Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
É assim, percutindo com maestria uma caixinha de fósforos, que me lembro com mais nitidez da figura de Elton Medeiros. Ele se apresentava no Programa Ensaio, essa verdadeira enciclopédia audiovisual da nossa música popular. Meus olhos e ouvidos ficaram hipnotizados, incapazes de buscar qualquer outro interesse que não aquele som que poucos, mesmo entre os bambas, conseguem tirar. Descobri nessa mesma noite que Elton era parceiro de Cartola no samba "O sol nascerá" (como ele mesmo explicou, também conhecido como "A sorrir..."), uma dessas pérolas que a gente escuta e não esquece jamais. Talvez por não ser tão consagrado como intérprete, Elton Medeiros não seja tão conhecido e reverenciado quanto parceiros seus como Cartola e Paulinho da Viola.
Por duas ocasiões tive oportunidade de constatar e me postar contra uma certa falta de consideração a seus créditos, justamente por "O sol nascerá". A primeira foi quando assisti a uma apresentação da então presidente do MIS-RJ na Conferência Geral do ICOM, em 2013 na própria capital carioca, em que recebi dela um material institucional relacionado à promoção da nova sede de Copacabana, cuja construção infelizmente ainda não foi concluída. Percebi que a canção era citada com crédito apenas a Cartola, me identifiquei e discretamente lhe chamei a atenção para o erro. Ela me agradeceu protocolarmente mas tenho pra mim que não deve ter gostado muito de ter que responder - como lhe cabia, pelo cargo - pela falha. É muito importante revisar esse tipo de peça gráfica que se reproduz depois aos milhares, pois basicamente é impossível retificar erros. A segunda, foi quando apontei o mesmo erro ao proprietário de uma página de rede social, então bastante visitada, sobre cultura, semiótica, literatura e afins. Ao invés de agradecer e me creditar o auxílio na correção - feito no comentário da postagem- ele simplesmente fez a mudança e deixou a entender que não havia cometido o erro. Isso tem muitos anos, ainda estávamos longe da generalizada disseminação de falsificações de toda ordem que tomou conta da internet, mas me pareceu um ato deplorável, ao qual fiz questão de responder, convidando inclusive alguns amigos que também acompanhavam a mesma postagem a testemunhar a validade da minha intervenção e participar de uma rápida troca de "amabilidades" pelas quais deixei claro que havia o erro e fora a minha intervenção que propiciara a correção. Depois disso, deixamos eu e outros que acompanharam o caso de manter contato com a tal página, cujo nome já nem me lembro.
Quero lembrar mesmo é de Elton Medeiros, de seus sambas inesquecíveis, e daquele som hipnótico da caixinha de fósforos.
P.S. Este texto não se pretende um obituário, para isso pode-se ler aqui.
Estou querendo tanto falar dessa canção que vou até compartilhar link do Spotify - esse bandidinho que não credita os autores, e do qual os letristas são vítimas preferenciais. Deixo claro que isento qualquer parceiro meu de responsabilidade aí, isso é um defeito da plataforma, e que vem sendo criticado por todos. Entendo, obviamente, a necessidade de quem vive de música de colocar, mesmo a contragosto, seu trabalho para circular em todos os meios possíveis.
Bom, mas vamos ao mais importante. Essa eu recebi na mesma ocasião da música que veio a se tornar Veneno remédio, só que com uma curiosa e lacônica indicação. O título estava embutido no nome do arquivo MP3 que o Maurício Ribeiro, autor da música, me mandou. Um título assim, "às cegas" e "à seco", pode ser a fagulha para a criação, mas pode também bloquear tudo. A melodia tinha lirismo mas também era meio soturna. Como na anterior eu considerei que acertei a mão sem maiores indicações, resolvi ir em frente. Lancei mão de um recurso que tenho usado com alguma frequência, buscar algum texto previamente elaborado que não virou nada, do qual eu possa extrair alguma coisa. Encontrei então esse refugo intitulado "Soslaio", de onde pincei versos como "ferpa no assoalho", "ruga de uma velha", "pulga atrás da orelha", ou palavras como "caramujo" e o "soslaio" do título.
