Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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4 de novembro de 2014

Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 2a. parte

Retomando agora, após permanecer em estado de hibernação e enfrentar uma longa seca, a nova lista de mais 30 canções geniais do Clube da Esquina retorna em grande estilo, para embalar, com as costumeiras análises minuciosas de meu grande parceiro e amigo Pablo Castro. Sem mais delongas!
6. Aqui, oh!
Agora, de Toninho Horta e Fernando Brant, samba acelerado e molhado de tempero harmônico que só Toninho sabe fazer :
A ironia dissimulada da letra de Aqui, oh! pode levar o ouvinte a se enganar, julgando ser um samba mineiro exaltação ; trata-se, na verdade, de uma crítica sagaz a Minas Gerais, onde “alegria é guardada em cofres, catedrais “ , “ tem benção de Deus todo aquele que trabalha no escritório”, onde “um caminhão leve quem ficou por vinte anos ou mais” ... os desníveis e o sentido profundamente vertical das montanhas são traduzidos pela austeridade, a severidade do julgamento, o rigor da moral cristã, a condenação ao “trabalho sério”, a vida dignificada na penitência da avareza , no recolhimento e na apropriação sacramental da riqueza, e a humilhação de ter que ir a pé até o “pai”, figura suprema da encarnação da autoridade e dos deveres de um homem de bem. Até mesmo a redenção do amor encontrado na varanda, que representaria um escape desse universo rígido e opressor, em modulação na harmonia, é subitamente enquadrada na mesma equação em que tudo o mais é posto, como mais um dos frutos benditos concedidos pelo senhor ao homem honrado que cumpre suas obrigações. ( Em “Ele Falava Nisso Todo Dia”, de Gil, o protagonista da narrativa tem um destino tragicômico , em decorrência da busca incessante da segurança financeira ...) O eu lírico dessa canção se compraz com a ironia de sua mirada a Minas, sem cair no amaldiçoamento de Crônica da Casa Assassinada , do romancista Lúcio Cardoso, para quem Minas , segundo suas palavras, deveria ser simbolicamente destruída, por ser fonte de repressão atávica, mas também longe de uma louvação ufanista banal ; Minas aparece aqui como espelho de sinais ambíguos e invertidos da vida que se preconiza e aquela que, de fato, se vive, ainda que a pé e sem um tostão.
Toda essa ambigüidade e profusão de sentidos é expressa pelas harmonias altamente temperadas de Toninho Horta, embora encadeadas em firme quadratura , num tom de Mi Maior ; a forma já menos clássica, com uma parte A de 20 compassos , desembocando em uma breve parte B , modulada para Fá Sustenido, “na varanda eu vejo o meu amor”, em seis compassos, seguida por uma espécie de estribilho : “bendito é o fruto dessas Minas Gerais” .
Interessante notar como o movimento pendular dos dois primeiros acordes da música, E7M(9) e C7M(13)(9), depois dá lugar a um tempo mais longo de E7M , seguido por um Lá alterado , A7(9)(#11)(13) , depois do que o ritmo harmônico se acelera . O percurso harmônico insinua uma modulação não-confirmada para Sol Maior, com Am7(9) e D7(13) , quando o que vem é a cascata de dominantes, G#7(13), G#7(b13), C#7(11)(9) , C#7(b9)(#11) , e voltando ao tom por meio da sequência F#m(7)(9) ( Segundo grau do campo harmônico de Mi Maior) , G#m7(9) ( Terceiro grau alterado, pela nona justa, do mesmo campo harmônico) , Am7(9) (Quarto grau menor) e B7(11)(b9) (Quinto grau dominante do homônimo Mi Menor) . e voltamos, brevemente ao tom de Mi, para mais uma volta ao dominante do dominante do dominante (C#7(b9) ) e enfatizamos mais tempo o Dominante do Dominante, F#7(9)(13). Esse acorde tem um sentido irônico, quase jocoso, o que enfatiza a mensagem provocativa da letra. E ele é repetido como um amuleto modal para os vários compassos de improviso que costumam preencher essa canção, transformada por muitas vezes em tema para improvisação.
A primeira versão dessa canção saiu no disco da igrejinha, o Milton Nascimento de 1969, com o próprio Toninho no violão e no contracanto; de fato, essa era a primeira composição dele a ser gravada por Bituca, de uma série de pérolas, e também traz a assinatura do então jovem Fernando Brant. Mais tarde, em 1983, Toninho lançaria uma versão de Aqui, oh! no seu segundo disco, já com uma instrumentação mais recheada e virtuosística a provar o desafio de improvisar sobre tão elaborada harmonia. De todos os membros do Clube, o único a fazer frequentemente sambas foi o Toninho, mas sambas tão molhados de sua concepção harmônica, que passaram despercebidos aos guetos tradicionais do gênero.

Aqui , Oh! ( Toninho Horta e Fernando Brant)

Oh Minas Gerais
Um caminhão leva quem ficou
Ou vinte anos, ou mais
Eu iria a pé
Oh, meu amor
Eu iria até meu pai
Sem um tostão
Em Minas Gerais a alegria é
Guardada em cofres, catedrais
Na varanda eu vejo o meu amor
Tem bênção de Deus
Todo aquele que trabalha no escritório
Bendito é o fruto (x3)
dessas Minas Gerais
(Minas Gerais...)




