Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

6 de agosto de 2023

Adeus a Carl Davis, transcriador do Oratório de Liverpool

Mais uma partida das que inevitavelmente serão colecionadas e sentidas. Em 1991, quando foi lançado o Oratório de Liverpool, os meios para ter acesso a este tipo de lançamento fonográfico aqui eram escassos e caros. Provavelmente o maior ato de contrição e disciplina religiosa que cometi naquele ano foi ficar pacientemente em posição para gravar em fitas k7 a transmissão dessa bela obra, realizada pelos diligentes apresentadores do saudoso Alvorada Beatles Club. Depois me lembro de ouvir até gastar, deslumbrado, esse registro precário que para os meus ouvidos ainda pouco versados no cardápio de ousadias que músicos desafiadores de fronteiras - inclusive brasileiros como Jocy de Oliveira, Gismonti, Hermeto Pascoal, entre outros - já haviam realizado àquela altura do campeonato, soavam como ouro garimpado no fundo da mina.

Passados muitos anos e vencida essa empolgação desmedida - que nos meus 15 anos regava tudo que envolvia Paul McCartney - não embarco tanto nessa viagem mas isso não oblitera o valor dessa colaboração. Sendo assim fica esse pequeno tributo a Carl Davies, o maestro que teve a diligência e meticulosidade de transcriar para partitura de orquestra a imaginação musical indomável do ilustre liverpudliano.



5 de julho de 2023

Música, mercadoria e overdose de nostalgia



E o assunto (extra)musical do momento é o comercial da Volkswagen que apela para a overdose de nostalgia ao criar digitalmente com auxílio da dita Inteligência Artificial um dueto entre a cantora Maria Rita e sua mãe, Elis Regina, eterno ícone da MPB, cantando - devidamente editada - a marcante "Como nossos pais", pérola do não menos icônico compositor Belchior, também já falecido. Não vou compartilhar o comercial, que achei de mau gosto, pra começar, nem me dar ao trabalho de fazer uma síntese das críticas que pululam nos meios. Para isso deixo duas matérias, de Veja e Uol. Prefiro, oportunamente, citar os textos de gente que sabe mais do riscado e já deu seus pitacos pelo facebook, e que adianto que valem ser lidos por completo.

Mais cedo eu assisti a coluna do Bob Fernandes [aqui], que inicia com uma referência ao jornalista italiano Roberto Calasso, que chama nossos tempos de "era da inconsistência". Tenho escrito sobre a tremenda força da dissociação cognitiva, que vem servindo para que muita gente possa manter no mesmo cérebro e corpo pensamentos e práticas completamente incompatíveis sem qualquer arranhão em sua autoimagem ou modo de ver o mundo e viver a vida. Encaixa perfeitamente com a exposição que o Bob faz do livro do Calasso. 

Isso nos serve para apoiar a compreensão de dois fenômenos conjugados profusamente ao longo do comercial. Um é a exploração da nostalgia como mercadoria, o outro é o uso da polissemia da canção para promover sua interpretação e recepção contrasensual. Na sociedade capitalista do espetáculo contemporâneo, tudo vira mercadoria como Marx previra, mas também se torna solúvel no grande show de luzes da existência inundada por telas de cristal líquido ou LED. Nessa operação não se perde de vista nem mesmo o passado, pois nada está perdido dentro do dominate "presentismo" de que nos fala o historiador François Hartog. Vemos a exploração desse mote desde o plano genérico e coletivo de evocação da estética "retrô" dentro de uma versão desidrata de acontecimentos e processos históricos convertidos em trechos de videoclipe, até o plano que vaza a esfera privada ao mercado público ao transpor sentimentos de luto e perda em algum tipo de saudade recalchutada e embalada em atmosfera otimista. Diante do recorrente medo humano da morte, a tentação pela eternidade de fachada é enorme. Volks e Maria Rita, aí, bebem da mesma água. Oportuna consideração do atento crítico musical - entre outras peripécias - Túlio Villaça:

"E o que dizer da recriação da Elis Regina por IA? Não poderia ser mais apropriada. O engraçado é que a Maria Rita, depois de emular o repertório da mãe nos dois primeiros álbuns, deserdou e foi ser sambista, uma decisão sábia em termos de carreira e possivelmente psicanalisticamente também. Ou seja, ela não repete a mãe, o que é ótimo (embora eu goste muito dos primeiros álbuns). Mas aqui ela é a própria representação do filho que repete os pais. E deve ter mesmo ganho um bom dinheiro, à parte a questão ética de ela ter permitido o uso da imagem da mãe em algo que ela não sabe se a mãe concordaria em fazer". [Túlio Ceci Villaça, via facebook] 

Desde que constatei que a capa do primeiro disco de Maria Rita era a perfeita reprodução da foto de sua mãe em entrevista ao caderno Folhetim da FSP no final dos anos 1970s, tomei antídoto contra a contagiante expectativa que seu timbre de voz instilava. Ela parecia ter decidido fugir ao "projeto", como aponta o Túlio, mas cede esporádicamente à tentação, dessa vez com o agravante de nitidamente trair a memória da mãe, notória desafiadora das ordens estabelecidas, seja a do mercado, seja a da Ditadura Militar que a montadora alemã apoiou flagorosamente, e contra a qual a composição "Como nossos pais" que ela vestiu tão bem, igualmente se batia. Aproveito para retomar o que escreveu Makely Ka, um cantautor de mão e boca cheia que também mete bronca na crítica:

O roteiro da peça publicitária usa símbolos icônicos da contracultura, pessoas viajando em kombis nos anos 70, músicos, acampamentos na fogueira, um casal transando dentro de um carro, o ideal de liberdade e toda uma estética hippie, para vender uma ideia diametralmente oposta ao que diz a letra da canção. Belchior, o compositor atormentado, que inclusive morreu no seu auto-exílio completamente avesso à mídia, à publicidade, a qualquer tipo de concessão ao mercado. [Makely Ka, via facebook]

Se as críticas pipocaram é porque a inversão de sentido é muito gritante, além de óbvia. Qualquer pessoa com o mínimo de informação e conhecimento sobre a história do Brasil e da sua música popular há de sacar imediatamente o abuso que se passa.Porém, os publicitários, a Volks, a Maria Rita, está todo mundo contando com a dissociação cognitiva e a desmemoriação coletiva. Onde Belchior havia deixado uma autocrítica de geração rasgante e sem condescendência, desafiando aquela "juventude" a crescer sem imitar os pais (e nesse sentido ele toca a mesma corda que Lennon, um de seus maiores inspiradores), eles propõem uma viagem de kombi por um tempo sem qualidade ou aresta, "homogêneo e vazio" como alertava há mais de um século o filosofo - alemão - Walter Benjamin. Por isso precisamos manter a vigilância, e aprofundar o conhecimento do passado, para não esquecer. Eis um depoimento citado na matéria do Uol que considero válido retomar:

Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen, já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco".Lucio Bellantani, ex-funcionário da Volks, em depoimento à Comissão da Verdade de São Paulo.

Não sejamos os mesmos. Menos nostalgia, mais História. Menos mercado, mais Música.
Em nome disso termino pondo pra tocar Belchior na voz de Elis:



27 de março de 2023

NOVA ARCÁDIA

Compor canções é algo tão antigo quanto a própria humanidade. Claro que quando tratamos desse assunto em nossos dias inevitavelmente situamos tal ofício em relação ao meio que acaba exercendo sobre ele forças centrípetas e centrífugas, que é a indústria fonográfia. Ainda que qualquer canção possa nascer, e mesmo existir por anos e anos totalmente alheia aos processos que a fonografia estabeleceu, esse será um parâmetro inevitável para avaliar e experimentar sua aparição no mundo. Quero, com esse preâmbulo, introduzir meu relato sobre duas sensações complementares, que não percebo como contraditórias. A primeira é que compor - para mim eminentemente em parcerias - é um trabalho com inquestionável validade em si mesmo, de modo que cada criação merece ser apreciada desde a gestação até o momento em que se consolida aos olhos e ouvidos dos compositores. A segunda é a gravação, ou seja, a transmutação de uma canção da sua forma original, nua em pelo, por assim dizer, numa aparição diversa, vestida com todo tipo de procedimento mediado por uma aparelhagem que permite o que se assemelha a costurar uma indumentária com arranjos, timbres, solos, vozes, entre outros elementos musicais, e até mesmo alguns extramusicais, para vesti-la. É possível gostar das duas coisas, dos dois momentos, e se eu posso me permitir essa analogia, com o devido desconto, é como celebrar o nascimento da criança e depois um grande momento da vida de um ser humano, como uma formatura ou matrimônio, por exemplo. 



É portanto uma felicidade em dobro quando sai uma canção de um parceiro comigo, como acabou de acontecer com Nova arcádia, que fiz com Rafael Senra,  em seu disco O sereno da noite [ouça todo][veja a página especial], ainda que "disco" hoje remeta sobretudo a um conceito que reúne canções num lançamento simultâneo, pois tornou-se cada vez mais raro e difícil lançar tal tipo de "objeto" em sua tradicional forma física. Aliás, é sobre isso que versará, entre outras coisas, a pesquisa de pós-doutorado que irei realizar a partir do meio do ano (assunto quiçá para outra postagem). 

Nova arcádia faz parte de uma primeira leva de parcerias nossas, que pelos meus registros começaram a tomar forma em 2017. Quem lê o blog portanto irá imediatamente perceber a distância que pode haver entre a composição e a gravação de uma canção, e olha que pode ser muito maior que isso. Mas a proposta aqui é falar de criação, então vamos lá. Enquanto ouço a despojada demo que o Rafa me mandou, dedilhando o violão e cantarolando a melodia, penso que de alguma forma o letrista tem que "advinhar" o que pode vir a ser a canção, inclusive na virtualidade de sua gravação. Compartilhamos entre outras afinidades e interesses, o gosto pelo rock progressivo (ainda que ele conheça infinitamente mais o gênero que eu) e a temática de pesquisa sobre Clube da Esquina (ambos tratamos disso em nossas dissertações de mestrado). De posse desse "esqueleto", que além da própria combinação entre harmonia e melodia já propunha uma estrutura para os versos, me ocorreu trazer para a letra algo que traduzisse a sensação de algo épico e ao mesmo tempo "clássico", por assim dizer. Me ocorreu que a mineiridade, tópico que o Rafa tratou com muito mais delonga do que eu ao escrever sobre o Clube, era um tema que respondia a essa necessidade, e ao mesmo tempo ganha em peso experiencial a partir da ida dele para lecionar na UNIFAP no Amapá. Foi ficando definido pra mim que deveria explorar a ligação da Inconfidência mineira com o Arcadismo, evidente na participação destacada de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga. Daí obviamente temas neoclássicos como a mitologia, a natureza e o elogio da razão. Sem o mesmo rebuscamento, eu me inspirei nas letras de Peter Gabriel no tempo do Genesis, como The fountain of Salmacis. Não sou de grandes formalismos mas às vezes pinta uma ideia, como a reiteração do "v" que começa já no primeiro verso. No mais recorri a imagens bastante manjadas, e é como se o "eu lírico" fosse uma personagem de época, soltando bordões  iluministas e citando deuses gregos. Tem uma lembrancinha ou duas também das aulas de Política na graduação, uma pitada de Hobbes aqui, de Rousseau ali. Acho que condiz bastante com o rumo que a música tomou na gravação, esse tom assertivo e grandiloquente. E se o disco não tem um conceito de amarração tão explícito, esse tópico da noite é recorrente. Na canção claramente a treva, a sombra, são representações da falta de esclarecimento e civilidade. O "nova" entra como uma espécie de vontade de atualização, ou mesmo uma projeção utópica, a contrapor a distopia que tomou conta dos últimos tempos. Certamente o "eu lírico" da canção é mais ingênuo do que eu, mas gosto de pensar que sempre essa emissão dá ao compositor a oportunidade de deixar algo de si mesmo quando, simultaneamente, se distancia pela oportunidade que a imaginação lhe confere de ser "outro". 