O verso da velha acabou se tornando o ponto nevrálgico da escrita. "Às cegas" acabou sendo bastante literal, dentro da narrativa que fui construindo sobre o estado decadente da minha personagem. A música me remetia ainda às tristes baladas macartneyanas sobre separação e solidão do disco Revolver, For no one e Eleanor Rigby, e obviamente tracei um retrato da velhice como condição solitária e frágil. Uma grande influência de Paul em meu trabalho é a condição compartilhada de romancista frustrado - e é realmente puxado o exercício de sintetizar ideias que poderiam se desenvolver por longas páginas nos poucos versos e duração de uma canção. Emergiu um retrato muito áspero, cru mesmo, algo naturalista, elencando os sinais e gestos de decrepitude da protagonista. Ocorreu num certo momento, obviamente na cadeia das reiteradas rimas em "iz/is", que ela poderia ter sido atriz, ou na sua senilidade se comportasse como tal. Um eco distante, quem sabe, da Miss Havisham de Grandes Esperanças, meu romance preferido de Dickens, certa feita interpretada de modo marcante por Anne Bancroft (a icônica Mrs Robinson de A primeira noite de um homem). Talvez possamos ver a velha também como professora, por sugestão de "breu" e "giz". Este é o tipo de letra que, depois de encontrado o mote, se escreve praticamente por embalo. Aqui e ali algumas jogadas, como a sequência de rimas internas nos 2ºs versos. A forma da música AABAAB'A' propõe estrofes - A - bem definidas entremeadas por pontes - B,B' - que só tem em comum o verso introdutório - repetição que busquei enfatizar com a parelha "se insinua então/se está nua então". Na estrofe final uma variação sugerida pelo Maurício que adotamos - bisa "desdobrando" o primeiro verso, e uma repetição até o gran finale em que a letra sugere para o arranjo a diminuição de andamento e o "desmanchar" no destino final da personagem e da gravação. Não tínhamos ideia, naqueles idos, que viveríamos pra ver uma "deforma" da Previdência que agravaria as expectativas de um final de vida decente para boa parte das pessoas no Brasil. Não que haja algo de premonitório, mas de algum modo a canção agora inevitavelmente será ouvida e interpretada neste contexto. Claro, preferencialmente é um exame duro sobre a velhice, mas quem sabe não seja fatalista, por um triz.
Às cegas (Maurício Ribeiro e Luiz Henrique Garcia)
Em fevereiro de 2018 tive a satisfação de assistir na Casa Idea ao show de lançamento de um de seus discos e conhecer o cantor, compositor, violonista e arranjador Benji Kaplan, vindo de Nova Iorque para o Brasil e BH - à época ele concedeu entrevista à rádio UFMG Educativa, que pode ser ouvida aqui. A "ponte aérea" tem o dedo denosso agora parceiro partilhado, Makely Ka, que topou por lá com o nosso caro "novaiorquine" e já havia composto com ele pérolas como "Baião para Gershwin" e "Fuga de Alcatraz". Naquele dia, foi ainda o mesmo Makely que nos apresentou formalmente e ensejou, de certo modo, o que viria a ser essa primeira parceria minha e do Benji. Preciso dizer ainda que nesta mesma noite ele contou com a participação de sua parceira de vida e música Rita Figueiredo, e que os dois formam um duo estupendo, como se pode conferir ouvindo o disco de ambos aqui. Digo isso também para explicar que Benji Kaplan, não bastasse ser admirador, estudioso e influenciado pela música popular brasileira, digo sem medo de errar, tornou-se seu partícipe, esposando o conhecimento de seus estilos e ritmos com melodias intrincadas, harmonias sofisticadas e desafio de forma que exige letras que se equiparem a tal lapidação musical.