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7. Nascente ( Flávio Venturini – Murilo Antunes )
Balada suprema de Flávio Venturini e Murilo Antunes, já eternizada em dezenas de releituras, Nascente lhes valeu o convite para o ingresso no restrito grupo de compositores gravados por Milton Nascimento, na década de 70, quando, depois da estréia em gravação do primeiro disco de Beto Guedes, A Página do Relâmpago Elétrico, de 77, ela foi regravada no Clube da Esquina II , no ano seguinte, com participação vocal do próprio Flávio , e arranjo do grande Francis Hime.
Mas a versão que tenho como base é mesmo a primeira, de Beto, em que este canta seu falsete metálico e executa a bateria, o compositor Flávio no órgão, Novelli ao piano, Nelson Ângelo ao violão e Toninho Horta no baixo e na orquestração. A introdução se vale de ataques repentinos e suspense que vai sendo cautelosamente criado pela alternância de piano, violão, órgão e os pratos do cantor. Essa introdução, que depois volta sob a função de interlúdio instrumental, é essencial para o efeito que a melodia vocal causa ao entrar a voz : atacando, depois de um salto, dramaticamente a quarta justa da escala do tom recém-descoberto Sol Maior, o começo da melodia é já uma espécie de apogeu antecipado, de uma força incomum para a primeira frase vocal.
A letra, de um erotismo a um mesmo tempo incandescente e contido, vagueia entre metáforas visuais, quando a “estrela” aponta a nota mais aguda e alta da tessitura melódica, e surpreende pelo cume de seu salto ; nada é devidamente desentranhado desse rol de imagens que seja mais prosaico ; ao contrário, o sentimento da canção jorra muito além do que qualquer racionalização pudesse explicar. E Nascente é uma das baladas com maior carga de emoção que pode acometer um cantor : as poucas e sintéticas frases da música tem em cada nota uma densidade emotiva fora do comum.
A forma também é engenhosa, embora também firmemente ancorada em quadraturas. A introdução nos leva a um passeio de Mi Menor até a clarificação de Sol Maior, seu relativo, em 8 lentos compassos , cada um nos respectivos acordes : Em7 / F#m7 / F7M / F#m7 / D7M/F# / F7M(9) / Em7(9) / Eb6(b5) / D7(4)(9) . Então, a voz entra “clareando” , em appogiatura da quarta para a terça maior, em duas notas longas , de meio compasso cada. Segue-se uma inclinação para o relativo Mi Menor, a partir do qual o ritmo harmônico dobra e mais uma vez se inclina para o mesmo Mi Menor. Dessa vez, a descendente do baixo nos leva a C7M( quarto grau), alternando com C#m7(b5), e proporcionando uma ambigüidade clássica entre um tom maior e seu relativo menor, no caso, Sol Maior e Mi Menor. Logo em seguida, temos a repetição do desenvolvimento da parte A, a partir do momento em que aparece o Mi Menor. Trata-se de um efeito formal sutil , distintivo, e nada vulgar, de fazer o giro na canção sem voltar sempre no mesmo começo do ciclo.
Nascente carrega em si , dessa forma, os méritos de seu grande sucesso, e aponta , de certa forma, a direção de seu compositor : baladas românticas tomadas de grandes metáforas visuais e jorros de emoção melódica e alguma ambigüidade harmônica. Tanto é assim que Flávio Venturini, assim que saiu do 14 Bis, lançou um disco tendo ela como canção-título, inaugurando uma bem sucedida carreira muito pautada já por essa canção. "

Nascente ( Flávio Venturini - Murilo Antunes )

Clareia manhã
O sol vai esconder a clara estrela
Ardente, pérola do céu refletindo teus olhos
A luz do dia a contemplar teu corpo
Sedento, louco de prazer e desejos
Ardentes




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8. Bodas ( Milton Nascimento e Ruy Guerra)
O cineasta, poeta , dramaturgo e letrista Ruy Guerra era parceiro de Milton Nascimento, antes e depois de escrever a peça censurada Calabar*, ao lado de Chico Buarque e assina algumas das letras mais violentas** contra a ditadura militar que figuram no cancioneiro do Clube da Esquina. Destacam-se Canto Latino, E Daí, e Bodas.
O sax-tenor Paulo Moura imita as trombetas do inferno que foi a invasão das Américas pelos europeus, e um ataque imperial de Robertinho Silva em seus tambores é transmutado em momento mágico pelo phaser da guitarra de Toninho Horta, enquanto Bituca anuncia : Chegou num porto um canhão, dentro de uma canhoneira , neira, neira, neira , neira ...
O eco das terminações de tais ícones da tecnologia bélica, os índices da riqueza e da violência, da rainha ao capitão, a pólvora e a taça de prata, todos esses objetos que representam a fome que eles tinham de cacau e sangue, reproduzem os desdobramentos nunca apagados de toda a opressão e do genocídio que o processo de colonização significou, a despeito de tudo ter sido feito em nome do Senhor. Não se mata assim uma única vez, e a volta e a repetição de cada um desses golpes é amplificada pelo canto quase grito de Milton, nas grimpas de sua voz retumbante.
“Deus” aparece aqui no seu verdadeiro papel de salvaguarda moral para todos os tipos de atrocidades cometidas em nome da bandeira inglesa, e de tantas outras. A Corte atenta e faminta pelo cacau dessa mata, mata , mata , mata , é , por fim, satisfeita.
Os acordes giram em torno de Si Bemol Maior, com aparições de Fá Maior, Sol Menor, e Dó com Sétima suspenso , e Mi bemol Maior. Diríamos que a tonalidade oscila, no percurso da canção, entre Si Bemol Maior e Fá Maior, com uma breve passagem por Sol Maior ( Minha vida e minha morte ...) Mas essa canção não passa por uma resolução progressiva de tensões hamônicas, antes usando, longamente, cada acorde como uma cena épica e dramática do que conta a letra. O recurso do eco indefinido, a falta de pulso regular, a introdução cerimonial e a violência do canto nos levam direto a um lugar-tempo histórico onde ainda lateja a dor de tanto sangue derramado em nome da moral e dos bons costumes.
Bem apropriado para o momento histórico que estamos vivendo. 


*N.E. Me ocorre que o recurso de remeter ao tempo histórico da colonização tratando simultaneamente dos conflitos próprios daqueles tempos de chumbo constitui não uma semelhança entre Bodas e a peça Calabar, mas também um ponto de convergência entre várias canções populares do período. Um ponto a ser devidamente explorado pelos historiadores, para além do recurso didático - muito válido, diga-se de passagem - de recorrer a estas canções para interpretar a leitura que fazem do período em questão. 

