Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
De volta nas paradas! Depois de longo e tenebroso inverno, que já ia adentrando a primavera, o blog retoma a edição da segunda leva de canções geniais do Clube da Esquina analisadas por Pablo Castro, que atualmente acumula a função de apresentador do quadro "Na curva da esquina" na programação noturna da Rádio Inconfidência, emissora pública do estado de Minas Gerais que completa 80 anos em alta [merece uma postagem isso, hein...]. Agora a expectativa é retomar o ritmo e incluir mais a linguagem dos vídeos próprios.
"Apesar de ser muito fã de Guinga, Jobim, Edu Lobo, Francis Hime e toda as vertentes super sofisticadas do pensamento harmônico subjacente à MPB, sempre nutri especial paladar por harmonias mais ingênuas, singelas, sutil e engenhosamente surpreendentes mas construídas com os materiais mais simples, acordes maiores, menores e diminutos, sem aquela profusão de dissonâncias com que estamos acostumados na MPB mais clássica.
Daí eu estar pirando na descoberta da música de Harry Nilsson, um compositor beatleniano de quem os próprios Beatles eram fãs confessos, ancorada muito nessa maneira delicada com que ele conduz surpresas nos encadeamento de acordes e na forma como ele se apóia singelamente em nonas, e sextas, em suas melodias.
Isso , sei lá porque , me lembrou de Tavinho Moura, e fui tocar uma canção dele que nunca havia tocado antes, chamada Viagem das Mãos, gravada pelo Beto Guedes (a batizada como nome do disco! - ouça aqui) , letra característica de Márcio Borges, ecoando o sol girassol com céu carrossel e tudo o mais. A harmonia de Tavinho é a própria viagem das mãos que vão oscilando de modulação em modulação até voltarem estranhamente ao lar, de onde logo se quer partir ... A música tem tantas imagens e paisagens que torna a pobreza visual e técnica do vídeo a seguir um lapso perdoável. A cifra dessa música é uma encrenca."
Pablo Castro
Viagem das Mãos (Tavinho Moura e Márcio Borges) Céu carrossel, a roda-ciranda
Enrola teu ser ao meu
Vejo passar o véu da manhã
Tão cristalina luz
Ilumina
Sol, girassol e tudo mais
Tudo por ti
Cigana, meu mal
Rodando a saia
Viagem das mãos
Sapateava meu coração
Céu, carrossel, a roda-cigana
Enrola teu ser ao meu
Tanto lugar
Viagem das mãos
E no limiar do cais
De teu corpo
Concha de mar salina
Não pode ser
Melhor nem pensar
Mas como é sentimento real
Depois talvez o tempo dirá
Céu, carrossel, a roda-cigana (etc.)
Concha de mar salina
Não pode ser
Melhor nem pensar
Mas como é sentimento real
Depois talvez o tempo dirá
Pra fechar, bela versão do disco Cruzada (2002), do Tavinho Moura, com preciosa participação da Marina Machado.
Tempo de férias é tempo de dedicar um pouco mais de atenção ao blog. Tirar a poeira aqui e ali, arrumar links quebrados, pensar em novidades, retomar ideias que a falta de tempo não permitiu levar adiante. Enquanto isso vão pintando postagens sugeridas por conversas ou navegações internáuticas, como por exemplo o comentário que segue, do meu parceiro Pablo Castro, sobre as "canções irmãs".A curiosidade extra é que a inspiração foram canções compostas por compositores irmãos [o que pode vir a ser tema de outra postagem]. Obviamente a grande amizade entre parceiros ou companheiros de banda pode ser vista como uma forma de irmandade também, o que certamente é verdadeiro para todos os que estão mencionados no comentário:
"Lô e Márcio Borges fizeram uma espécie de sequência da balada Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, chamada Onde a Gente Está, com o mesmo tipo de abordagem.
Adoro canções irmãs. Os Beatles fizeram muitas vezes isso. George fez Here Comes The Sun e depois Here Comes the Moon, While My Guitar Gently Weeps e depois This Guitar Can´t Keep From Crying.
