Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

28 de dezembro de 2011

Título em pauta: uma pequena investigação

Definitivamente, os instintos de um historiador nunca entram em férias. Quando recebi de meu amigo e grande conhecedor dos Beatles Guilherme Lentz a notícia de que o novo álbum de standards de Paul McCartney se chamaria Kisses on the bottom, fiquei curioso. Ainda mais pelas conotações que tal título poderia ter, muito inusitado em se tratando de alguém tão zeloso em ser politicamente correto como o Paul. Como não estou muito ocupado mesmo por esses dias resolvi fazer uma pequena investigação. Matei a charada: o título é extraído da letra (de Joe Young) da 1a. canção do repertório do disco, I’m Gonna Sit Right Down and Write Myself a Letter. Numa leitura ingênua trata-se do verso (bottom) da carta, mas a canção foi banida em alguns estados norteamericanos em 1936, quando foi gravada pelas Boswell Sisters (trio vocal de irmãs criadas nos arredores de Nova Orleans) [para ver a postagem que consultei, aqui]. O Westrow Cooper, do blog que encontrei, atenta para o emprego do duplo sentido nas letras dos musicais da Broadway. Basta lembrar o Let's do it do Cole Porter. O Pedro Munhoz já tinha comentado isso, quando falamos das alterações moralistas feitas pelo Sinatra. No que será que McCartney estava pensando?
Outra curiosidade, a escolha do título do álbum -uma verdadeira arte, diga-se de passagem- foge das fórmulas mais óbvias, e me recordou imediatamente de um outro sacado dessa mesma maneira pelo Paul, Flowers in the dirt(de um verso da canção That Day Is Done), que aliás é dos melhores títulos de disco dele.
(english version)
Em tempo, a versão das irmãs Boswell, provavelmente a gravação que ele ouviu na infância: Link

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