** N.E. Quanto a isso remeto o leitor à análise comparativa proposta por Túlio Villaça entre Bodas e Mathilda Mother do Pink Floyd, em seu ótimo blog Sobre a canção [aqui]


 
Bodas 

chegou no porto um canhão
dentro de uma canhoneira, neira, neira...
tem um capitão calado
de uma tristeza indefesa, esa, esa...
deus salve sua chegada
deus salve a sua beleza
chegou no porto um canhão
de repente matou tudo, tudo, tudo...
capitão senta na mesa
com sua fome e tristeza, esa, esa...
deus salve sua rainha
deus salve a bandeira inglesa
minha vida e minha sorte
numa bandeja de prata, prata, prata...
eu daria à corte atenta
com o cacau dessa mata, mata, mata...
daria à corte e à rainha
numa bandeja de prata, prata, prata...
pra ver o capitão sorrindo
foi-se embora a canhoneira
sua pólvora e seu canhão, canhão, canhão...
porão e barriga cheia
vai mais triste o capitão
levando cacau e sangue, sangue, sangue...
deus salve sua rainha
deus salve a fome que ele tinha.

https://www.youtube.com/watch?v=lurFsYB3peE
https://www.youtube.com/watch?v=fOxPv9vDlLM

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 9. Ponta de Areia ( Milton Nascimento – Fernando Brant) 

A despeito de ser um compositor que costuma navegar as águas mais profundas e tortuosas das páginas da música popular, Milton Nascimento tem um canal fino de acesso ao mais infantil das cirandas de roda, capaz de desenhar as melodias mais singelas em acordes perfeitos, sob as quais ocorrem as mais heterodoxas passagens rítmicas sem que se aperceba delas, tal a integridade da frase melódica e da forma. Em certas ocasiões, a simplicidade formal é incrível, como nesta pérola, que consiste na simples reexposição de uma frase "a" e uma variação dela, "a´". Em Raça vemos esse mesmo minimalismo melódico.
Claro que esse aspecto hai-cai da melodia é dirimido pela longa introdução de sua gravação primeira, no disco Minas, com as sinuosidades do sax de Nivaldo Ornellas e a felliniana ambientação musical e percussiva que segue, interrompidas pelo canto idílico de crianças no jardim de infância, em Fá Maior; desse jardim somos catapultados de súbito uma quarta acima, em Si Bemol, tom que vai predominar daí até quase o fim, com o surreal falsete miltoniano em suas pontas mais agudas. Um coro sacro sustenta a primeira estrofe que enuncia o último ponto da estrada de ferro que ligava Minas à Bahia*; a estrada de ferro, antes índice máximo da tecnologia mundial dos transportes, curiosamente aparece como elemento da natureza, da paisagem já tomada, e agora despido de sua força-vital ; “mandaram arrancar”. Em torno da estrada de ferro todo um cenário se constitui e se desvanece , e vai se perdendo numa nostalgia que se verifica, também, em Saudade dos Aviões da Panair, também letra de Fernando Brant. Os meios de transporte "ultrapassados", como o bonde, o trem, e os antigos aviões, são tomados como eixo lírico de toda uma visão de mundo que tem no Brasil - e no interior do país - seu centro geográfico. A passagem do tempo impele um trabalho contínuo de destruição e ressignificação do que antes era progresso e hoje é nostalgia ; mas esse tempo histórico não é tido como natural, e o sub-texto da canção é uma condenação velada ao desenvolvimentismo do Brasil Grande, com suas Transamazônicas e o sucateamento das ferrovias, ao mesmo tempo que a Feira Moderna da televisão nacional anunciava o encurtamento das distâncias, enquanto outras só se alargavam.
Notável, voltando aos aspectos estritamente musicais, é o solo desenvolto e de arribação de Nivaldo Ornellas, assim como a articulação entre bateria, Paulo Braga, baixo elétrico, Novelli, e piano elétrico, Wagner Tiso, para a levada pop de uma música tão idiossincrática em sua métrica: um compasso de 4/4 é seguido de um de 5/4, em ambas as frases da melodia; porém a acentuação sugere outras possibilidades de divisão de compassos, como um compasso de 4/4, um de ¾ e um de 2/4 . E é incrível como as platéias mais leigas nunca se confundem com isso, como a reafirmar a naturalidade da divisão melódica. Cantigas de roda com esse tipo de característica não ocorrem a qualquer compositor.
Regravada uma infinidade de vezes, trata-se de uma das mais consagradas loas da dupla Nascimento e Brant, e é natural que a grandeza da música se justifique por sua simplicidade misteriosa e reveladora.


*N.E. A Estrada de Ferro Bahia Minas (EFBM) era uma linha ferroviária brasileira que ligava o norte de Minas Gerais com a cidade de Caravelas no litoral sul da Bahia. Teve como diretriz a ligação do arraial de Ponta de Areia, próximo a cidade de Caravelas, à cidade de Araçuai no interior de Minas Gerais,numa extensão de aproximadamente 600 km. (Rodney Vogel no You Tube).  Cabe lembrar que Fernando Brant, à serviço da revista O cruzeiro, produziu o texto de foto-reportagem a respeito do encerramento das atividades da linha, que segundo o próprio lhe inspirou a criar a letra da canção.

https://www.youtube.com/watch?v=kXABM6vuCmM
https://www.youtube.com/watch?v=L2AI5S76WIg
https://www.youtube.com/watch?v=eApasQ8a1Zs
https://www.youtube.com/watch?v=GNhMmdbNqso
https://www.youtube.com/watch?v=ebCi2x48U6c
https://www.youtube.com/watch?v=V7snPl8L6Zg
https://www.youtube.com/watch?v=OYV11DtFPWI [com imagens do trajeto Bahia-Minas]

Ponta de Areia ( Milton Nascimento – Fernando Brant) 