Paul fez Yesterday e depois Tomorrow, Blackbird e depois Bluebird. Caetano fez Você é Linda e depois Você é Minha. Gil foi além : Refazenda, Refavela, Rebento, Realce, e também Extra e Raça Humana. São canções irmanadas. São como côncavos e convexos. "
Lô Borges, Márcio Borges e Wanderson Eller em intervalo de show de Lô no Circo Voador. Rio de Janeiro, RJ - 1986. [Acervo Museu Clube da Esquina]
Acabei fazendo uma playlist com a maioria das citadas para acompanhar a leitura.
Enquanto preparo o texto a ser apresentado no no XII Congresso da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular (IASPM) Seção Latinoamericana, a ser realizado entre os dias 7 e 11 de março de 2016, na Casa de las Américas em Havana, Cuba, vou encontrando material de arquivo que se encontra fartamente distribuído pela internet, ainda que não nas melhores condições de áudio e vídeo.
O trabalho, em co-autoria com o músico e mestre pelo PPG em Música da UFMG, Marcos Sarieddine, e o granduando em História pela UFMG Húdson Públio, bolsista IC CNPq do projeto "Patrimônio Urbano e Música Popular", intitulado“Mesmo assim não custa inventar uma nova canção”: o Clube da Esquina e a Redemocratização no Brasil (1978-1985), versa sobre a participação de músicos populares na construção de caminhos em direção à redemocratização do país, num vasto leque que vai da criação cancional, dedicada a reavaliar a experiência social dos duros “anos de chumbo” e advogar a retomada das liberdades e direitos, à sua participação na re-ocupação do espaço público, pela realização de concertos integrados a campanhas fulcrais (Anistia, Diretas Já), pela articulação a movimentos sociais e atores coletivos da sociedade civil engajados no restabelecimento da democracia, evidenciada tanto em sua atuação como músicos como quanto figuras públicas.
É particularmente notável a participação, no período compreendido entre 1978-1985, dos músicos associados à formação cultural denominada Clube da Esquina (GARCIA, 2000), encabeçados pela figura emblemática de Milton Nascimento, nas atividades públicas e na produção musical que associamos aqui ao período de redemocratização. Canções tão diversas como Credo (1978), Sol de Primavera (1979), Todo Prazer (1981), Coração de Estudante (1983-1984), ou projetos grandiosos como a Missa dos Quilombos (1982), demonstram o profundo envolvimento desses músicos com os dilemas culturais e políticos de seu tempo, bem como a capacidade da música popular entranhar-se na experiência social, constituindo-se como lócus privilegiado de expressão de estruturas de sentimento, posições sociais e projetos políticos compartilhados.
É nesta perspectiva que propomos um estudo que capte, aliando a investigação histórica que insere as obras em seu contexto de produção e reúna para análise registros documentais diversos (entrevistas, resenhas críticas e fonogramas, principalmente) aos estudos de música popular atentos às escolhas e invenções estéticas que os criadores protagonizam sem estar descolados de seu contexto social e histórico. Além da participação emblemática em concertos, da atuação pública com forte vinculação aos movimentos sociais, pretendemos identificar em suas criações da época o balanço histórico do que se passara e a propensão por ensejar, numa reivindicação de caráter utópico na conotação plenamente política do termo, a expectativa e o desejo pela novidade embutida na abertura paulatina do regime e na perspectiva de viver um tempo regido por outra ordem, democrática. Retomar essa obra invoca o sentido pleno do pensar com a História, uma vez que nos confronta com os significados e perspectivas sonhados e vividos na construção da democracia.