A ideia de fazer uma letra para uma música dessas era encrenca - da boa! Às vezes a proposição acontece numa conversa e fica assim num limbo por um tempo, em "banho maria", como dizemos aqui. Mas não foi o caso! Benji logo me manda uma... a belíssima "Folhas ao vento" (Leaves in the wind) que figurava em versão instrumental justamente no disco que viera lançar, Chorando sete cores. Como sempre, quando se inicia uma parceria nova, fico cheio de dedos e quero me entender, sobretudo quanto aos métodos e prazos, porque é importante um entendimento cristalino sobre essas coisas. Para mim é a base sem a qual não pode surgir o entrosamento necessário. Depois é tentar decifrar uma intenção, ouvindo a música e falando sobre ela com o parceiro. O Benji me deixou à vontade, mas eu estava era preocupado com a incumbência. Tanto que me esmerei uns meses até que, no final de maio, tinha uma primeira versão completa. Comecei pelo título anterior, e obviamente a música remetia ao movimento das folhas bailando ao vento. Como na área área externa do apartamento em que moro, vizinha de uma casa com um pomar enorme, caem muitas folhas, esse mote inicial me deu os primeiros versos, coincidindo com a chegada do outono por aqui. Isso poderia levar a qualquer lugar. Mas eu já estava aflito com o cenário político brasileiro. Por outro lado, o lirismo extremo da música sugeria um tema romântico. Pensei no outono como estação de transição, e fui esboçando uma história de separação de espera da pessoa amada, mas também me esquentando a pestana a tensão política. Pintou a ideia de fazer uma letra como aquelas do tempo da censura - tendo especialmente as de Aldir Blanc e Chico Buarque como referências. É quase como se cada estrofe respondesse a um estado de espírito diferente,o outono e as folhas preludiando o inverno, e a espera incerta do ente amado, a princípio levada com certa ironia e autocontrole, vai se tornando mais angustiante, frustrante, justamente quando a canção muda o percurso melódico e o lamento da perda se converte em apelo ao retorno. Incrível a forma como o material da experiência pessoal se imiscui nas letras mesmo subconscientemente. Realmente eu estava dormindo muito mal. Nos meus rascunhos guardei versos como "Eu tenho pouco sono/Não durmo nem no escuro/ Me cubro de lembranças" que se aplicaria ao tema musical inicial, mas acabou convertido oportunamente na parte em que o "eu lírico", insone, procura inutilmente sua amada na cama. Essa súplica se coloca a partir da sensação de aprisionamento e o anseio por libertação. O retorno ao veio melódico central, ainda que com variação, me sugeriu o alento, a primavera que sucederia o inverno, o céu aberto. Nisso tudo há o retorno assumido, deslavado, de metáforas recorrentes dos anos de chumbo. Também entrego claramente meu ofício de historiador, em referências que não são difíceis de sacar, e que ao final amarram o sentido subentendido de quem vem a ser a musa à qual a letra se endereça. E quando a melodia caminha para o encerramento, se a volta do mote inicial sugere um retorno ao primeiro estado emocional, não é bem isso, já que a mudança enseja uma conclusão e a grande lição da História é justamente essa: tudo muda.
*Imagem: Atena e as Musas - Hendrick van Balen the Elder (1573–1632)
À musa - música de Benji Kaplan; letra de Luiz Henrique Garcia
Foi-se João.
Um revolucionário sutil.
A simplicidade complexa em pessoa.
O violão que decifrou a batida transcendental do coração do Brasil.
E agora, João?
Só nos cabe cuidar para que sua lembrança continue tocando essa batida. Ensinando pra nós e pro mundo o que é que o Brasil tem.
Foram as primeiras palavras que escrevi quando a notícia me chegou. Pretenderam ser justas e sintéticas, como a própria música de João Gilberto é. Mas sinto que é preciso deixar um pouco mais de caldo. Até porque, quem sabe, alguém ainda possa descobrir João, seu canto, seu violão, sua síntese mais que perfeita do Brasil. Resolvi então reunir aqui contribuições de dois parceiros que já colaboraram outras vezes aqui no blog e que expressão boa parte do mais que eu poderia dizer, Rafael Senra e Pablo Castro. O primeiro contrastando conjunturas entre o efervescer da bossa nova e a atualidade, o segundo num verdadeiro mergulho diacrônico mostrando que João Gilberto é ponto nodal na história de nossa música popular. Fica ainda aberta a porta, para agregar nos comentários o que mais os leitores acharem por bem incluir.
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Achei bonito ler o depoimento da Gal Costa em que ela diz que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. A música popular de hoje não traz nada do DNA do pai da bossa nova: é urgente, agressiva, com um registro de canto quase histérico, repleto de vibratos caricatos que trazem o pior de tradições musicais estrangeiras, completamente alheias à nosso ecossistema musical.
Vez ou outra, músicas que ele imortalizou aparecem repaginadas em aberturas de novelas, ou cantadas por subcantores em programas de auditório. Na nossa cultura mainstream, é assim que o legado de João sobrevive.
O Brasil de agora é diametralmente distante do idealismo bossanovista. Nos tornamos o oposto de tudo que foi sonhado naqueles tempos. O Rio de Janeiro do barquinho e do violão tornou-se o Rio da propina e das milícias. A modernidade de JK (época em que João foi trilha sonora obrigatória) deu lugar a um retorno da precariedade medieval travestida de progresso. Temos uma população que perdeu a CLT e está prestes a perder o direito a se aposentar. Continuo achando que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. Mas os que não a aprenderam são os que tomaram o poder. A delicadeza não quer o poder: as flores que perfumam o jardim nunca tentariam toma-lo para si. Os que amam a beleza e a verdade estão de luto.
Por Rafael Senra
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Ninguém é obrigado a gostar desse ou daquele artista, mas o bom da arte é que nem tudo se resume a gosto pessoal. Cada campo artístico tem uma história, um desenrolar dos acontecimentos, um diálogo diacrônico e mutuamente estimulante entre artistas, crítica e público. E há fatos históricos inexoráveis, que apresentam revelações, invenções de tal modo inesperadas que provocam abalos sísmicos nas sensibilidades gerais. Por que João Gilberto é o maior divisor de águas da música popular brasileira ? Nada do que se elenca aqui é questão de gosto : 1- até 1958, inexistia um canto popular que não fosse adornado, impostado, cheio de voltinhas ,vibratos, glissandos. Simplesmente ninguém nunca tinha ouvido um canto despojado disso tudo. Nem aqui nem alhures. Quem introduziu esse tipo de canto nos Estados Unidos foi Chet Baker e quem introduziu isso no Brasil foi João Gilberto. É muito difícil para nós outros imaginar o impacto da ouvir pela primeira vez um tipo de canto que se tornaria hegemônico, um canto mais despido de volteios e gracejos . Mesmo no caso de cantores mais potentes, com grande projeção de voz ,a influência de João Gilberto foi decisiva, pela forma direta com que o canto passou a ser emitido . Não existiria Gil, Elis e mesmo Milton sem antes ter surgido João . 2- até 1958 , não havia um violão que incorporasse uma estilização sintética das células rítmicas brasileiras, notadamente o samba, mas também o baião, a valsa, a marchinha. Nossos ritmos só existiam enquanto conjunto de peças percussivas exuberantes e explosivos como uma escola de samba. João inventou uma maneira de incorporar as funções básicas desses ritmos, simplificadas , e estilizadas num mínimo denominador comum, e que poderia ser transformado num grão de som. Além disso, João criou uma palheta de inversões de acordes no violão que mantinham um equilíbrio entre as notas e as funções harmônicas, dispondo do baixo, das terças e das dissonâncias (sétima, nonas e décima-terceiras), abrindo mão muitas vezes da quinta e mesmo da tônica, por serem redundantes. 3- até 1958, não havia um intérprete capaz de dar credibilidade a melodias e letras mais leves, que apenas começavam a ser compostas naquela época, por compositores como Tom Jobim, Carlos Lyra, Newton Mendonça ,Vinícius de Morais, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, entre outros. Até então, o samba-canção, que dominava a música nacional, era praticamente sinônimo de derramamento sentimental, dor de cotuvelo, fossas profundas ou piegas declarações de amor eterno , dramático. 