Ponta de areia ponto final
Da Bahia-Minas estrada natural

Que ligava Minas ao porto ao mar
Caminho de ferro mandaram arrancar

Velho maquinista com seu boné
Lembra do povo alegre que vinha cortejar
 
Maria fumaça não canta mais
Para moças flores janelas e quintais

Na praça vazia um grito um ai
Casas esquecidas viúvas nos portais



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10. Uma Canção ( Lô Borges e Ronaldo Bastos)
O cancioneiro nacional é repleto de meta-canções extraordinárias, desde Feitio de Oração, de Noel Rosa e Vadico, até Festa Imodesta de Caetano Veloso, desde O Compositor Me Disse , de Gilberto Gil até Corrente, de Chico Buarque, para não falar na sensacional Letra de Música, de Kristoff Silva e Makely Ka, célebre no nosso eldorado subterrâneo. “Enquanto o ouvido duvida o olho trabalha, dilatando a pupila pra ver nublado brotar a lágrima” . Poucas são tão singelas quando Uma Canção, lamento em Mi Menor cantado com ecos joãogilbertianos por Lô Borges, enquanto dedilha seu violão de cordas de aço e assobia a melodia despreocupadamente.
O lirismo melancólico, inscrito no cromatismo melódico descendente inicial, em campo claro de Mi Menor, passando pelo sexto e quarto graus ( Dó e Lá Menor) , é dos mais distintos, ilustrado por inspiradas imagens pontuais que apontam para o caráter sintético do objeto canção. A leveza que sustenta o peso, o raio que penetra o desvão, o cheiro que carrega o tempo, e lâmina de tal precisão: imagens cristalinas na descrição do ato de compor, lapidar um objeto fugaz, abstrato e ao mesmo tempo depositário de tanto sentido.
A valsa flui enquanto o desenho harmônico acumula graus de suspense e resoluções diferidas, como em A7(9), e aquela dicção típica de Lô se encontra nas equilibradas alternâncias entre graus conjuntos e saltos ; no aspecto forma, temos apenas um A com algumas variações no fim de sua segunda seção, que tem uma extensão de 14 compassos, na seguinte disposição : 3+4+4+3 . Essa extensão muda, assim como a resolução harmônica, ao fim da terceira estrofe, e ainda numa outra variação para o fim da música, com aparições elegantes de empréstimos modais do modo frígio e a resolução no homônimo maior. Coisa de gênio. Das suas maiores baladas, Uma Canção adquiriu monumental reputação em rodas de violão de amantes da música mineira.

Uma Canção (Lô Borges e Ronaldo Bastos)



Uma canção é leve e pode sustentar
Toda emoção
Que pesa demais
E num passe de mágica faz voar
É gota d'água e faz transbordar
Vai na enchente arrastando
O que pode transformar
Em nuvem do céu
Da inundação
Uma canção é clara e pode penetrar
Negro desvão
Que um raio de sol
Com a súbita chama faz clarear
Um viajante que se fez perder
Por sua estrela se inicia
Nos mistérios de querer
A lâmina ser
De tal precisão
Qualquer pessoa pode assoviar
A voz humana se decifra
Quando canta por prazer
De juntos trilharmos uma canção
Uma canção é lenha e pode consumir
Uma paixão, um caso de amor
Que o som das palavras vai traduzir
É rima simples e retém calor
Se ilumina quando toca uma pessoa
Que se quer bem perto da brasa do coração
Uma canção tem cheiro e pode transportar
Uma fração de um tempo qualquer
Que a gente viveu num outro lugar
É diamante para lapidar
Na pedra bruta segue o veio da beleza
Quando faz soar cristalina revelação...

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5 de dezembro de 2012

As 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 2a. parte

Continuando a Lista das 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro [para conferir a lista completa, clique aqui]: 
A Página do Relâmpago Elétrico, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, é mais uma dessas canções meio inexplicáveis, por mais que se tente analisar cada parte, visto que o conjunto é algo transcendente. Esse rock 12/8 , em versos de 6 compassos, depois alternando para 8, tem uma letra incomumente longa e das mais icônicas, imagéticas, e, alguém diria, vagas, mas de qualquer maneira incisivas, das melhores letras de Ronaldo. "Que nem ronco do trovão que eu lhe dou para guardar " está entre os versos mais surreais e cortantes do cancioneiro brasileiro, algo talvez inspirado em Guimarães. A melodia em graus conjuntos e saltos precisos se encadeia numa forma capciosa, com longas (4) estrofes, algumas diferidas, enquanto a execução instrumental decola depois da segunda estrofe pra avoar que nem asa de avião até o fade-out final. Harmonicamente, passeia no território modal -tonal e modula de C# pra E maior, passando por vários acordes com nona, sétima maior, baixos invertidos , enfim, e isso tocado com notável ferocidade , numa onda destituída de blue notes , por isso não é um típico roque, e por cima de tudo o cortante falsete arrepiante e estridente de Beto Guedes e as cordas rasqueadas do seu violão e bandolim. Essa música teve várias versões cover, algumas das quais achei no youtube pra compartilhar aqui. Ficha técnica : Bandolim, violão e voz - Beto Guedes; Violões - Zé Eduardo; Baixo - Toninho Horta; Bateria - Robertinho; Percussão - Hely; Côro - Vermelho, Flávio e Beto.
*Vai aqui um complemento especial, um link para o excelente A página do diário íntimo elétrico de Beto Guedesótimo texto do blog Sobre a canção do Túlio Villaça
 
A Página do Relâmpago Elétrico

Abre a folha do livro
Que eu lhe dou para guardar
E desata o nó dos cinco sentidos
Para se soltar
Que nem o som clareia o céu nem é de manhã
E anda debaixo do chão
Mas avoa que nem asa de avião
Pra rolar e viver levando jeito
De seguir rolando
Que nem canção de amor no firmamento
Que alguém pegou no ar
E depois jogou no mar

Pra viver do outro lado da vida
E saber atravessar
Prosseguir viagem numa garrafa
Onde o mar levar
Que é a luz que vai tescer o motor da lenda
Cruzando o céu do sertão
E um cego canta até arrebentar
O sertão vai virar mar
O mar vai virar sertão
Não ter medo de nenhuma careta
Que pretende assustar
Encontrar o coração do planeta
E mandar parar
Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais
Que nem ronco do trovão
Que eu lhe dou para guardar

A paixão é que nem cobra de vidro
E também pode quebrar
Faz o jogo e abre a folha do livro
Apresenta o ás
Pra renascer em cada pedaço que ficou
E o grande amor vai juntar
E é coisa que ninguém separa mais
Que nem ronco de trovão
Que eu lhe dou para guardar

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Tema dos Deuses, de Milton Nascimento. A voz de Milton certa vez foi descrita por Elis Regina como a voz de Deus, talvez depois de ouvir essa música sem letra mas que tem a voz como atração principal, além da oblíqua, profunda, sinistra, desconcertante condução harmônica, como que revelando as vísceras, as entranhas das divindades, e o que elas tem de grandioso e amedrontador, de teleológico e incomensurável, de doloroso e intangível e indecifrável. Milton tem a alma plugada lá em cima mesmo. Dar sentido à seguinte cadência: E (#11) Gm E (#11) Cm Gm Cm G#m Dm Bm B7 Dm Em não é pra qualquer mortal. A versão com orquestra no Milagre dos Peixes ao vivo (1974) é talvez a mais visceral, e mais uma vez prova que quando um compositor do nível de Bituca carrega muito no discurso harmônico melódico, ele o repouse na forma mais simples possível: um único A, repetido e acrescido, nas duas últimas repetições, da melodia crucial que dá o ápice climático da música. Feita para o filme de Ruy Guerra, Os Deuses e os Mortos, a música se tornou célebre pela sua contundência, independente do filme.
Músicos : Wagner Tiso : Órgão e Piano , Toninho Horta : Guitarra , Luiz Alves : Baixo , Robertinho Silva : Bateria, Nivaldo Ornelas : Sax e orquestração de Wagner Tiso, para o Orquestra Sinfônica de São Paulo.



