor : as poucas e sintéticas frases da música tem em cada nota uma densidade emotiva fora do comum.
A forma também é engenhosa, embora também firmemente ancorada em quadraturas. A introdução nos leva a um passeio de Mi Menor até a clarificação de Sol Maior, seu relativo, em 8 lentos compassos , cada um nos respectivos acordes : Em7 / F#m7 / F7M / F#m7 / D7M/F# / F7M(9) / Em7(9) / Eb6(b5) / D7(4)(9) . Então, a voz entra “clareando” , em appogiatura da quarta para a terça maior, em duas notas longas , de meio compasso cada. Segue-se uma inclinação para o relativo Mi Menor, a partir do qual o ritmo harmônico dobra e mais uma vez se inclina para o mesmo Mi Menor. Dessa vez, a descendente do baixo nos leva a C7M( quarto grau), alternando com C#m7(b5), e proporcionando uma ambigüidade clássica entre um tom maior e seu relativo menor, no caso, Sol Maior e Mi Menor. Logo em seguida, temos a repetição do desenvolvimento da parte A, a partir do momento em que aparece o Mi Menor. Trata-se de um efeito formal sutil , distintivo, e nada vulgar, de fazer o giro na canção sem voltar sempre no mesmo começo do ciclo.
Nascente carrega em si , dessa forma, os méritos de seu grande sucesso, e aponta , de certa forma, a direção de seu compositor : baladas românticas tomadas de grandes metáforas visuais e jorros de emoção melódica e alguma ambigüidade harmônica. Tanto é assim que Flávio Venturini, assim que saiu do 14 Bis, lançou um disco tendo ela como canção-título, inaugurando uma bem sucedida carreira muito pautada já por essa canção. "

Nascente ( Flávio Venturini - Murilo Antunes )

Clareia manhã
O sol vai esconder a clara estrela
Ardente, pérola do céu refletindo teus olhos
A luz do dia a contemplar teu corpo
Sedento, louco de prazer e desejos
Ardentes




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8. Bodas ( Milton Nascimento e Ruy Guerra)
O cineasta, poeta , dramaturgo e letrista Ruy Guerra era parceiro de Milton Nascimento, antes e depois de escrever a peça censurada Calabar*, ao lado de Chico Buarque e assina algumas das letras mais violentas** contra a ditadura militar que figuram no cancioneiro do Clube da Esquina. Destacam-se Canto Latino, E Daí, e Bodas.
O sax-tenor Paulo Moura imita as trombetas do inferno que foi a invasão das Américas pelos europeus, e um ataque imperial de Robertinho Silva em seus tambores é transmutado em momento mágico pelo phaser da guitarra de Toninho Horta, enquanto Bituca anuncia : Chegou num porto um canhão, dentro de uma canhoneira , neira, neira, neira , neira ...
O eco das terminações de tais ícones da tecnologia bélica, os índices da riqueza e da violência, da rainha ao capitão, a pólvora e a taça de prata, todos esses objetos que representam a fome que eles tinham de cacau e sangue, reproduzem os desdobramentos nunca apagados de toda a opressão e do genocídio que o processo de colonização significou, a despeito de tudo ter sido feito em nome do Senhor. Não se mata assim uma única vez, e a volta e a repetição de cada um desses golpes é amplificada pelo canto quase grito de Milton, nas grimpas de sua voz retumbante.
“Deus” aparece aqui no seu verdadeiro papel de salvaguarda moral para todos os tipos de atrocidades cometidas em nome da bandeira inglesa, e de tantas outras. A Corte atenta e faminta pelo cacau dessa mata, mata , mata , mata , é , por fim, satisfeita.
Os acordes giram em torno de Si Bemol Maior, com aparições de Fá Maior, Sol Menor, e Dó com Sétima suspenso , e Mi bemol Maior. Diríamos que a tonalidade oscila, no percurso da canção, entre Si Bemol Maior e Fá Maior, com uma breve passagem por Sol Maior ( Minha vida e minha morte ...) Mas essa canção não passa por uma resolução progressiva de tensões hamônicas, antes usando, longamente, cada acorde como uma cena épica e dramática do que conta a letra. O recurso do eco indefinido, a falta de pulso regular, a introdução cerimonial e a violência do canto nos levam direto a um lugar-tempo histórico onde ainda lateja a dor de tanto sangue derramado em nome da moral e dos bons costumes.
Bem apropriado para o momento histórico que estamos vivendo. 


