Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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9 de fevereiro de 2016

O Clube da Esquina no repertório de Simone

Quando escrevia minha tese de doutorado imaginei fazer uma extensa pesquisa cercando as gravações por diferentes intérpretes das canções de membros do Clube da Esquina. Doutorando adora inventar projetos que não são factíveis para criar obstáculos mil à conclusão da tese. É inevitável. Enfim, em algum momento o prazo falou mais alto e tive que transformar isso em uma investida bem mais limitada e possível, elegendo alguns intérpretes e álbuns com o intuito de demonstrar - creio que de forma bem sucedida - como o Clube da Esquina alcançou grande penetração no cenário da MPB na década de 1970. A pesquisa precisa desses ajustes, e neles acabamos muitas vezes compensando o fato de não termos voado tão alto quanto gostaríamos com alguns rasantes bem significativos. Mas fica sempre aquele gostinho de incompletude, com o qual todo pesquisador precisa aprender a conviver, e eventualmente guardar como combustível para uma futura arremetida. Eis que me deparei hoje com essa playlist disponibilizada pelo Gustavo Matavelli, colega frequentador de uma página sobre o Clube no facebook, elencando 17 canções do repertório da cantora Simone escritas por participantes da constelação de craques agremiada na imagem prosaica da esquina. Deu vontade de retomar algumas postagens e complementar alguma coisa por aqui.
Algumas observações iniciais que são interessantes para situar a constituição desse repertório. Primeiro é que Simone, ainda em início de carreira, foi imediatamente contratada pela EMI-Odeon, que era a gravadora que tinha sob contrato toda linha de frente do Clube, havia lançado o álbum duplo Clube da Esquina e eleito Milton Nascimento e seus amigos como núcleo duro de seu cast de prestígio, ou seja, aqueles artistas que se acreditava que representariam, mesmo que sem grandes vendagens de discos, o estofo para constituir o patrimônio de excelência musical dentro do mercado fonográfico. Simone contava com um produtor de extrema competência, conhecedor de repertório e compositor de mérito próprio, Hermínio Bello de Carvalho, para produzir seus 4 primeiros discos, sendo que no último, Gotas D'água (1975), ele dividiu a tarefa com ninguém menos que Milton Nascimento. Recupero um trecho da minha tese que já citei em postagem anterior sobre o Clube no repertório de intérpretes femininas [aqui].

O disco de Simone Gotas d’água (EMI, 1975) traz Milton como co-produtor, além de participar cantando e tocando piano em Gota D’água (Chico Buarque) e ceder duas canções feitas com Fernando Brant (Outubro e Idolatrada). Wagner Tiso, além de tocar piano e órgão em várias faixas, fez arranjos para 5 canções. A concepção da capa foi feita por Ronaldo Bastos e Cafi, o “fotógrafo oficial” do Clube. No repertório, compositores que começavam a conquistar espaço, como a dupla João Bosco e Aldir Blanc, Gonzaga Jr. (que ainda não assinava Gonzaguinha) e uma parceria de Tavinho Moura e Murilo Antunes. Na parte instrumental, a presença dos integrantes do Som Imaginário, na formação que contava com Nivaldo Ornelas, Novelli, Paulo Braga, Toninho Horta e o já citado Wagner Tiso. (GARCIA, 2007, 230-231)


Essa proximidade toda se reflete não apenas na escolha de repertório, mas na arregimentação de músicos (Novelli, Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes, Nelson Angelo, Nivaldo Ornellas, entre outros, figuram em várias faixas), concepção de arranjos, etc. Vejamos por exemplo a ficha técnica da antológica gravação de Gota D'água (Chico Buarque):
  • Wagner Tiso (Órgão e Piano)
  • Novelli (Baixo Elétrico)
  • Toninho Horta (Guitarra)
  • Paulinho (Bateria)
  • Chico Batera (Efeitos de Percussão)
  • Nivaldo Ornellas (Flauta)
  • Milton Nascimento (Voz/Piano)
  • Arranjo: Wagner Tiso

Escolhi propositadamente uma canção que não foi composta por membro do Clube, mas cuja assinatura ficaria evidente. É relevante assinalar que esse momento de forte aproximação entre Chico e Milton, então dos dois mais populares artistas da MPB, foi acompanhado de perto por Simone, que inclusive gravou a 1a. parceria deles, Primeiro de Maio [mais detalhes nesta postagem do blog]. Esse laço se reforça no LP Face a face, como é possível notar analisando o repertório completo: apenas 3 das canções não são ou de Chico ou de alguém do Clube. E mais, é como uma pequena prévia de Clube da Esquina 2, com o qual compartilha 4 canções.