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Lista Do Clube, number nine: Beijo Partido, de Toninho Horta. Toninho fez letra e música dessa canção que talvez seja a sua mais standard, transformada em tema instrumental e incorporada ao repertório jazzístico no mundo inteiro, por méritos próprios, uma melodia arquetípica que , a partir de certos cromatismos e dolorosos saltos, amarra as improváveis e distintivas modulações que tanto caracterizam a obra do compositor belorizontino. De Mi menor para Fá Sutenido, e dali rapidamente para Ré Maior, voltando sublimemente para o tom original. Mais uma vez as peripécias melódico-harmônicas são ancoradas em formidável simplicidade formal, mas que se encadeia de tal forma que quando o tema volta, parece ser um desenvolvimento do seu próprio final, caráter cíclico que amarra ainda mais um A repetido seguido de um estribilho (dessa vez em Si Maior ! ): Onde estará a rainha que a lucidez escondeu, escondeu ... , e por fim uma coda altamente propícia para improvisações, dois acordes dissonantes em movimento pendular... Beijo Partido condensa todos esses elementos e foi uma música imediatamente gravada por Milton Nascimento, Nana Caymmi, e de lá pra cá deve ter amealhado dezenas de versões mundo afora, além das do próprio compositor. Não foi à toa ! :)

Beijo Partido
(Toninho Horta)

Sabe, eu já não faço fé nessa minha loucura
e digo
Eu não gosto de quem me arruina em pedaços,
e Deus
É quem sabe de ti,
e eu não mereço um beijo partido

Hoje não passa de um dia perdido no tempo,
e fico
Longe de tudo o que sei, não se fala mais nisso, eu sei
Eu serei pra você,
o que não me importa saber

Hoje não passo de um vaso quebrado no peito, e grito

Olha o beijo partido
Onde estará a rainha
Que a lucidez escondeu ... escondeu ...




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A décima escolhida é Viver,Viver, de Lô Borges, Murilo Antunes e Márcio Borges, balada magnífica em cordas de aço e baixos invertidos cromáticos e uma melodia mais uma vez escandalosamente bonita, alternando, como é típico do seu compositor, graus conjuntos e saltos em sextas que pontuam os rápidos procedimentos harmônicos. Lô foi quem mais conseguiu liquefazer a harmonia bossa-novista em contexto estilístico totalmente diferente, mais próximo melodicamente e em termos de arranjo, da influência dos Beatles. Mil ideais num dia , deserto e cais, dourar de sol a melodia ... a letra é mais uma daquelas odes à vida e à beleza, ao sabor dos ventos, fontes da mesma luz, dessa vez com dois letristas, o que demonstra a unidade estética de fato do movimento Clube Da Esquina, cuja dinâmica está muito bem representada no Murilo Antunes Dvd, onde essa pérola ganhou nova versão de Lô e Milton Nascimento. Atenção para a ficha técnica da versão original, presente no disco Nuvem Cigana, de 1981 : Viver, Viver (Lô Borges, Márcio Borges e Murilo Antunes). Bateria e Cuatro venezuelano – Beto Guedes; percussão – Aleuda; arp e violão – Lô Borges; voz – Milton Nascimento; baixo elétrico –Paulinho Carvalho; piano – Telo Borges; percussão – Robertinho Silva.


 

Viver, Viver

Mil dias mais

Mil sonhos mais
Mil anos luz num dia
As ruas são
Meu mundo são
Mil vidas mais

Viver, viver

Tudo que Deus dará
Afim de ver
Mentes e corações
Abertos pra dizer
Ao modo de seu tempo
Eu sei viver assim
Vou do começo ao fim

Viver, morrer

Fontes da mesma luz
O som, a voz, o meio dia

Teu sonho amor

Pessoas mil
Mil ideais num dia
O sonho tem
Mil coisas mais
Deserto e cais...

Viver, viver

Tudo que o mundo tem
Saber viver
Tudo que a gente é
Dourar de sol a melodia

Viver, viver

Tudo que Deus dará
Afim de ver
Mentes e corações
Abertos às manhãs
E a alça contra os ventos
Crescer e arriscar
Tudo que pode ser

Viver, morrer

Fontes da mesma luz
O som, a voz, a melodia...
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A décima-primeira é a primeira(!!!) composição de Milton Nascimento, ao lado de Márcio Borges, a estupenda e distinta Novena, só gravada pela primeira vez por Beto Guedes em 1978 , e pelo autor só em 1992 , no disco Angelus. Pertinente observar que boa parte das pérolas do Clube é em tom menor, o que proporciona, via de regra, um clima mais sombrio à harmonia, ainda mais se construída de forma polimodal, alternando os modos da escala com a inclusão de acordes surpreendentes, que parecem ir contra toda a tradição harmônica no campo popular ocidental. O baixo pedal e a estranha sequência de tríades sugerem uma descoberta puramente empírica ao violão, subindo e descendo acordes com a mesma fôrma manual, e desvelando soluções surpreendentes e imprevisíveis, e enfatizando o sentido de mais uma letra icônica, assimétrica, dura que transcende e ao mesmo tempo faz jus ao contexto político da década de 1960, a 'chama' insurgente da juventude em meio à escalada militar cada vez mais brutal. "É pelos malditos deserdados desse chão" ... A forma é bastante simples, consistindo num A repetido em dois versos, e um B onde se chega a si menor, o relativo do tom paralelo maior da tônica, ré meno, voltando para um A diferido com um movimento harmônico igualmente ascendente mas rigorosamente diferente entre seus acordes. Os cromatismos harmônicos espantaram e fascinaram os jazzistas americanos de tal forma que Milton fez seu segundo disco de carreira, logo em 1968, nos EUA, ao lado de nomes como Herbie Hancock, e outros três durante a década de 1970 - Journey to Dawn, Native Dancer, ao lado de Wayne Shorter, e Milton (1976) (pra mim o melhor deles), e na gravação do Angelus teve Pat Metheny, Herbie Hancock , Ron Carter e Jack De Johnette como seus luxuosos acompanhantes ... ainda assim, eu me atrevo a preferir a versão 'original', com Beto Guedes cantando com seu falsete de metal, Milton no violão, Luiz Alves no baixo, Robertinho Silva na beteria e orquestração e piano do formidável Wagner Tiso.


