Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

19 de janeiro de 2014

Na estante: Sting, Fora do tom

Ainda em férias, mas inevitavelmente atolado em trabalhos que estão condicionados por outra ordem de prazos, tento reservar também algum tempo para as leituras que não sejam as que tenho que fazer para escrever artigos ou preparar aulas. Inevitavelmente, elas acabam integrando um campo de possibilidades em que labuta e prazer ficam de tal modo amalgamados que é difícil saber onde um começa e o outro termina. Assim me lancei esses dias ao mar e na volta da maré me vi mergulhado na autobiografia de Sting, Fora do tom (Cosac Naify, 2006). O primeiro impacto vem da constatação de que não é simplesmente a reunião de fatos marcantes, de eventos e emoções que constituem o quebra-cabeças da vida do narrador, o que vai me prender. É a escrita venturosa, que transita entre o rebuscamento e a rudeza que refletem o vasto espectro de experiência e deslocamentos culturais de seu protagonista. Como muito estilo e escolhas que demonstram que é tão meticuloso e consciente como escritor como é como músico, Sting nos leva a examinar como discretas sombras companheiras de sua jornada cenas definidoras ou aparentemente triviais, momentos reflexivos com pretensões filosóficas e rememorações vívidas de diálogos cortantes, locais ou acontecimentos. 
Como pesquisador, sempre intriga e aguça meu interesse tudo que envolve a formação do músico popular. Descubro, sem muita surpresa, que a de Sting incluiu o contato com com instrumentos e repertórios presentes em casa, ou no convívio com parentes, progressivamente combinados com a audição do rádio, a companhia dos colegas e as primeiras incursões a casas noturnas para assistir performances ao vivo. Encontrei relatos muito parecidos em entrevistas concedidas por compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso ou Milton Nascimento. Dada a real impossibilidade de transcrever vários e vários trechos pelos quais estou definitivamente fascinado, escolhi de forma totalmente arbitrária a parte em que ele relata sua descoberta dos Beatles, em seu último ano do primário:

"Lembro-me de estar no vestiário da piscina. (...) Estávamos nos secando, e, como de costume, chicoteando os genitais uns dos outros com a toalha. Foi nesse momento que escute os primeiros compassos de "Love me do", vindos de um rádio transistor ali perto. O efeito foi imediato. Havia alguma coisa no modo como o som era intervalado que pôs um fim imediato à brincadeira estúpida. A gaita solitária de John e o baixo de Paul tocavam "duas notas por compasso" e então a harmonia vocal movia-se de quintas a terças menores e de volta outra vez à voz solo no refrão. Não que eu fosse capaz de articular essas coisas na época, mas reconheci algo significativo, até revolucionário, na esparsa economia sonora, assim - e isso é interessante - como todo mundo.
(...)
Mergulho nos álbuns dos Beatles com a mesma obsessão e escrutínio forense que aplicara aos discos de Rodgers e Hammerstein, só que agora com um violão. Tenho um instrumento capaz de reproduzir a mágica prática das estruturas dos acordes e do emaranhado de riffs em que as canções estão construídas. E que canções, uma depois da outra, disco após disco. Aprendo a tocá-las todas, confiante de que, se eu insistir, o que não for capaz de tocar imediatamente, terminará por me revelar seu segredo, no fim. Pouso a agulha do toca-discos inúmeras vezes, nos sulcos das canções que parecem estar além de minha análise, como um arrombador de cofres procurando a combinação, até que o prêmio seja meu." (pgs. 85-87)

Como uma estocada, que é uma das formas pelas quais se pode traduzir seu apelido em português, Sting nos impele por cada página de sua instigante vida fora do tom. 
Para completar a postagem, uma versão dele de A day in the life (Lennon/McCartney) e outra de In my life (Lennon/McCartney) em um duo de alaúdes. 



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