Aí me deparo com alguns trechos de um programa especial de TV realizado pela Globo em 1982. Mesmo com os problemas de qualidade da imagem e do som, conseguimos experimentar a intensidade e a beleza da obra de Milton Nascimento e seus parceiros. No primeiro trecho, que parece ter sido muito editado, resta de mais consistente a parte final, em que Milton canta acompanhando-se ao violão Minas (Novelli) em frente a uma igreja barroca em Congonhas, e enquanto essa belíssima, melíflua ode às terras mineiras caminha para fade out, ele recita o texto Oração, de Fernando Brant, originalmente elaborado para o espetáculo O último trem, do grupo Ponto de partida. Mais uma vez Brant dialoga com a tradição religiosa católica tão presente na história do estado, novamente apropriando-se da oração Pai Nosso como já fizera em Feira Moderna. Não há sátira mas há um gesto transgressivo, ainda que não destitua completamente. Deus existe, mas não está aqui. Nesse tom que em outros tantos momentos da parceria M.Nascimento e F. Brant podemos encontrar, não há descarte da transcendência e do divino, mas há denúncia e recurso ao cotidiano, ao carnal, ao humano.
Pai nosso que não estas aqui Sacrificado é o vosso povo Humilhados e ofendidos são os nossos homens Deserdados e famintos são os nossos filhos Feridos e estéreis são os nossos ventres Aqui, na terra. O pão nosso de cada dia A alegria nossa de cada dia O amor nosso de cada dia O trabalho nosso de cada dia: Venham a nós, voltem a nós De trem, de carro ou navio. Não nos deixei cair em lamentações Mas livrai-nos desse vazio.
O outro trecho que destaco traz Milton (voz) e Wagner Tiso (piano) levando Tarde, parceria do primeiro com Márcio Borges (composta em torno de 50 minutos, com a impressionante média de 1 acorde por minuto, num programa de televisão, a partir do mote “Não peço mais perdão” sorteado de um envelope), e foi gravada originalmente no LP Milton Nascimento de 1969 (aquele da igrejinha). Uma canção muito solene, para não falar tristíssima, que já mereceu interpretações marcantes de ases como Joe Pass ou Wayne Shorter. O recurso de emparelhar a desilusão amorosa e a dureza dos anos de atmosfera plúmbea, encontra nesse outra curva da História uma significação nova. Pois o desejo de sair das sombras, expresso em 1969, ganha em 1982 contornos bem diversos, alinhavados na exploração da câmera que registra Milton e Wagner na paisagem de Brasília. Milton declama um texto introdutório, exaltando a cidade, sua arquitetura (citando Niemeyer) e destacando justamente o Memorial JK nesse trecho do discurso. Em 1969 renascer da solidão, encontrar sentido de viver, superar o sofrimento, era de uma enorme urgência, mas ao mesmo tempo dificílimo, improvável – E mesmo se a dor encontrar – não pedir mais perdão ecoa a resolução de ser resiliente, aguentar o tranco. Em 1982 ela se volta para o futuro – Brasília é uma cidade como um avião, que ainda aguarda “desempenhar seu verdadeiro destino”. A interpretação de Milton, ainda que carregada de sentimento, é ligeiramente mais solar, como se correspondesse ao sol de fim de tarde que compõe com o céu nublado o pano de fundo da apresentação. A resolução da canção, em letra e música (não peço mais perdão/ porque já sofri demais), se estende tanto no vocalise final quanto no arranjo de piano, e o tom solene dá lugar a um breve vôo pássaro que a câmera sagazmente dirige à estátua do ex-presidente JK em bronze, de 4,5 m, esculpida por Honório Peçanha. É como se a voz e o olhar, simultaneamente, mirassem o futuro, divisando uma imagem representativa de um ideal de democracia que despontava no horizonte. Mas, inevitavelmente nos ocorre, a cidade voltada par o futuro parece já carregada de passado.A arquitetura modernista, que adentrara o imaginário nacional prometendo descortinar o amanhã à vista dos brasileiros, converte-se em tradição (moderna tradição, se quisermos retomar a grande sacada de Renato Ortiz), e JK no seu messias às avessas. Em 1969 restaurar a democracia significava parar de ter saudade do que era um tempo bem recente, de poucos anos no passado. Em 1982 o Golpe já tinha 18 anos! O futuro não realizado de Brasília, parece mais um futuro passado, de repente mal-passado, como de fato revelou-se em poucos anos com a derrocada das Diretas e o arranjo conservador que garantiu a transição democrática sem sobressaltos. Quando pensamos em como uma canção se move no tempo, é preciso considerar mais que apenas a mudança de contexto. Ela pode ser resignificada por uma nova execução, uma outra audiência, por variados detalhes da performance, pelo meio em que está circulando (em nosso caso, por exemplo, um programa de televisão da Rede Globo), uma associação com outros elementos estéticos (como no caso, o vídeo).