4- Depois da grande era inicial do samba, na década de 30, não havia cantor algum que usasse a divisão melódica como meio de improvisação rítmica, e muito menos que utilizasse esse jogo de divisões melódicas como filigranas da aproximação do canto à fala, fazendo das consoantes instrumentos percussivos que inevitavelmente apresentavam as palavras como objetos palpáveis, quase tateáveis pelo ouvido. As letras portanto passavam a se incorporar mais organicamente à experiência de fruição do ouvinte , o que , também vale ressaltar, até essa época era uma impossibilidade técnica que só se viabilizou pela invenção da gravação em canais separados e pelo advento de determinados microfones que permitiam o canto próximo sem que ele tampasse todos os instrumentos do acompanhamento .Tudo isso era inédito. Para além dessas evidentes inovações revolucionárias, João sintetizava não só um estilo, mas um repertório que atravessava e articulava tudo aquilo que era considerado antigo com o que era evidentemente novo. O principal intérprete do moderníssimo e consagradíssimo Tom Jobim era também aquele capaz de descobrir um compositor como Jaime Silva, autor de O Pato. "Jaime Silva (1921-1973) era um mulato alto, elegante e simpático”, segundo Ruy Castro no livro “Chega de saudade”. Alagoano de nascimento, mas morando no Rio desde menino, era sapateiro do serviço de intendência do exército, além de pandeirista e eventual compositor, nas horas vagas. Costumava namorar sua futura esposa, Maria, no ‘Campo de Santana’, Zona Centro do Rio de Janeiro, onde observando patos e marrecos se esbaldarem no laguinho local prometia, contemplativo: “ainda vou fazer uma música com esses patinhos…”." Por fim, para aqueles que ainda não entenderam João, porque vieram bem depois que suas descobertas já haviam sido incorporadas de maneira difusa por toda uma brilhante geração posterior de compositores e intérpretes : à primeira audição. aquilo que podemos chamar de "cor" na música, os aspectos mais imediatos da sonoridade de timbre, de região de emissão da voz, de volume e gesto , tudo pode até parecer enfadonho, porque nesses aspectos João sempre foi a mesma coisa - claro, depois de seu período inicial, quando era um perfeito cover de Orlando Silva, com os Garotos da Lua, em princípios dos anos 50. Mas quando você mergulha nesse ambiente que sua música enseja, esse lugar calmo e contido onde sua voz ecoa, você consegue perceber as nuances e sutilezas, de um estilo que recusa qualquer fio de exagero, e que faz o encontro insuspeito entre tudo aquilo que era , de forma nata, brasileiro. Como se tivesse extraindo a essência do que é o Brasil. O bom de tudo é que , graças à fonografia, não perdemos João, ganhamos para a vida inteira. Resta agora continuar espalhando os frutos-sementes que sua obra deixa para a eternidade.
Por Pablo Castro
Outros materiais: Link para o ótimo texto de Bráulio Tavares enfocando a genialidade de João Gilberto Link para texto do poeta Augusto de Campos que sairia em seu livro Balanço da Bossa. Link para o doc especial da Rádio Batuta do IMS "Tim tim por tim tim: a música de João Gilberto. Link para o programa A bossa antes da bossa, com Ruy Castro. Playlist organizada pelo Pablo Castro, pra ouvir enquanto se lê sobre João.
Registro em filme da gravação do disco Brasil, em 1981.
Esse maravilhoso rebento geminado veio ao mundo recentemente, "Sozinho e bem acompanhado", do parceiro Maurício Ribeiro, com três canções cujas letras saíram das mesmas pontas de dedos que vos escrevem estas linhas. A já "aerada" e radiodifundida "Veneno Remédio", um pequeno tratado sobre a contagiante e contaminante atividade de torcer pela tevê, e as ainda pouco ventiladas "Às cegas", sombria leitura da velhice que agora me assombra como premonição da nefasta reforma da previdência, e "Samba em Três", pequena fantasia impregnada de sonoridades e referências icônicas caribenhas, respingo da minha ida a Cuba e quiçá do meu gene tropicalista recessivo. Estou felicíssimo de estar no meio de várias feras musicais, alguns igualmente gente querida da nossa cena belOUROizontina, num disco duplo gravado entre dois oceanos e expressivo de musicalidades que, se rompem fronteiras, também não desconhecem os respectivos berços.