Novena


Se digo um ai

É por ninguém
É pela certeza de saber que tudo tem

Tem sua vez de lá retornar

ao lugar mais fundo, fundo, fundo , mais que o mar

Se digo sol

Não tem talvez
Não espero mais a chuva
Só preparo meu começo
A explosão de toda luz
A chama, chama, chama, chama

Se digo amor

Só é por alguém
É pelos malditos deserdados desse chão

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Terminando por hoje, agora temos a enigmática Pai Grande, música e letra de Milton Nascimento, uma loa aos ancestrais africanos de Milton. Das poucas vezes que estive perto dele, e a única em que foi possível conversar um pouco mais com ele, perguntei-lhe a respeito dessa música e ele, uma esfinge, me contou da descoberta que teria feito a respeito da exata tribo africana de que ele era descendente, cujo nome não vou me lembrar, e descreveu detalhes de seus rituais e cantos, sobre como eles cantavam e saltavam muito alto do chão ... de forma que o Pai Grande é um signo de toda uma ancestralidade atávica que Milton, e só ele, carrega dentro da música mineira. O fato de ter sido ele o autor da letra, coisa rara, atesta o alto grau de envolvimento pessoal dele com essa canção, a ponto de tê-la gravado em dois discos subsequentes, o de 1969, conhecido como o "da igrejinha", e o Milton 1970, fantástico álbum com a presença do Som Imaginário, Naná Vasconcelos, e a estréia de Lô. Essa versão pra mim é a definitiva, transbordante com a percussão espiritual de Naná, e a tocada emocionada da banda, pra não falar na perfomance vocal de Milton , muito solta, e nas polirritmias intuitivas que ele fazia no violão e na voz. Pra leigos, vale explicar que essa polirritmia consiste na sobreposição de dois tempos diferentes sobre o mesmo pulso, no caso, um violão ternário contra uma melodia vocal quaternária. Esse procedimento resulta numa efeito de fluidez e deslizamento rítmico que é absolutamente fascinante. Por fim, observemos que a forma dessa canção é mais heterodoxa, partindo de um A que se repete uma vez, cai numa ponte transitória, e desemboca num B bastante longo e intenso, que se repete indefinidamente (nunca voltamos ao A...). Com tudo isso, a harmonia é bastante simples, acordes maiores dentro do campo harmônico de Sol maior com um ou outro empréstimo modal daqueles de que os Beatles gostavam tanto, como Fá maior e Ré Menor ( mixolídio) e Lá com sétima (lídio) . Imperdível!

Pai Grande

Meu pai grande
Inda me lembro
E que saudade de você
Dizendo: eu já criei seu pai
Hoje vou criar você
Inda tenho muita vida pra viver

Meu pai grande
Quisera eu ter raça pra contar
A história dos guerreiros
Trazidos lá do longe
Trazidos lá do longe
Sem sua paz

De minha saudade vem você contar
De onde eu vim
É bom lembrar
Todo homem de verdade
Era forte e sem maldade
Podia amar
Podia ver

Todo filho seu
Seguindo os passos
E um cantinho pra morrer
Pra onde eu vim
Não vou chorar
Já não quero ir mais embora

Minha gente é essa agora
Se estou aqui
Eu trouxe de lá
Um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar

4 de dezembro de 2012

As 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro: LISTA 1 Parte 1

Há muito tempo eu e o meu parceiro Pablo Castro vínhamos conversando sobre a possibilidade de fazer, para a música popular brasileira, algo nos moldes do projeto "Notes on...series" do musicólogo norte-americano Alan W. Pollack. Num impulso daqueles que vira e mexe ataca os criadores inquietos, ele pôs a mão na massa crítica e começou o projeto justamente pela obra do Clube da Esquina, que para nós é uma referência fundamental. Se um dia comecei a entender com mais precisão o que seria propriamente o Clube da Esquina, o Pablo é o grande responsável, como está contado na introdução da minha tese. Assim me dá grande satisfação mais esse desdobramento da nossa parceria, há tanto imaginado, agora aparecer aqui. Com vocês, sem mais, as 30 mais geniais do Clube da Esquina [página inicial, aqui], por Pablo Castro:


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Qualquer lista das x mais costuma ser inútil quando não é a sua própria! Decidi fazer algumas listas, no sentido até de aplicar a quem não conhece obras que eu considero muito importantes. De forma que começo com a lista das 30 mais geniais do Clube da Esquina! Pode-se considerar 30 um número um pouco grande, mas ainda é muito complicado condensar as pérolas mais raras de um grupo tão forte de compositores.



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Começo então por RIO DOCE, de Beto Guedes, Tavinho Moura e Ronaldo Bastos. Gravada primeiramente como instrumental, e só com a parte A, no disco Sol de Primavera, ela foi desenvolvida com uma sensacional parte B, de Tavinho, contrastante sinuosa e de modulações inesperadas, mas com o mesmo desembocar solar que é tão característica das composições de Beto. Participação vocal da Joyce!




RIO DOCE

Vai a me levar como se fosse
Indo pro mar num riacho doce
Onde ser é ternamente passar

São vidas pequenas das calçadas
Onde existir parece que é nada
Mas viver é mansamente brotar

Muito prazer de conhecer
Muito prazer de nessa rua ser seu par
Ao partilhar do teu calor
Você liberta a primeira centelha
Que faz a vida iluminar

A correnteza me levou
Me apaixonei em todo cais que fui parar
Cada remanso um grande amor
Por esses breves eternos momentos
Que tive o dom de navegar

São vidas dos belos horizontes
Gente das mais preciosas fontes
Onde ser é ternamente brotar
Vai cantando as voltas do moinho
Onde a beleza teceu seu ninho
Mas viver é mansamente passar


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Vamos prosseguir com VIA LÁCTEA, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, música do álbum homônimo de 1979. Bela canção em 6/8, levada bastante frequente em músicas de Lô e Beto, sobretudo ( Rio Doce, já citada aqui, é bem próxima disso, mas talvez seja mais exato caracterizá-la como 12/8). A melodia de Lô faz uma ponte entre as tendências McCartneyanas e Jobinianas de uma forma magistral, fazendo a harmonia parecer mais simples do que é na verdade. 

Naturalidade e sofisticação são duas coisas que pouquíssimos compositores podem atingir, e é o caso de Lô nessa canção. A letra, mais uma vez de Ronaldo Bastos, é uma variante da temática 'viagem' , desta feita com metáforas cósmicas, e ícones como carrossel, pão e mel, picadeiros, primaveras ... bastante concretista essa letra, a la Caetano, mas com a marca indelével do ethos do Clube: o sonho.



VIA LÁCTEA

Vendaval, carrossel
Segue a vida a rolar
Pé na estrada, pó de estrelas
Coração vulgar
Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia vagar

Caravela, pão e mel
Segue o circo a rolar
Picadeiros, primaveras
Coração vulgar

Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia viver
Na espuma do mar

E o grão de tão pequeno
Ser tão grande
O que a gente é
Ter esse destino
De pessoa que sonhou...

Que navega no céu
Que navega no ar
Grão de areia bailar
Lá no fundo do azul

E anda que nem bola
Como a vida
Quando quer brotar
Rola como anda
Que nem fonte de calor...

Barricadas, cordilheiras
Coração vulgar

Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia vagar
Na espuma do mar

Aventuras, cicatrizes
Segue o mundo a rolar
Diamantes do universo
Coração vulgar

Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia vagar
Na espuma do mar

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Terceira selecionada: FALSO INGLÊS, de Toninho Horta e Fernando Brant. Sensacional aqui como o Toninho, numa forma bem simples , praticamente só com um A e um B, e poucos acordes, consegue algo tão original e de efeito tão marcante. Fascinante como uma subdominante com baixo na terça pode ter um efeito sutil e grandioso. 

E Fernando Brant, numa de suas melhores letras, exerce aqui um humor que ele não atrevia a destilar em suas parcerias com Milton e, de quebra, dá um tapa de luva em quem ainda defendia (e defende) que o inglês é uma língua mais musical, ainda que não se saiba bulhufas do que trata a letra. 

Sem o menor pudor, ele faz algo que nenhum Chico, Caetano ou Gil fez: todo um refrão cantado numa língua inventada! E a história, tão típica de um país submetido ao domínio imperial da indústria cultural anglo-saxônica, devolve uma flor com cheiro de irreverência aos ditames do inglês de Copa do Mundo que querem fazer nossos taxistas "aprender" pra não fazer feio num evento que não dura mais do que um mês - Salve o Falso Inglês !!!

FALSO INGLÊS

Eu ouvi Paul Anka
Um Dia
Eu ouvi Ray Charles
Bill Halley

No rádio eu sempre ouvi
mas não entendia nada de inglês
mas eu guardava o som
toda melodia sem poder cantar

Eu tinha que inventar um jeito de cantar inglês
Gene Kelly
canta e dança sem eu entender
Eu via Fred Aster
legenda não serve pra poder cantar

Eu tive que inventar um jeito de cantar inglês
Beatles, Dylan
ouvi uma vez e eu cantei

Eu lembro que inventei 
todos se encantaram com meu falso inglês

Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai
Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai

Um uoraniusi onaruei olefitiudei
Wonder Woman
Lairanidamudiseiomai

Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai
Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai

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Pérola número quatro - GRAN CIRCO, de Milton Nascimento e Márcio Borges
Interessante como, 8 anos antes da obra-prima "O Grande Circo Místico", de Edu Lobo e Chico Buarque, em 1975 Márcio Borges já associava ao tema circense um ar sombrio, como que virando a gargalhada do avesso e antevendo , nos bastidores, a loucura da bailarina e a fome do palhaço, a costela quebrada. 

Tema esse que ele voltou a explorar em Pão e Água, de 1978. Lançada no disco Minas, talvez o mais forte trabalho fonográfico de Bituca, a faixa apresentava o compositor ao piano, com Fafá de Belém em início de carreira fazendo um vocalise, e um arranjo stravinskiano politonal de Wagner Tiso, uma pancada! 

Os acordes suspensos de Milton são absolutamente geniais, e sintéticos, sem exageros, a forma praticamente só com um A e uma introdução que se repete. Destaque para o intermezzo magnífico, algo difícil de definir, sucinto, e uma melodia no piano no finalzinho da música, quase inaudível, é preciso subir bem o volume pra escutar, linda linda, e nada a ver com o resto! Talvez seja a caixinha de música da bailarina louca!



GRAN CIRCO

Vem chegando a lona suja

O grande circo humano
Com a fome do palhaço e a bailarina louca
Vamos festejar
A costela que vai se quebrar
No trapézio é bobagem
A miséria pouca

Bem no meio desse picadeiro

Vão acontecer
Morte, glória
E surpresas no final da história
Pão e circo prata e lua
Um sorriso vai se desenhar
No amargo dessa festa
Junto dessa escória

Sobe e desce a montanha

O grande circo humano
No seu lombo, no seu ombro magro
Carregando
Prata e luar
O mistério que vai se mostrar
No arame
Equilíbrio sobre o sol raiando

Sonha espera o grande circo humano

Coração partido circo humano


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Quinta indicada - CANOA, CANOA de Nelson Ângelo e Fernando Brant. Canção ímpar, violenta em seu intervalo de trítono na melodia febril de Nelson Ângelo, que se tornou, como Fazenda, do mesmo autor, um clássico sem nunca ter sido muito tocada nas rádios ou nos shows do intérprete Milton Nascimento. 

Com uma tonalidade ambígua, a harmonia passeia entre um sol maior e um si menor, sem nunca se definir claramente, a não ser no B, espécie de refrão, que é claramente em mi menor. 

A tradução do tema indígena para a canção popular foi uma veia usada por Fernando Brant em pelo menos mais uma música : Promessas do Sol, mas Canoa Canoa talvez seja uma experiência ainda mais bem sucedida, com um refrão contendo nada mais do que nomes de peixes amazônicos e ainda assim sendo altamente contagiante e poderoso. 

Arranjo primoroso do compositor, que toca o violão, com Wagner Tiso ao Piano, Nenê na Bateria, e Novelli no baixo acústico, além de Danilo Caymmi na Flauta


CANOA, CANOA

Canoa canoa desce

No meio do rio Araguaia desce
No meio da noite alta da floresta
Levando a solidão e a coragem
Dos homens que são
Ava avacanoê
Ava avacanoê
Avacanoeiro prefere as águas
Avacanoeiro prefere o rio
Avacanoeiro prefere os peixes
Avacanoeiro prefere remar
Ava prefere pescar
Ava prefere pescar
 
dourado, arraia, grumatá
piracará, pira-andirá
jatuarana, taiabucu
piracanjuba, peixe-mulher
jatuarana...


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 A sexta, e última por hoje ( pretendo postar 6 por dia até o fim da semana pra completar as 30) - TESOURO DA JUVENTUDE, de Tavinhomoura Moura e Murilo Antunes. Um dos temas mais visitados e originais do cancioneiro do Clube da Esquina é o da infância, não só como lembrança ou saudosismo, mas no sentido ver o mundo com os olhos da criança, e outro tema fundamental no universo esquiniano é o passado , a história, o que foi e não é mais. 

Essa canção une os dois temas de maneira bastante equilibrada, e ainda o da viagem, que é o assunto preferido de toda a obra do Clube da Esquina. Fala do veterano da guerra, das frutas roubadas, da bicicleta, da pedra no poste, uma infância que as novas gerações só podem imaginar ... mas que são muito naturais e verdadeiras pra boa parte daqueles nascidos no século XX em cidades menores que megalópolis, como um dia foi Belo Horizonte, e ainda é Pedra Azul. 

Beto Guedes aprendeu logo a gravar pelo menos uma música de Tavinho Moura por disco, e ele não estava errado, dada a criatividade incrível de Tavinho para fazer as músicas mais arrojadas com materiais harmônicos ( acordes) tão simples. Absolutamente genial a assinatura melódico-harmônico-rítmica de Tavinho Moura, no espectro oposto do Toninho. 
Sem nenhum traço de influência jazzística, Tavinho ergueu sua absurda obra praticamente só com acordes maiores, menores, com sétima e diminutos, às vezes com quintas aumentadas, mas com cadências inesperadas e saltos surpreendentes que , nessa canção, ilustram perfeitamente as peripécias de um menino andando de bicicleta no interior de Minas na década de 50. Há uma linda versão dessa no novo dvd de Murilo Antunes Dvd


TESOURO DA JUVENTUDE

A pedalar

Camisa aberta no peito
Passeio macio
Levo na bicicleta
O meu tesouro da juventude
Passo roubando fruta de feira
Passo a puxar meu estilingue
Vai pedra certeira no poste
Passa um veterano
E já cansado
Herói de guerra
Grito: Lá vem a bomba!
E meu tesouro me leva
Pelas ruas de Santa Teresa
a rodar, a rodar
A pedalar
Encontro amigo do peito
Sentado na esquina
Pula, pega garupa
Segura o bonde ladeira acima
Ganha o meu tesouro da juventude
Ainda que a cidade anoiteça
Ou desapareça
Piso no pedal do sonho
E a vida ganha mais alegria
Ganha o meu tesouro da juventude
Que foi em Pedra Azul
E em toda parte
Onde tive o que sou

18 de novembro de 2011

Aula de Música: Viva Zapátria

Tem canções que na primeira audição deixam a marca, que nos emudecem e transformam tudo o que não é seu próprio som em silêncio. Foi assim que ouvi, há tantos anos, numa fita cassete Viva Zapátria (Sirlan/Murilo Antunes) e hoje, ao ver uma postagem do Pablo Castro sobre ela, lembrei de como me senti. Isso é o processo da memória, em que sentidos definidos no íntimo de uma experiência pessoal se entrelaçam definitivamente aos significados compartilhados, pois de modo inequívoco Viva Zapátria é um monumento erguido em letra e música que preserva a lembrança da coragem no enfrentamento da censura e do autoritarismo nos "Anos de Chumbo".
O texto do Pablo: O Brasil tem Tom Jobim, Chico Buarque , Caetano, mas tem também caras capazes de fazer uma música como essa, umbilicalmente ligada à nossa história recente e absurdamente bonita, perene, canção trágica e épica , que selou o destino de seus autores : Sirlan De Jesus e Murilo Antunes ! Se você nunca ouviu, vai se surpreender ...


Pequeno trecho do depoimento do Murilo Antunes ao Museu da Pessoa (confira completo aqui)


"O pau estava quebrando em 68, quando eu fiz minha primeira música, chamada “Super-herói”. E a outra, “Viva Zapátria”, que eu fiz com o Sirlan."



[Em janeiro de 2014, acréscimo do editor]
Quis o destino que algum tempo depois dessa postagem que o meu parceiro Pablo viesse a gravá-la com Sirlan numa circunstância especialíssima, aqui relatada por ele:
Sirlan e Murilo Antunes fizeram uma canção que assombrou Astor Piazolla e o convenceu a participar do Festival da Internacional da Canção , 1972. A ditadura impediu que a música vencesse o Festival, e impôs ao Sirlan uma das maiores mordaças entre os compositores brasileiros, só comparável ao Taiguara.

Felizmente, a canção era forte o suficiente pra atravessar 40 anos incólume e atualíssima. E, mais felizmente ainda, eu, que ajudei a difundi-la em gerações posteriores, tive a honra e a felicidade de cantá-la junto com um de seus autores, Sirlan, no filme "Come se a vida Fosse Música" sobre a obra do letrista e poeta Murilo Antunes.

A letra

Esse meu sangue fervendo de amor

Aterrisam falcões, onde estou?
Carabinas, sorriso, onde estou?
Um compromisso a sirene chamou
Duplicatas, meu senso de humor
Se perdeu na cidade onde estou.

Viva Zapátria, saudou esse meu senhor
Beijos, abraços, ano um chegou
Salve Zapátria, ê, viva Zapátria, ê
Esta cidade foi uma herança só.

Viva Zapátria, saudando o senhor
Horizonte aberto onde estou
Esta América mãe onde estou."

A canção 



O vídeo extraído do DVD"Como se a vida fosse música"