*N.E. Me ocorre que o recurso de remeter ao tempo histórico da colonização tratando simultaneamente dos conflitos próprios daqueles tempos de chumbo constitui não uma semelhança entre Bodas e a peça Calabar, mas também um ponto de convergência entre várias canções populares do período. Um ponto a ser devidamente explorado pelos historiadores, para além do recurso didático - muito válido, diga-se de passagem - de recorrer a estas canções para interpretar a leitura que fazem do período em questão. 

** N.E. Quanto a isso remeto o leitor à análise comparativa proposta por Túlio Villaça entre Bodas e Mathilda Mother do Pink Floyd, em seu ótimo blog Sobre a canção [aqui]


 
Bodas 

chegou no porto um canhão
dentro de uma canhoneira, neira, neira...
tem um capitão calado
de uma tristeza indefesa, esa, esa...
deus salve sua chegada
deus salve a sua beleza
chegou no porto um canhão
de repente matou tudo, tudo, tudo...
capitão senta na mesa
com sua fome e tristeza, esa, esa...
deus salve sua rainha
deus salve a bandeira inglesa
minha vida e minha sorte
numa bandeja de prata, prata, prata...
eu daria à corte atenta
com o cacau dessa mata, mata, mata...
daria à corte e à rainha
numa bandeja de prata, prata, prata...
pra ver o capitão sorrindo
foi-se embora a canhoneira
sua pólvora e seu canhão, canhão, canhão...
porão e barriga cheia
vai mais triste o capitão
levando cacau e sangue, sangue, sangue...
deus salve sua rainha
deus salve a fome que ele tinha.

https://www.youtube.com/watch?v=lurFsYB3peE
https://www.youtube.com/watch?v=fOxPv9vDlLM

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 9. Ponta de Areia ( Milton Nascimento – Fernando Brant) 

A despeito de ser um compositor que costuma navegar as águas mais profundas e tortuosas das páginas da música popular, Milton Nascimento tem um canal fino de acesso ao mais infantil das cirandas de roda, capaz de desenhar as melodias mais singelas em acordes perfeitos, sob as quais ocorrem as mais heterodoxas passagens rítmicas sem que se aperceba delas, tal a integridade da frase melódica e da forma. Em certas ocasiões, a simplicidade formal é incrível, como nesta pérola, que consiste na simples reexposição de uma frase "a" e uma variação dela, "a´". Em Raça vemos esse mesmo minimalismo melódico.
Claro que esse aspecto hai-cai da melodia é dirimido pela longa introdução de sua gravação primeira, no disco Minas, com as sinuosidades do sax de Nivaldo Ornellas e a felliniana ambientação musical e percussiva que segue, interrompidas pelo canto idílico de crianças no jardim de infância, em Fá Maior; desse jardim somos catapultados de súbito uma quarta acima, em Si Bemol, tom que vai predominar daí até quase o fim, com o surreal falsete miltoniano em suas pontas mais agudas. Um coro sacro sustenta a primeira estrofe que enuncia o último ponto da estrada de ferro que ligava Minas à Bahia*; a estrada de ferro, antes índice máximo da tecnologia mundial dos transportes, curiosamente aparece como elemento da natureza, da paisagem já tomada, e agora despido de sua força-vital ; “mandaram arrancar”. Em torno da estrada de ferro todo um cenário se constitui e se desvanece , e vai se perdendo numa nostalgia que se verifica, também, em Saudade dos Aviões da Panair, também letra de Fernando Brant. Os meios de transporte "ultrapassados", como o bonde, o trem, e os antigos aviões, são tomados como eixo lírico de toda uma visão de mundo que tem no Brasil - e no interior do país - seu centro geográfico. A passagem do tempo impele um trabalho contínuo de destruição e ressignificação do que antes era progresso e hoje é nostalgia ; mas esse tempo histórico não é tido como natural, e o sub-texto da canção é uma condenação velada ao desenvolvimentismo do Brasil Grande, com suas Transamazônicas e o sucateamento das ferrovias, ao mesmo tempo que a Feira Moderna da televisão nacional anunciava o encurtamento das distâncias, enquanto outras só se alargavam.
Notável, voltando aos aspectos estritamente musicais, é o solo desenvolto e de arribação de Nivaldo Ornellas, assim como a articulação entre bateria, Paulo Braga, baixo elétrico, Novelli, e piano elétrico, Wagner Tiso, para a levada pop de uma música tão idiossincrática em sua métrica: um compasso de 4/4 é seguido de um de 5/4, em ambas as frases da melodia; porém a acentuação sugere outras possibilidades de divisão de compassos, como um compasso de 4/4, um de ¾ e um de 2/4 . E é incrível como as platéias mais leigas nunca se confundem com isso, como a reafirmar a naturalidade da divisão melódica. Cantigas de roda com esse tipo de característica não ocorrem a qualquer compositor.
Regravada uma infinidade de vezes, trata-se de uma das mais consagradas loas da dupla Nascimento e Brant, e é natural que a grandeza da música se justifique por sua simplicidade misteriosa e reveladora.


*N.E. A Estrada de Ferro Bahia Minas (EFBM) era uma linha ferroviária brasileira que ligava o norte de Minas Gerais com a cidade de Caravelas no litoral sul da Bahia. Teve como diretriz a ligação do arraial de Ponta de Areia, próximo a cidade de Caravelas, à cidade de Araçuai no interior de Minas Gerais,numa extensão de aproximadamente 600 km. (Rodney Vogel no You Tube).  Cabe lembrar que Fernando Brant, à serviço da revista O cruzeiro, produziu o texto de foto-reportagem a respeito do encerramento das atividades da linha, que segundo o próprio lhe inspirou a criar a letra da canção.

https://www.youtube.com/watch?v=kXABM6vuCmM
https://www.youtube.com/watch?v=L2AI5S76WIg
https://www.youtube.com/watch?v=eApasQ8a1Zs
https://www.youtube.com/watch?v=GNhMmdbNqso
https://www.youtube.com/watch?v=ebCi2x48U6c
https://www.youtube.com/watch?v=V7snPl8L6Zg
https://www.youtube.com/watch?v=OYV11DtFPWI [com imagens do trajeto Bahia-Minas]

Ponta de Areia ( Milton Nascimento – Fernando Brant) 