Nova Arcádia (música de Rafael Senra, letra de Luiz Henrique Garcia)

Entre as trevas a vista
se insinua o sinal
Imortal
O fogo que deu Prometeu
para a terra iluminar

nos cantos escuros
nas Minas Gerais
onde mais
se forje no ferro a razão
para o medo aprisionar

longe do alvorecer
e deixar
nosso povo escolher

sem calar
toda voz que se erguer
pra falar
do que ainda há de ser

Entre as sombras mais vastas
Esgueira-se a luz
Corpos nus
Apolo conduz pelo sol
para a vida completar

num canto maior
Nova Arcádia de paz
onde mais
se forje no ferro a razão
para o medo aprisionar

longe do alvorecer
e deixar
nosso povo escolher

sem calar
toda voz que se erguer
pra falar
do que ainda há de ser



6 de fevereiro de 2023

A boca é livre, o choro também, mas...

As premiações certamente merecem um capítulo à parte na história da música popular e da indústria fonográfica. Sob a guarida de alguma entidade do setor, apresentadas ao grande público com pompa e circunstância, supostamente elas são capazes de conciliar apreciação qualitativa dos “produtos” e seu êxito comercial. Diversos mecanismos e regulamentos que organizam tais contendas lançam mão de retóricas e práticas para atingir tal efeito, como mesclar indicações feitas por críticos e público, ter laureados escolhidos por um comitê de notáveis lado a lado com os votados democraticamente pelos meios tecnológicos disponíveis, criar categorias “técnicas” ao lado das pretensamente “estéticas”. No contexto do entretenimento globalizado, o Grammy fulgura como o mais chamativo destes prêmios, distribuídos do âmago do negócio da fonografia, os EUA, apesar de ironicamente trazer no nome uma referência ao engenho do alemão Berliner, e não do seu conterrâneo Thomas Edson. Mas isso mesmo é indício de sua pretensão planetária, obviamente criticável.  

É lamentável que a contenda seja reencenada de forma tosca nas redes sociais por obtusos fanáticos pela cantora pop Anitta, que sem hesitação saíram a lançar impropérios contra Samara Joy, a vencedora da categoria de melhor artista revelação em que ambas concorriam [aqui]. Claro que esses “fãs” (de repente fanatizados fica mais preciso) assimilam a lógica da disputa por meio de seu próprio “filtro”, ou seja, o de uma ordem autoritária, impositiva, que não admite contrariedade ou diferença de perspectiva. Vale lembrar que Anitta adorava posar de “democrata” e “politizadora” ano passado, mas quando a conversa chega no mercado é melhor esquecer da política... Essa ótica muito menos admite qualquer apreciação de ordem estética que vá além de afetos primários e impulsos cordiais, expressando um tipo torto de patriotismo vulgar que considera o ápice do reconhecimento de valor uma performer ser laureada por tudo que faz para soar ajustada a uma visão redutora que explora o traço nacional como exótico e sensual dentro do arcabouço do som pasteurizado regurgitado das entranhas de sua usina de sucessos de goma de mascar. Muito melhor que isso – decididamente - com muito mais brasilidade, ginga, charme, etc., fez Carmen Miranda décadas e décadas atrás, por mais que ela também tenha sido em alguma medida enquadrada nas balizas do estrelato hollywoodiano que usavam estas mesmas lentes.

Igualmente notável que essa carrada de pessoas não dê a menor notícia do prêmio concedido ao conjunto vocal Boca Livre em parceria com o cantor panamenho Rubén Blades, ainda que no segundo escalão da premiação. Nem vou desfiar mais o rosário de críticas sobre dar importância a Grammy, subdivisão "latino", com a devida adesão ao viralatismo a céu aberto da imprensa brasileira. O prêmio em si importa pouco, importante mesmo é aproveitar o ensejo para celebrar e difundir a obra refinada do Boca Livre e torcer para que a divulgação a leve a novos ouvidos. E claro, uma nota trista pela ruptura de relações entre os membros do grupo, mais um saldo negativo desses tempos de escalada reacionária. Deixo abaixo algumas das minhas preferidas do grupo, e também o link para apreciarem o trabalho vencedor.











