Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

9 de maio de 2022

Clube da Esquina e mais nove - o melhor disco da História da música brasileira




Páreo duríssimo. Claro, antes de mais nada é muito bom ver um disco que eu amo e admiro ser considerado o melhor da história da música brasileira. É muito bom também constatar que com muita persistência, num esforço para o qual tenho o maior orgulho de ter contribuído, o Clube da Esquina venceu o nariz torcido da grande mídia eternamente centrada no eixo Rio-São Paulo, e tem hoje todo o reconhecimento de crítica que merece, dentro e fora da academia. Quanto ao público, sempre se pode alcançar outras mentes e corações, e por isso também esse tipo de iniciativa se justifica para gerar um burburinho


Essas listas são sempre muito discutíveis - já tratei disso no blog, especialmente em Famigeradas listas e a questão do gosto, e Mais uma lista. Eu preferia que tivessem dito que era apenas da MPB, por exemplo, pq essencialmente é o que está na lista aí. A concentração num período relativamente curto da história (por mais que eu adore, e até estude esse período), deixa evidente que o "juri" foi muito homogêneo. Só os Racionais "furaram"entre os 10 primeiros (me recuso a usar o termo top)... mesmo considerando os artistas, eu acharia por exemplo Matita Perê mais disco que Elis & Tom... ou o Edu & Tom... poderia preferir Joia/Qualquer Coisa a Transa... ou Noites do norte a ambos... Expresso 2222 do Gil é o projeto tropicalista mais bem acabado de todos, quiçá ultrapassado... enfim... a única coisa boa mesmo em lista é a possibilidade de discuti-la.

16 de março de 2022

Aula de canção - Raça de Heróis (Guilherme Arantes)

Surgiu de súbito a oportunidade de rever o primeiro capítulo da clássica novela Que rei sou eu?, do distante 1989. As recordações de momentos divertidos que se mesclam às lembranças difusas de um tempo de descoberta da política, das ideias socialistas, do ateismo, do ímpeto juvenil, se reembaralham ao ver o folhetim televisivo ao lado da filha já universitária, de espírito aberto para o novo indepentente de "atual" ou "antigo". Para além de toda fórmula reside além uma mostra, por menor que seja, da vocação parodística brasileira, e do poder de sua cultura de interpretar os sinais vigentes e deixar resíduos que dão a ler algo do passado que escapou aos meus olhos adolescentes, mas também os fragmentos de um espelho a interrogar nosso presente. Ao fabular um Brasil como pastiche de reino europeu e imaginar a saída de seus impasses e misérias através de arremedos de revoluções, tramas palacianas, príncipes bastardos messiânicos e déspotas esclarecidos, a novela da Globo traçou o prelúdio dos anos da dita nova república sob a Constituição de 88, obviamente que valendo mais olhar o miolo do que o desfecho da trama, que conclui apenas uma das direções sugeridas.
De quebra recordei o tempo em que as trilhas acomodavam obras de nota como Espanhola (F. Venturini e Guarabyra), Flecha (Marcos Viana) e Raça de Heróis (Guilherme Arantes). 




Sente o rufar dos tambores
Ouve os metais que anunciam
Um cavalgar de coragem
Todo temor silencia

Nosso reino é assim
Território sagrado
Pra sempre
Resiste em nós

Uma certeza de aço
Sela os portões desse reino
E não há dor nem cansaço
Todo sofrer é pequeno

Nosso reino é assim
Território sagrado
Pra sempre
Resiste em nós

Raça de Heróis
Virá salvar a Terra
Raça de heróis, heróis, heróis

Eis que ao postar o vídeo da última canção (que incorporo logo acima com letra - a partitura com cifra pode ser consultada no site oficial do cantautor, aqui), o amigo blogueiro Túlio Villaça comentou o seguinte:

"Essa música do Guilherme Arantes é muito bonita, mas eu tenho medo dela. Foi feita de encomenda para a novela, mas o subtexto dela é protofascista total."

Ele ainda acrescentou:
"Cara, Que Rei Sou eu era a novela das 7 na eleição do Collor em 1989... Não tenho nenhuma acusação pessoal ao Guilherme Arantes, mas a canção foi a trilha sonora da novela em que um príncipe prometido de uma antiga linhagem vinha salvar o país".

Da primeira afirmação discordei, com a outra basicamente concordei, e considerando a rara oportunidade de expandir uma reflexão a partir dessa provocação inicial, vou procurar sistematizar e fazer alguns adendos ao que redargui, a seguir:

Não tenho medo nenhum. Primeiro, no contexto tanto da criação dela quanto do restante da obra do Guilherme Arantes, não faz sentido esse receio. Ela captura um sentido romântico do século XIX, empregado nos folhetins de capa e espada, e também uma das fontes culturais do nacionalismo que redefiniu o mapa da Europa. Não é por acaso que a inspiração medieval permeia o romantismo do XIX, romances como os de Walter Scott, por exemplo. Há uma idealização daquela época, que também ressurge entre bandas de rock progressivo que influenciaram G. Arantes claramente, como se percebe desde a introdução. O tom épico é alicerçado numa harmonia relativamente simples mas interessante, na melodia cativante e bem urdida numa forma com verso, parte "b" (ou ponte) que literalmente ergue o cálice do santo graal até ser arrematada num refrão inesquecível, em que o arranjo cresce com coro, metais, cordas, teclados. Uma bela canção que serve perfeitamente como tema de ação e aventura ao mesmo tempo que expressa o ethos do grupo de rebeldes populares a quem acompanha, e mesmo assim funciona perfeitamente se ouvida fora desse meio e contexto específicos. Eu tinha visto o G. Arantes tocá-la outro dia em live que promove seu novo disco, A desordem dos templários, e como o amigo Alberto Júnior salientou em comentário do facebook, é um universo "medieval" que o compositor visita com frequência. 

Enfim, os signos da cultura estão sempre em disputa, por isso não podemos perder suas possibilidades polissêmicas. Se o fascismo se apropriou do romantismo - sim - também o fizeram todos os estados nacionais com uma profusão de perspectivas ideológicas, porém comungando a estratégia de identificar povo e terra. Há cartazes britânicos da 2a. Guerra de convocação da população às armas que tem a mesma estética dos nazistas e dos soviéticos, só que representando cavaleiros. Quem derrotou o fascismo na 2a Guerra foi sobretudo o nacionalismo, era muito mais um embate entre nações imperialistas concorrentes que qualquer outra coisa, se formos bem objetivos. E esse sentimento, obviamente, é um rearranjo de vinculos simbólicos entre humanos e territórios que existe desde que as populações se sedentarizaram. O heroísmo é um clichê narrativo que data dos primórdios da humanidade. Se não tomarmos cuidado qualquer representação política dessa relação vira "proto-fascista". Além disso, ela foi lida ali no contexto da redemocratização, a novela como um todo, desembocando num embate entre dois messianismos, o neoliberal do caçador de marajás e o popular reformista do líder sindical. Ela se encaixa perfeitamente no mito politico sebastianista, qualquer messianismo, ou então no imaginário revolucionário, que também não se pode chamar de proto-fascista. Aliás, o príncipe é o cúmulo da fantasia centrista tradicional brasileira, ele é criado entre os pobres, pela dona do bordéu. 
Por fim, não é para causar preocupação, onde uma canção dessa toca atualmente? Eu me preocuparia muito mais com o manancial de odes reacionárias e capitalistas selvagens que marcam presença forte nos gêneros de sucesso amplamente distribuídos pelos meios massivos.








12 de dezembro de 2021

Cobertura - shows que a gente vê por aí: Milton Nascimento e Wagner Tiso acústico para TV Suíça (1980)

 Há um tempo pensei em criar uma série dedicada a comentar e difundir grandes shows que a gente encontra distribuídos por aí nas redes digitais, eventualmente merecedores inclusive de estratégias de preservação mais consistentes. 

Aproveitando o ensejo da data de aniversário do grande maestro Wagner Tiso, figura fundamental na constelação de criadores do Clube da Esquina, decidi começar por esse primoroso show que ele fez ao piano e órgão ao lado de seu inseparável companheiro de aventuras musicais, Milton Nascimento, vulgo Bituca, na voz e no violão. A gravação da TV Suíça traz performances impecáveis de ambos, um repertório espetacular e um entrosamento indiscutível de músicos que cravaram seus nomes em nossos ouvidos, mentes, corações e no panteão da MPB.Vale ver e rever várias vezes. 





12 de novembro de 2021

Gilmortal


 

Este sempre foi um dos meus discos preferidos do Gil, alegria extra tê-lo em vinil. Transpira humor moleque, ousado, desafiador, ressaltado ainda mais pela participação dos Mutantes, certamente no ponto culminante da aproximação deles com o tropicalismo, musicalmente falando.
Há uma saborosa ambivalência na nomeação dele para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Claro, esse jovem iconoclasta aí mudou muito, como tinha que mudar mesmo. Aliás fez da mudança um mote constante de sua arte. A vetusta ABL também muda, mas a passo de tartaruga. Agora os caminhos se cruzaram, como há décadas atrás não seria possível. Não deixa de ser um sinal significativo de disposição pelo encontro, e até uma pitada sutil de autoironia, sempre necessária às pessoas e instituições que desejam alguma forma de renovação. 
Sem deslumbre, vejo com bons olhos (e ouço com bons ouvidos) a "consagração" de um dos nossos principais cantautores como "imortal". Lógico, a ABL busca respaldo e repercussão, sentando em uma de suas cadeiras um representante indubitável da excelência alcançada na canção popular brasileira. Vamos combinar que demorou demais. Acho desnecessário discutir a pertinência da indicação, aliás acho que se a porta abriu tem uma fila bem grande aí de compositores cujo trato com a língua portuguesa à brasileira é inclusive muito mais meritório e relevante do que o dispensado por figuras que já estão lá sentadas. Falar que há politicagem? Redundante. Reconhecendo aliás, o traquejo político de Gil, podemos até esperar que ele lidere nos próximos anos uma disposição interna por abrir mais a instituição, quem sabe aproximá-la um pouco do "dia-a-dia" cultural de nosso país. Capacidade e atenção midiática para tal, ele tem. 
Por fim, ante certos comentários apressados e desmemoriados cabe lembrar que a Casa teve entre seus fundadores Machado de Assis. Logicamente sua composição, ao longo de décadas, reflete sobremaneira o componente de desigualdade social e o traço étnico decorrente da escravidão que por aqui vigorou por séculos, amém. Mas reflete igualmente, desde o início, os conflitos e contradições que disso decorrem. Teve, nos seus primórdios, por exemplo, figuras destacadas do abolicionismo, como Castro Alves, um dos patronos, e entre os fundadores José do Patrocínio, filho de vigário com uma negra mina escravizada. 
Como diz o grande Peter Burke, a função do historiador é "lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer". Ouçamos pois a voz que ressoa desde 1968, para saudar o que há de mais hilário e alegórico na conversão carnavalesca da farda da ABL vestida, em distintos contextos, por Gilberto Gil.  
 



24 de setembro de 2021

Aldir inédito: ventar contra a falta de ar

Acaba de sair o disco de inéditas do grande mestre Aldir Blanc, lamentavelmente tirado do palco da vida pelo pandemônio da Covid-19. A obra póstuma reúne parceiros e intérpretes consagrados  - João Bosco, Sueli Costa, Guinga, Leila Pinheiro, Moacyr Luz,Joyce Moreno, entre outros - e algumas colaborações recentes e até surpreendentes, como a do ator Alexandre Nero, que preparava um espetáculo teatral baseado em canções de Aldir, e com a mão de Antonio Saraiva, musicou um apanhado de ideias trocadas com o letrista. Do volumoso baú do compositor saíram canções inéditas que abarcam sua longa trajetória, dos anos 1970 à atualidade, reunindo desde material já acabado ao que se pode chamar de parcerias póstumas, retrabalhadas pelos diversos parceiros, arregimentados a partir da iniciativa de sua companheira Mary. Os arranjos são de Cristovão Bastos (também parceiro) e Jorge Helder. A arte da capa, feita pelo fenomenal Elifas Andreato, tem design simples que remete às antigas artes da gravadora Elenco nos anos 1960s, mas consegue sobretudo sintetizar o estilo cortante tão caracteristico dos versos de Aldir. Sua verve aguda e lirismo particular afiadíssimos estão mais que evidentes ao longo do disco, completados com a transbordante afinidade e amizade dele com a do leque de artistas que se somaram na proposta. Aldir inédito, para nos lembrar sempre que é preciso ventar contra a falta de ar.  

Todas as faixas, abaixo, e logo em seguida a playlist completa:

1. "Agora eu sou diretoria" (João Bosco e Aldir Blanc) – João Bosco
2. "Palácio de lágrimas" (Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Maria Bethânia
3. "Baião da muda" (Moyseis Marques, Nei Lopes e Aldir Blanc) – Moyseis Marques
4. "Voo cego" (Leandro Braga e Aldir Blanc) – Chico Buarque
5. "Navio negreiro" (Guinga e Aldir Blanc) – Leila Pinheiro e Guinga
6. "Provavelmente em Búzios" (Cristóvão Bastos e Aldir Blanc) – Dori Caymmi
7. "Acalento" (João Bosco, Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Ana de Hollanda
8. "Aqui, daqui" (Joyce Moreno e Aldir Blanc) – Joyce Moreno
9. "Mulher lunar" (Luiz Carlos da Vila, Moacyr Luz e Aldir Blanc) – Moacyr Luz
10. "Outro último desejo" (Clarisse Grova e Aldir Blanc) – Clarisse Grova
11. "Ator de pantomima" (Sueli Costa e Aldir Blanc) – Sueli Costa
12. "Virulência" (Alexandre Nero, Antônio Saraiva e Aldir Blanc) – Alexandre Nero