Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Um encontro inevitável entre uma cantora capaz de aliar sutileza e rebuscamento e um ás das harmonias, compositor de pérolas irrepreensíveis do repertório da música popular brasileira. Já estava de alguma forma prefigurado na intuição de Milton Nascimento ao convidá-la para ser a única voz feminina na linha de frente do antológico álbum "Clube da Esquina", cantando “Me deixa em paz” (Monsueto/Aírton Amorim) em dueto com Bituca, numa gravação que alia a contundência elegante do canto dela e o improviso sirênico dele distintivamente combinando o vocalize e as notas do violão.
"— Milton me convidou para um LP que iria fazer, não sabia o que era. Um dia, me ligaram para gravar, exatamente , cantada lentamente como eu fazia, mas com arranjo do Wagner Tiso. Minha participação era algo diferente dentro do “Clube da esquina”, que já era algo que não parecia com nada. Pensei: “Eu cantando isso no meio dessa garotada?”. Mas Milton sabe das coisas — diz Alaíde, que sintetiza sua afinidade com o Clube da Esquina com simplicidade: — É porque essa turma é do sutil, como eu."
Os dois contam um pouco mais sobre o disco e o encontro nessa passagem pelo programa Agenda, da Rede Minas:
A escolha acertadíssima do título, retirado da letra de Aqui, ó (T. Horta/F. Brant), dá a pista do que esperar: a revelação de um tesouro sacro. “Alegria é guardada em cofres, catedrais” - na sequência uma das faixas do disco, Tudo que você podia ser (Lô e Márcio Borges) já dá o tom de um trabalho rebuscado, dedicado, que lança aos nossos ouvidos essa joia que é a interpretação da Alaíde, acompanhada desse mestre das cordas que é Toninho Horta.
Para finalizar, aproveito e assino embaixo o comentário do meu parceiro Pablo Castro:
"Que dignidade de Alaíde, uma das cantoras mais refinadas , com emissão mais delicada e emocionante, da história da MPB. Com mais de 60 (!!!) anos de carreira ! E o Toninho Horta continua sendo esse grande articulador, esse grande ponto de referência entre a música instrumental e a canção, no país e no mundo. Que sorte a nossa tê-los vivos e produzindo !!!"
Um tema que dá muito pano pra manga é o das versões. Há aquelas versões que são basicamente as que são feitas por intérpretes diferentes quando gravam a mesma composição, sem grandes alterações em relação ao andamento, ao estilo de interpretação, ao arranjo, enfim ao padrão geral da gravação. Isso ocorre em geral num curto período de tempo, em que diversos intérpretes gravam uma canção bem sucedida num determinado momento, procurando incorporá-la a seu repertório e esperando sua boa recepção por parte do público. Há aquelas versões que extrapolam essa referência fonográfica e procuram recriar a canção e a gravação que tomam como referência, acrescendo à história da composição novos traços. Muitas vezes são versões que nascem pelo gesto de transportar canções no tempo e/ou no espaço (e nesse caso podem ser, além de versões, traduções), motivado por homenagens, songbooks, participações especiais, pesquisas de repertório, interesses mercadológicos, decisões dos produtores, preferências dos músicos, o que mais for. Há intérpretes que imprimem de forma tão inconteste sua marca que suas versões podem tornar-se mais memoráveis que aquela primeira gravação, e por vezes consagram-se como aquela que servirá de parâmetro pelo qual todas as subsequentes serão medidas. Podemos pensar na versão dos Beatles para Twist and shout, ou em várias das interpretações de Elis Regina para o repertório canônico da MPB. Uma situação ímpar é a dos compositores que se revelam excepcionais "versionistas", capazes de impregnar a canção com sua própria assinatura estilística, de modo muito próximo a uma coautoria. Dentre vários exemplos possíveis, me ocorrem imediatamente Caetano Veloso e George Harrison. Os leitores, se quiserem, podem sugerir outros nomes à lista.
Enfim, são várias possibilidades de abordagem e material abundante que permitiria mil e um estudos, ensaios, pesquisas. Como o gás em final de semestre é pouco vou contentar-me agora com essa pequena incursão, motivada pela postagem do Francisco de Paula, garimpeiro da hora e membro da página do Blog do Clube da Esquina. Ele postou por lá essa versão do conjunto vocal novaiorquino Manhattan Transfer para Viola violar (Milton Nascimento/Márcio Borges), que eu não conhecia ou ao menos não me recordava de ter ouvido. Gravada no disco Brasil (1987), e com a participação do próprio Bituca, ela aparece transmutada numa ode de teor ecológico bizarramente intitulada The jungle pioneer (O pioneiro da selva). Na música não traz grandes inovações, a não ser pela parte central em que a ponte instrumental recebeu letra e que apresenta uns tamborins na percussão, fincados ali como uma espécie de bandeira do Brasil timbrística. A versão da letra (Brock Walsh), além de não traduzir minimamente o conceito expresso na original, é de lavra ruim mesmo, com pérolas do tipo... [quem quiser ler a letra completa, original aquiversão aqui]
"Here where we stand there used to be a forest eu estou bem seguro nesta casa A timber rising endlessly before us minha viola é o resto de uma feira We cleared away that Godforsaken jungle a minha fome morde o seu retrato And in return the Indians adore us brindando a morte em tom de brincadeira
What was mud now is a highway e amanhã mais vinte anos Reaching wide into a prairie desfilados na avenida Horses run, cattle are grazing arranha-céu, ave noturna You would swear, it's Oklahoma (...) no circuito dessa ferida (...)
See in the field my little son and daughter eu estou bem seguro nesta casa Not long ago that ground was under water" comendo restos nesta quarta-feira
Claro que há grandes letristas norte-americanos. Acontece que quando se trata de versar grandes pérolas do cancioneiro brasileiro, via de regra as gravadoras de lá incumbem autores medianos que não conseguem traduzir ou muitas vezes nem tentam, fazem outra coisa, limitada e provavelmente mais palatável ao que imaginam ser o provável ouvinte de lá. Obviamente as versões são importantes veículos dos fluxos transculturais e certamente alguns ouvintes poderão, mesmo a partir de trabalhos fracos, desenvolver maior interesse e procurar as gravações dos compositores, tomando contato com outras músicas populares. Porém são também expressão da assimetria com que se movem esses fluxos e mostram bem como as versões podem ser veículo de estereótipos culturais. Como bônus, deixo as versões da mesma canção gravadas por Quarteto em Cy e Alaíde Costa.