25 de janeiro de 2023

MACHADO ELÉTRICO


Mais uma das minhas parcerias com Daniel Guimarães. Essa foi a que mereceu mais revisões e reinvenções na letra. Quem se lança na tarefa de botar palavras na música que outra pessoa compôs tem que estar disposto à tarefa, que pode ser tanto um passeio de pedalinho quanto uma circunavegação do Cabo das Tormentas. No geral não será nem tão ameno nem tão dramático. Enquanto escrevo este texto vou recapitulando as conversas que fui tendo com o Daniel via mensagem no facebook - já devo ter dito em algum dos relatos anteriores que a distância condicionou essa forma de interagirmos. O fato é que eu esteva muito nessa onda de brasilidade, ali por meados de 2020. Com a verve de historiador falando alto, comecei com uns versos que pareciam adaptação de livro didático ou versão de samba enredo, diante de uma melodia sinuosa, que me sugeria o mar e uma narrativa forte, densa, solene. 

Pindorama, litoral 
Veio a nau da Guiné de Bissau
Sesmaria, pau brasil
chão dividiu
gente arredou

Só o primeiro verso resistiu rsrsr. Mas naquele momento segui naquela toada, fiz outra estrofe e depois o B (este manteve ao final a mesma redação) que de alguma forma sugeria uma reflexão sobre a passagem do tempo, e expressava também a vontade de ver mais um momento de crise do país ser superado de alguma forma. Daí cravar ao final: o futuro vai passar. Do ponto de vista das figuras brasileiras que eu evocava, o futuro delas era o nosso presente, que também deixa de ser, em meio a essa imagem alegórica e sincrética refletida num objeto simbólico pertencente a uma divindade afro-brasileira, o que me fora instigado pelo título da "demo", que já era Machado elétrico.
Satisfeito naquele ponto, enviei ao parceiro o resultado. No retorno, com toda a delicadeza e muita sensibilidade, ele foi destrinchando pra mim a motivação por traz do que compusera, homenagem a um querido amigo e parceiro musical dele que havia deixado essa nossa precária existência. Além de comovido eu me senti incumbido da tarefa de me acercar minimamente, através do relato dele, de algumas músicas gravadas, da pessoa do homenageado. Entre as nossas conversas fui procurando um jeito de conciliar o impulso original do que eu escrevera com essa nova perspectiva. Fico feliz de constatar, revendo essas mensagens, que fizemos tudo com muito respeito mútuo e paciência. Esse é o fundamento de qualquer parceria, porque querendo ou não estamos nesse barco expostos a tudo. Não é mole a vida do compositor, em especial a do cantautor que interpreta suas próprias canções, muitas vezes colocando pra fora o que tem de mais íntimo esperando que isso faça sentido pra outras pessoas. Busquei, assim, capturar dentro de um mesmo universo imagético o limiar entre a vida e a morte, a praia e o mar, o passado e o futuro, enfim, a mudança que é algo que experimentamos como indivíduos e como sociedade. Acho que o resultado final foi digno do desafio, e a canção como um todo ficou muito bonita, como é possível conferir nessa versão voz e violão:


Machado elétrico (Daniel Guimarães/Luiz H. Garcia)

Pindorama, litoral
Vento risca nas dunas de sal
Corta a voz do cantador
Céu carregou
Vem temporal

Junta contas no cordão
Sente areia escorrendo da mão
Sol e sombra na feição
Espuma nos pés
Desafia o ar

Guerreiro tupinambá
Ergue a vista sobre o mar
Vê a lua brilhar
No machado de Xangô
Entre sangue e resplendor
O futuro vai passar