Ponta de areia ponto final
Da Bahia-Minas estrada natural

Que ligava Minas ao porto ao mar
Caminho de ferro mandaram arrancar

Velho maquinista com seu boné
Lembra do povo alegre que vinha cortejar
 
Maria fumaça não canta mais
Para moças flores janelas e quintais

Na praça vazia um grito um ai
Casas esquecidas viúvas nos portais



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10. Uma Canção ( Lô Borges e Ronaldo Bastos)
O cancioneiro nacional é repleto de meta-canções extraordinárias, desde Feitio de Oração, de Noel Rosa e Vadico, até Festa Imodesta de Caetano Veloso, desde O Compositor Me Disse , de Gilberto Gil até Corrente, de Chico Buarque, para não falar na sensacional Letra de Música, de Kristoff Silva e Makely Ka, célebre no nosso eldorado subterrâneo. “Enquanto o ouvido duvida o olho trabalha, dilatando a pupila pra ver nublado brotar a lágrima” . Poucas são tão singelas quando Uma Canção, lamento em Mi Menor cantado com ecos joãogilbertianos por Lô Borges, enquanto dedilha seu violão de cordas de aço e assobia a melodia despreocupadamente.
O lirismo melancólico, inscrito no cromatismo melódico descendente inicial, em campo claro de Mi Menor, passando pelo sexto e quarto graus ( Dó e Lá Menor) , é dos mais distintos, ilustrado por inspiradas imagens pontuais que apontam para o caráter sintético do objeto canção. A leveza que sustenta o peso, o raio que penetra o desvão, o cheiro que carrega o tempo, e lâmina de tal precisão: imagens cristalinas na descrição do ato de compor, lapidar um objeto fugaz, abstrato e ao mesmo tempo depositário de tanto sentido.
A valsa flui enquanto o desenho harmônico acumula graus de suspense e resoluções diferidas, como em A7(9), e aquela dicção típica de Lô se encontra nas equilibradas alternâncias entre graus conjuntos e saltos ; no aspecto forma, temos apenas um A com algumas variações no fim de sua segunda seção, que tem uma extensão de 14 compassos, na seguinte disposição : 3+4+4+3 . Essa extensão muda, assim como a resolução harmônica, ao fim da terceira estrofe, e ainda numa outra variação para o fim da música, com aparições elegantes de empréstimos modais do modo frígio e a resolução no homônimo maior. Coisa de gênio. Das suas maiores baladas, Uma Canção adquiriu monumental reputação em rodas de violão de amantes da música mineira.

Uma Canção (Lô Borges e Ronaldo Bastos)



Uma canção é leve e pode sustentar
Toda emoção
Que pesa demais
E num passe de mágica faz voar
É gota d'água e faz transbordar
Vai na enchente arrastando
O que pode transformar
Em nuvem do céu
Da inundação
Uma canção é clara e pode penetrar
Negro desvão
Que um raio de sol
Com a súbita chama faz clarear
Um viajante que se fez perder
Por sua estrela se inicia
Nos mistérios de querer
A lâmina ser
De tal precisão
Qualquer pessoa pode assoviar
A voz humana se decifra
Quando canta por prazer
De juntos trilharmos uma canção
Uma canção é lenha e pode consumir
Uma paixão, um caso de amor
Que o som das palavras vai traduzir
É rima simples e retém calor
Se ilumina quando toca uma pessoa
Que se quer bem perto da brasa do coração
Uma canção tem cheiro e pode transportar
Uma fração de um tempo qualquer
Que a gente viveu num outro lugar
É diamante para lapidar
Na pedra bruta segue o veio da beleza
Quando faz soar cristalina revelação...

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11 de outubro de 2014

De nuevo en la esquina

Amanhã parto para Salvador, rumo ao XI Congresso da IASPM-AL. Como já havia comentado aqui, irei dividir com o caro colega Lauro Meller a coordenação de um simpósio sobre Beatles, agora acumulando juntos também a coordenação de um outro sobre rock e heavy metal (esse bem mais a praia dele que a minha) em função das dificuldades operacionais de deslocamento dos colegas que o fariam. Enquanto preparo o material me lembrei que há poucos dias divulguei pela internet um antigo texto, fruto da minha pesquisa de mestrado, que foi publicado em espanhol pela revista mexicana Anuario de Espacios Urbanos.
Quando se pesquisa um tema por tanto tempo às vezes nos interrogamos sobre a pertinência de continuar a fazê-lo. Aí vejo tanta gente me procurando, me pedindo orientação, cópia dos trabalhos, trocando ideias, e me animo. Hoje o cenário é diferente de quando iniciei, com muitos estudos em diversas áreas do conhecimento abordando a música popular e o Clube da Esquina. Por esse motivo mesmo, segue: 

De nuevo en la esquina los hombres están: práticas musicales y sociabilidades urbanas

28 de setembro de 2014

Recomendação do blog - Cafe Songbook



Cafe Songbook - site devotado ao grande cancioneiro popular estadunidense. 
 
Ótimo achado do meu parceiro Pablo Castro, de quem cito a apresentação a seguir:

É difícil para nós , que nascemos por volta de meio século depois desses standards serem criados, entender que o auge da canção americana foi durante as décadas de 1930 e 1940. Letristas e compositores maravilhosos, procedimentos musicais que formam a espinha dorsal das investigações artísticas da forma sintética da canção, e sua relação virtuosa com o meio instrumental : tudo isso vem de então.No site, para cada música, há links para várias versões de cada um desses clássicos, e sessões sobre crítica, história, referências à literatura do assunto, em suma, uma coisa enriquecedora sobre a grande canção americana.




Da apresentação do site:

"Cafe Songbook is A Virtual Cafe devoted to the songs of The Great American Songbook, the songwriters who created them and the artists who perform them. The term "The Great American Songbook" has several iterations. There is the long form as just stated and the shorter versions, "American Songbook" and just "The Songbook."[...] Cafe Songbook is like most music cafe's in that it has its stage, albeit virtual one, on which the music is performed; however, unlike most cafes and clubs, it is not a place where one featured entertainer or group performs a slate of of songs, but rather where one song is presented by a slate of performers."

Acesse: aqui 

 

22 de setembro de 2014

Dançando com os ouvidos


Chico Buarque e Edu Lobo cantam "Ciranda da bailarina" no programa "Te lo do io il Brasile" de 1984 (RAI TV - Itália)




Ciranda da bailarina (Edu Lobo/Chico Buarque) do musical O Grande Circo Místico [conheça, aqui]. Espetáculo marcante, conjugando dança, música, circo, teatro e poesia. O tempo hoje tá curto mas qualquer hora pinta um texto aqui sobre ele. Mas acabei encontrando esses vídeos, intimistas, motivado pelo comentário feito por uma querida colega pesquisadora, com quem já tive muita satisfação em trabalhar, a Carla Corradi, relatando que estava transcrevendo uma entrevista concedida por uma bailarina. Me senti imediatamente dançando com os ouvidos...


Procurando bem todo mundo tem pereba,
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira, verruga, nem frieira
Nem falta de maneira ela não tem

Futucando bem, todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho,
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida, nem dente com comida
Nem casca de ferida ela não tem

Não livra ninguém,
Todo mundo tem remela quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem

Medo de subir, gente
Medo de cair,gente, medo de vertigem quem não tem?

Confessando bem,
Todo mundo faz pecado, logo assim que a missa termina
Todo mundo tem um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem

Sujo atrás da orelha, bigode de groselha
Calcinha um pouco velha ela não tem
O padre também pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina

Reparando bem todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília, goteira na vasilha
Problema na família, quem não tem?

Procurando bem...
Todo mundo tem...
Procurando bem...


(Outro vídeo, também de 1984, salvo engano extraído daquela série de dvds do Chico)


30 de agosto de 2014

Bolacha Completa - Elis Ao Vivo (1995)

Em mais uma postagem da série Bolacha Completa, compartilho com os leitores do Massa Crítica MPB o belo texto escrito pelo Alberto Campos, companheiro das navegações noturnas nas digitais redes pesqueiras da boa prosa e da boa música popular. Só posso agradecê-lo por emprestar ao blog essa pérola que fabricou no ventre de sua audição interior. 

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Por Alberto Campos

Deixei a sala da casa na penumbra para melhor ouvir o disco póstumo Elis Ao Vivo (1995)*, um registro do show da cantora de 1977, grávida de 07 meses da Maria Rita. O som é limpo. Acho que a gravação mais bonita da canção Morro Velho está nesse registro. Elis se emociona e transparece tranquilidade, paz de espírito e o canto firme como se estivesse segura do futuro que lhe esperava. Ouço o disco e penso na gravidez como metáfora. A natureza nos fez um corpo masculino sem estrutura física para desenvolver o processo de gestação dos mamíferos. Daí, podemos ter o que vou chamar de gravidez poética. Ideias que guardamos consigo e não compreendemos. Ela vai sendo gestada sensivelmente e à nossa revelia, muitas vezes sendo percebida pelos outros, como algo em desenvolvimento, como algo que por vezes nos deixa melancólicos ou efusivos de modo inconstante. Penso nisso porque o dia de hoje me ofereceu muitas perguntas e poucas respostas. Vi a afetividade agressiva, artística e masculina de um artista de Roraima, que apresentou canções sobre o impulso tribal e indígena que há em todos nós, brasileiros, e tudo na linguagem de bateria+guitarra+percussão. Ouvi conversas sobre gravidez e sobre abortos, a balança que carrega de um lado o peso da vida e do outro o peso da morte. Ouvi conversas sobre maturidade e realização profissional. Dancei um pouco com todas estas ideias, admito. Mas elas permaneceram ainda em órbita. Vi imagens compartilhadas no facebook de lindas mulheres grávidas e suas expectativas radiantes sobre a glória da vida, a continuidade de todos nós. Tudo isso me comoveu. E voltei aos meus pensamentos de homem grávido que estou. Veio então a sensação de vertigem. A mesma sensação de quando temos febre alta na infância. Os olhos fechados e a percepção alterada de que o corpo se expandiu para todo o espaço da sala. A gravidez poética de um homem talvez possa soar confusa para quem racionaliza demais a experiência. Alguns poderão definir como torpor lisérgico com ironia. Podem dizer o que quiser. Mas não é nada disso. Elis Regina continua me conduzindo a universos expandidos de tranquilidade e segurança com sua voz. Já no final do disco, ela canta: "As coisas que eu sei de mim tentam vencer a distância e é como se aguardassem feridas numa ambulância. As pobres coisas que eu sei podem morrer, mas espero como se houvesse um sinal, sem sair do amarelo" (Transversal do Tempo). Ainda em estado de suspensão febril, a voz de Elis parece ser a companhia ideal. Parece haver uma cumplicidade entre a voz da cantora e os ouvidos deste homem grávido de pensamentos. Esse depoimento não pretende de jeito maneira ser alguma bandeira do anima masculino, nada disso. Quem me tem por perto sabe do azul, sabe do jeito de expressão. Não sei se haverá um parto de textos poéticos, rs, mas acho que vale à pena parar um pouco com a pressa dos dias, deitar na penumbra e ouvir esse disco da Elis Regina. Não precisa estar grávido. Mas, se estiver, talvez a gente se entenda. 

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* [Nota do editor] Elis ao vivo (1995) [ouvir completo, aqui] foi editado pela Velas a partir de gravação realizada no dia 25/07/1977, no Palácio de Convenções do Anhembi, SP, durante o programa O Fino da Música, da Rádio Jovem Pan, produzido por Zuza Homem de Mello. 

Faixas

1 Como nossos pais
(Belchior)
2 Travessia
(Milton Nascimento, Fernando Brant)
3 Morro Velho
(Milton Nascimento)
4 Romaria
(Renato Teixeira)
5 A dama do apocalipse
(Crispim, Natan Marques)
6 Colagem
(Cláudio Lucci)
7 Madalena
(Ronaldo Monteiro, Ivan Lins)
8 Qualquer dia
(Vitor Martins, Ivan Lins)
9 Cadeira vazia
(Alcides Gonçalves, Lupicínio Rodrigues)
10 Vida de bailarina
(Américo Seixas, Chocolate)
11 Triste
(Tom Jobim)
12 Dois pra lá, dois pra cá
(Aldir Blanc, João Bosco)
13 Mestre sala dos mares
(Aldir Blanc, João Bosco)
14 Transversal do tempo
(Aldir Blanc, João Bosco)
15 Cartomante
(Vitor Martins, Ivan Lins)