1. "Face a Face" (Sueli Costa / Cacaso)
2. "Primeiro de Maio" (Milton Nascimento / Chico Buarque)
3. "Reis e Rainhas do Maracatu" (Milton Nascimento / Novelli / Nelson Angelo / Fran)
4. "O Que Será" (Chico Buarque)
5. "Céu de Brasília" (Toninho Horta / Fernando Brant)
6. "Paixão e Fé" (Tavinho Moura / Fernando Brant)
7. "Jura Secreta" (Sueli Costa / Abel Silva)
8. "Valsa Rancho" (Chico Buarque / Francis Hime)
9. "Canoa, Canoa" (Nelson Angelo / Fernando Brant)
10. "Começaria Tudo Outra Vez" (Gonzaguinha)

Justamente em meados da década de 1970, a MPB passou a atingir um público mais amplo, especialmente a partir da consolidação do 'circuito universitário', forma de criação e consolidação de público extremamente importante no momento político em que vivia o país. Nos repertórios desses primeiros discos de Simone vemos também a constante presença de compositores que emergiram nesse contexto, como a dupla João Bosco/Aldir Blanc, Ivan Lins e Gonzaguinha. Aqui não cabe agora mas acredito ser razoável intuir que seus discos seguiam em boa medida o que seria a 'receita de bolo' estabelecida por Elis Regina, obviamente com variações e evidentemente sem a mesma força para lançar e alçar novos compositores.  O peso do Clube em seu trabalho, especialmente visível nesse período entre meados de 1970 e meados dos 1980 é sensível, mesmo depois de ter mudado de gravadora. Note-se que a faixa seu disco Cigarra (1978) é a canção homônima de Milton e Ronaldo Bastos, certamente escrita para ela. Nesse rol podemos colocar também Mulher da vida e Amor e paixão (ambas de M.Nascimento e F. Brant). Outro detalhe é o fato dela ter acesso e gravar em primeira mão algumas canções. Canoa, canoa (Nelson Angelo e Fernando Brant) ela gravou no disco Face a face em 1977, antes da gravação de Milton para o Clube da Esquina 2, e no mesmo disco fez a primeira gravação de Céu de Brasília (Toninho Horta e Fernando Brant). Não gravava apenas canções já conhecidas e/ou reconhecidas, como Outubro ou O sal da terra, mas também escolhas mais difíceis, como Coisas de balada (N. Angelo e F. Brant), O trem tá feio (Tavinho Moura e Murilo Antunes) ou Nenhum mistério (Lô Borges, Ronaldo Bastos e Murilo Antunes). 
 Observando esse repertório, gostaria de notar ainda que a atribuição do rótulo de "cantora romântica" a Simone perde de vista o conjunto dos registros desse período de sua carreira, embora possa ter sido guiada por uma leitura de seus maiores sucessos. Mesmo não sendo o foco da  postagem, é relevante perceber a carga política e artística das escolhas de repertório e das performances de uma cantora que fazia parte do primeiro time de intérpretes da MPB na passagem daquela década. Canções como Itamarandiba, Primeiro de Maio, Povo da Raça Brasil, Outubro, entre várias da obra do Clube que gravou, comprovam isso. Sem querer me alongar, é perfeitamente identificável o engajamento dela na questão da redemocratização, se ainda faltar evidência, pelo impacto de ter sido a primeira a cantar Pra não dizer que não falei das flores (Vandré) após a censura liberá-la em 1979, e ter feito dela o registro mais emblemático excluindo-se o do próprio autor. Até hoje em manifestações de rua costuma-se ouvir a reprodução da gravação de Simone desse hino político e popular. 
Esse exercício, que ainda comportaria mais algum detalhamento, cumpre o objetivo a que se propôs mas também lança pequenos insights sobre o peso do repertório dentro da obra de uma intérprete, a forma como certos rótulos estabelecidos obscurecem nuances de uma determinada carreira e a importância de uma pesquisa para revisar perspectivas e abalar verdades estabelecidas.

A playlist:


15 de maio de 2012

O Clube da Esquina no repertório das intérpretes na década de 1970

Enquanto se faz uma tese, muitas vezes parece que o peso dessa palavra vai aumentando à medida em que o tempo passa e os prazos apertam. Pensamos, por diversas razões, que ela tem que abarcar o mundo, cumprindo uma verdadeira circunavegação do globo. A sensação piora na medida em que vários insights, merecedores de maior desenvolvimento, acabam ficando ali, tacanhos, pequenos passos em forma de parágrafo do que deveriam ter sido caminhadas inteiras de páginas. Depois a gente entende (e é uma crueldade esse entendimento chegar com tanto retardo) que uma boa tese, dentro das limitações (nossas e da realidade), é feita também desse pequenos momentos de inspiração - e que bom tê-los, afinal. O que está ali ficará, esperando que nós mesmos, em condições por ventura menos tormentosas, retomemos o fio da meada, ou que outros pesquisadores, nas suas próprias jornadas, possam se valer dessas breves investidas.
Hoje passendo inadvertidamente pelo repertório dos primeiros LPs de Fafá de Belém, acabei me lembrando de uma das minhas. Meu plano, não cumprido, era fazer uma análise extensa dessa "penetração". Acabei estudando alguns casos que considerei exemplares, e como a banca não me interpelou a esse respeito creio que consegui provar o meu ponto:
No contexto de consolidação da MPB, houve uma maior penetração da obra do Clube através do repertório de intérpretes como Elis Regina, Simone, Gal Costa e Nana Caymmi, da atuação como músicos em espetáculos e discos de outros artistas e de sua influência no trabalho de alguns dos “novos”, como no caso de Ivan Lins e Luiz Gonzaga Jr. (...) Alguns LPs, escolhidos estrategicamente, permitem observar em detalhe essa penetração, ao mesmo tempo em que mostram a variedade das produções agrupadas em torno da sigla MPB. O disco de Simone Gotas d’água (EMI, 1975) traz Milton como co-produtor, além de participar cantando e tocando piano em Gota D’água (Chico Buarque) e ceder duas canções feitas com Fernando Brant (Outubro e Idolatrada). Wagner Tiso, além de tocar piano e órgão em várias faixas, fez arranjos para 5 canções. A concepção da capa foi feita por Ronaldo Bastos e Cafi, o “fotógrafo oficial” do Clube. No repertório, compositores que começavam a conquistar espaço, como a dupla João Bosco e Aldir Blanc, Gonzaga Jr. (que ainda não assinava Gonzaguinha) e uma parceria de Tavinho Moura e Murilo Antunes. Na parte instrumental, a presença dos integrantes do Som Imaginário, na formação que contava com Nivaldo Ornelas, Novelli, Paulo Braga, Toninho Horta e o já citado Wagner Tiso. (GARCIA, 2007, 230-231)
Quem sabe em breve não sai alguma coisa mais consistente nessa direção...por agora vou fazendo a pesquisa básica e aproveitando para ouvir várias pérolas do repertório do Clube da Esquina nas vozes de intérpretes de personalidade e escolhas estéticas distintas, que participaram do momento de consolidação da MPB na década de 1970.

1. Fafá de Belém - Fazenda (Nelson Angelo) - LP Tamba-Tajá, 1976. 
2.Simone - Céu de Brasília (Toninho Horta & Fernando Brant) - LP Face a face, 1977.
3. Nana Caymmi - Sacramento (Nelson Angelo & Milton Nascimento) - LP Renascer, 1976.
 

1 de maio de 2012

1° de Maio

Meio sem tempo no feriado, meio que a trabalho mas por prazer, sentei para fazer uma breve postagem em homenagem à nata da .... ôpa .... aos trabalhadores (não vou me dar ao trabalho de deslindar esse conceito, fica ao gosto do leitor), nessa data carregada de significado e história. A história dos trabalhadores e a história da música popular se entretece de tantas formas que essa postagem curtinha ficaria fadada ao fracasso se tentasse explorar o assunto em detalhe. Senti o ferrinho cutucando, comecei a correr às estantes. Trabalho de pesquisa querendo se insinuar, nesse tempo de interrupção da labuta. Um trabalho que é outro, que fica noutro lugar. E agora? Já estão aqui "comigo", Michellet Perrot, E.P. Thompson, Jacques Rancière ... abro A noite dos proletários (que livro foda!), o 1° capítulo é "A porta do inferno" e lê-se a citação do operário-serralheiro-escritor Jérôme-Pierre Gilland:
 "Você me pergunta como vai minha vida; como sempre. Choro no momento devido a uma dolorosa reflexão sobre mim mesmo. Permita-me esse movimento de vaidade pueril; parece que não tenho vocação para ficar martelando o ferro." [A colméia popular, set. 1841]
Vem à minha mente essa frente incrível de Pessoas extraordinárias (nos lembra o mestre Hobsbawm) que movem o mundo, e por ele também são movidas. O que se celebra no 1° de Maio? Talvez um tempo que não seja o de vender o corpo e a mente em troca da sobrevivência, e a possibilidade humana de fazê-lo existir. Penso nisso enquanto escuto essa canção, inaugural parceria desse que é certamente um dos Grandes Encontros da Música Popular Brasileira, entre Chico Buarque e Milton Nascimento, gravada por Simone no álbum 'Face a Face' de 1977 (depois lançada em compacto simples pelos parceiros, junto com a 2a. cria, Cio da Terra) e depois apresentada por ela no show homônimo na Sala 'Corpo e Som' do 'Museu de Arte Moderna' (MAM), Rio de Janeiro (atualização em 2025, esta versão infelizmente não está mais disponível, então posto a versão de estúdio). 




Em seguida a versão cantada com Chico no 1º show Primeiro de Maio no Riocentro, em 1979






Primeiro de maio 
Milton Nascimento - Chico Buarque/1977 

Hoje a cidade está parada
E ele apressa a caminhada
Pra acordar a namorada logo ali
E vai sorrindo, vai aflito
Pra mostrar, cheio de si
Que hoje ele é senhor das suas mãos
E das ferramentas

Quando a sirene não apita
Ela acorda mais bonita
Sua pele é sua chita, seu fustão
E, bem ou mal, é o seu veludo
É o tafetá que Deus lhe deu
E é bendito o fruto do suor
Do trabalho que é só seu

Hoje eles hão de consagrar
O dia inteiro pra se amar tanto
Ele, o artesão
Faz dentro dela a sua oficina
E ela, a tecelã
Vai fiar nas malhas do seu ventre
O homem de amanhã 



Com Chico e Milton, a versão do compacto: