Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

18 de novembro de 2011

Aula de Música: Viva Zapátria

Tem canções que na primeira audição deixam a marca, que nos emudecem e transformam tudo o que não é seu próprio som em silêncio. Foi assim que ouvi, há tantos anos, numa fita cassete Viva Zapátria (Sirlan/Murilo Antunes) e hoje, ao ver uma postagem do Pablo Castro sobre ela, lembrei de como me senti. Isso é o processo da memória, em que sentidos definidos no íntimo de uma experiência pessoal se entrelaçam definitivamente aos significados compartilhados, pois de modo inequívoco Viva Zapátria é um monumento erguido em letra e música que preserva a lembrança da coragem no enfrentamento da censura e do autoritarismo nos "Anos de Chumbo".
O texto do Pablo: O Brasil tem Tom Jobim, Chico Buarque , Caetano, mas tem também caras capazes de fazer uma música como essa, umbilicalmente ligada à nossa história recente e absurdamente bonita, perene, canção trágica e épica , que selou o destino de seus autores : Sirlan De Jesus e Murilo Antunes ! Se você nunca ouviu, vai se surpreender ...


Pequeno trecho do depoimento do Murilo Antunes ao Museu da Pessoa (confira completo aqui)


"O pau estava quebrando em 68, quando eu fiz minha primeira música, chamada “Super-herói”. E a outra, “Viva Zapátria”, que eu fiz com o Sirlan."



[Em janeiro de 2014, acréscimo do editor]
Quis o destino que algum tempo depois dessa postagem que o meu parceiro Pablo viesse a gravá-la com Sirlan numa circunstância especialíssima, aqui relatada por ele:
Sirlan e Murilo Antunes fizeram uma canção que assombrou Astor Piazolla e o convenceu a participar do Festival da Internacional da Canção , 1972. A ditadura impediu que a música vencesse o Festival, e impôs ao Sirlan uma das maiores mordaças entre os compositores brasileiros, só comparável ao Taiguara.

Felizmente, a canção era forte o suficiente pra atravessar 40 anos incólume e atualíssima. E, mais felizmente ainda, eu, que ajudei a difundi-la em gerações posteriores, tive a honra e a felicidade de cantá-la junto com um de seus autores, Sirlan, no filme "Come se a vida Fosse Música" sobre a obra do letrista e poeta Murilo Antunes.

A letra

Esse meu sangue fervendo de amor

Aterrisam falcões, onde estou?
Carabinas, sorriso, onde estou?
Um compromisso a sirene chamou
Duplicatas, meu senso de humor
Se perdeu na cidade onde estou.

Viva Zapátria, saudou esse meu senhor
Beijos, abraços, ano um chegou
Salve Zapátria, ê, viva Zapátria, ê
Esta cidade foi uma herança só.

Viva Zapátria, saudando o senhor
Horizonte aberto onde estou
Esta América mãe onde estou."

A canção 



O vídeo extraído do DVD"Como se a vida fosse música"

4 comentários:

  1. Antológica. Lembro-me dela tocando no rádio à exaustão. Sirlam, meu vizinho, traduziu musicalmente o clima reinante naquele anos setenta de maneira dramática: uma angústia pairando no ar. Tons diminutos inicialmente, que se resolvem maiores, suavemente ufanistas, anunciando uma aurora esperançosa afinal. Letra genial de Murilo Antunes. Parabéns pelo arranjo e execução. Salve Zapátria,ê!

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    1. Caro Hildebrando
      Suas palavras trazem observações muito pertinentes e também um depoimento precioso. Obrigado e volte sempre!

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  2. Em 1968 essa música participou do Festival "O Brasil canta no Rio ", representando Minas Gerais. A música chama "Caminhada" cantada por Joel de Castro;
    https://youtu.be/aWZyupgE1hI

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    1. Grato pelo link, e se for o próprio Juércio, parabéns pela canção.

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