Das três da safra, foi esta a última a germinar. Tenho adotado às vezes o procedimento de manter os títulos provisórios que nomeiam arquivos de mp3 ou outros formatos que os parceiros me enviam, quase como se fosse um traço inconsciente falsamente acidental, que dá uma pista das motivações por trás da música que me chega. Podemos nesse caso observar que "Samba em Três" é um "metatítulo" que simultaneamente dá identidade E analisa o objeto musical que embala, na medida que ressalta esse caractere distintivo de sua lavra, ou seja, de que se trata de um samba em compasso ternário, raro para o gênero, mas com
antecedentes, ao feitio de Cravo e Canela, por exemplo. Sob o signo da síncope, estrofes muito econômicas e serelepes saltitavam em meus ouvidos. A sugestão de algo caribenho talvez tenha sido reforçada por esse recurso ao arquivo do repertório bituquiano, especialmente a versão gravada no disco Milton (1976) em terras da América do Norte. Ao mesmo tempo, a melodia sugeria versos curtos, com pouco "espaço" para digressões e especulações às quais às vezes me lanço. Senti que era preferível perseguir um estilo mais "telegráfico", livre e associativo, com frases soltas e ligadas pela temática, sem necessariamente apresentar uma sequência narrativa lógica.
A princípio, assim, o tema sugeriu um inventário geográfico, mais alusivo que propriamente descritivo. A inspiração estava ainda temperada pela inesquecível viagem que fizera a Cuba naquele mesmo 2016, cujas sonoridades aderiram ao ouvido da memória, aquele que não olvida. O eixo central da letra então se definiu a partir de duas listagens paralelas, países e gêneros musicais caribenhos. Inventário iniciado, alguns jogos com sonoridades e rimas foram surgido daí, especialmente a partir da 3ª estrofe - porém sem brincar propriamente com a mescla entre português e espanhol como fazem Chico na versão de Canción por la unidad latinoamericana e Caetano em Quero ir a Cuba. Mas se as primeiras estrofes parecem quase que pinçadas de peças publicitárias de agências turisticas e revistas de companhias aéres, o espírito crítico de historiador me sugeriu uma drástica virada de clima, como se um furacão tropical sacudisse tudo quando entra o "B". Borrei o painel idílico e eufórico com uma espécie de "crônica" icônica e abreviada da colonização e seus desdobramentos históricos e culturais na região do Caribe. Essa foi a última parte que escrevi, e a que me deu mais trabalho. Marcadamente distinta musicalmente, instalando uma certa suspensão e irregularidade no momento em que o ouvinte já vem de 4 estrofes com a mesma estrutura. É como se esse "B" dividisse a letra de tal modo que depois o "eu lírico" observador descreve um Caribe bem mais complexo, com esquemas de paraíso fiscal, intervenção militar, motim e outros conflitos armados entremeando as alusões amenas já evidenciadas na primeira parte. Finalmente, como persistente entusiasta do refrão que sou, 'pirateei' um ao repetir, com uma sutil alteração, a 4ª estrofe no 8º "A".
Aproveito o vídeo divulgado pelo parceiro: Hoje, recebendo o Triar
aqui na Espanha, acordamos inspirados e nos juntamos pra um "desayuno
musical". O arranjo de "Samba em três" (música minha com letra do Luiz Henrique Assis Garcia) vai ser aprimorado até o show de amanhã, no Cafe Mercedes Jazz, em Valencia. Mas já segue aqui o gostinho em vídeo, e os dados do show estão no link abaixo.
Samba em três (Maurício Ribeiro e Luiz Henrique Garcia) Índia ocidental
Onde para o sol
Latitude vinte graus
Ilhas a granel Mar que beija o céu Bem no clima tropical Passa o Panamá Na Jamaica, Jah Cúmbia na Colômbia Bravos siboneys Dançam samba em três Habaneras ancestrais Lá se converteu, se bebeu, por amor Quente sangue que se verteu, por louvor Serras, costas, botas e matagais biltres, putas, padres e canibais, escravos, senhores... Granada, intervenção Haiti, motim Trinidad, não tá ruim Nas Antilhas cais, Mastros e canhões Offshores sem fiscais Grande Caimão Rumba, Salsa, Son Merengues dominicais Bravos siboneys Dançam ao som do Tres Habaneras ancestrais