Naquele momento, certamente as nuvens se dissipavam mas havia muitas incertezas, convivendo com grandes expectativas. Sem saber exatamente para onde ia a estrada, mas com muita paixão, talvez um pouco mais de fé cega e um pouco menos de faca amolada, a obra de Milton Nascimento, especialmente na parceria com Brant , desse período em diante bem mais volumosa do que com os demais compositores do trio chave de letristas do Clube, Márcio Borges e Ronaldo Bastos, sinaliza essa acomodação, e talvez seja esse mais um dos motivos de ter sido a que melhor expressou no âmago o sentimento em suspenso desse momento em que se buscava o dia de amanhã mas sem virar devidamente as páginas do dia de ontem.
Ontem, uma noite memorável para comemorar a conclusão de um semestre muito atípico, mas com as suas recompensas. Depois de um dia longo de trabalho e um nó górdio no "sistema" que dei e obviamente não posso desfazer por minha conta, fui ao Palácio das Artes/Sala Juvenal Dias para assistir a ousada performance - que teve sopro, terra, televisão, vídeos mucho locos, mas, sobretudo, fortes canções, lindas interpretações e extrema musicalidade - de uma dupla Kristoff Silva + Thiakov Davidovich que não seria suficiente chamar de dinâmica. Se Quentin Tarantino receber minhas ondas telepáticas e fizer um futuro longa no Brasil, eles estarão na trilha e no elenco. Não poderemos viver mais sem o Dois na quinta. Parabéns tb ao BDMG, que banca. Quando um banco faz algo de bom nesse mundo, é pra elogiar.
Pensam que acabou? Não, tava só começando...
Dirigi-me em seguida para Santa Tereza, capital mundial do Clube da Esquina, para assistir ao meu parceiro e grande amigo Pablo Castro desfiar, por algumas horas em que o tempo ficou suspenso, seu repertório impecável de canções do Clube, umas 35, segundo contas, entre antenas como Travessia ou Amor de Índio a lados B ou além, como Como o machado, a que ouvi cantando de olhos fechados, literalmente tomando por sua beleza estranha e única. Foi no QG/bar do museu do Clube da Esquina, para o deleite de um público completamente devotado a essa obra grandiosa, e também para o de nosso admirado Márcio Borges, cuja empolgação é uma tradução cabal da perenidade e vitalidade do que o Clube representa para as gerações seguintes. No intervalo fomos ali esticar as pernas e trocar uma ideia, uns reles metros acima de uma certa esquina. Acho que dá pra imaginar, é literalmente ficar entre o Divino e o Paraíso.
No
segundo tempo, teve também a ótima participação do Fred Borges, dividindo as
vozes com o Pablo em mais uma leva de pérolas do Clube.
Mas tem um bônus que eu não posso
deixar de mencionar, a grata surpresa de ver este blog, citado pelo Pablo na
matéria sobre o show feita pelo Estado de Minas, no contexto da Semana do Clube
da Esquina:
"Pablo Castro está tão ligado
aos artistas mineiros, que escreveu a apresentação dos songbooks de Lô Borges e
Beto Guedes, em 2013. Em parceria com o professor da UFMG Luiz Henrique Garcia,
realizou a série As 30 mais geniais do Clube da Esquina, um conjunto de textos
no qual comenta composição, harmonia, letra e referências de cada uma das
canções. A série está disponível no blog www.massacriticampb.blogspot.com.br
e já virou até referência bibliográfica." [matéria completa, aqui]