Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

30 de janeiro de 2014

Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 1a. parte

Depois do estrondoso sucesso de público e crítica da primeira lista das 30 mais geniais do Clube da Esquina, acalentávamos, eu e meu grande parceiro Pablo Castro, a possibilidade da realização de uma nova série, com outras 30 canções que fazem parte desse inquestionável patrimônio cultural brasileiro e mundial, certamente de lavra tão preciosa quanto suas 30 antecessoras. Finalmente as condições se reuniram nessa última passagem de ano e demos início à empreitada, ele na condição de autor e eu de editor exclusivo [minhas poucas notas virão em negrito com a indicação n.e.], inserindo essa nova leva no bojo de um projeto de pesquisa sobre Patrimônio Urbano e Música Popular [para conhecer melhor o projeto, clique aqui] que conduzo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com apoio de sua Pró-Reitoria de Pesquisa (PRPq). Considero que a lista, bem como sua irmã mais velha, envolvem uma dimensão fundante da constituição de um patrimônio cultural, que é a constituição do conhecimento sobre o mesmo e sua difusão. Ao mesmo tempo, atende uma demanda cada vez mais premente no cenário cultural de nosso tempo, aquela pela apreciação crítica, pela abordagem aprofundada e consequente da criação artística e, especialmente para nós, da música popular e a vertente que a ambos autor e editor mais interessa e envolve, a canção. Para tais objetivos são precisos a análise fina, sensível e bem informada, a concisão e o didatismo bem dosado que esclarece o leigo sem deixar de ser estimulante a quem já detém maior conhecimento sobre o assunto. Qualidades que estão presentes na primeira lista e que novamente aparecem nesta, quiçá até refinadas. A proposta editorial permanece como antes, em blocos de 5 canções, que serão periodicamente lançados no blog e depois reunidos em uma página especial. Tudo isso dito, com grande satisfação o Massa Critica MPB oferece aos leitores, Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro. Deleitem-se sem moderação. 





1. Beco do Mota

Chico Amaral cita em seu livro crucial sobre a música de Milton Nascimento que a primeira canção sua que se lembra ter escutado foi Beco do Mota , que lhe parecia uma estranha forma de música pop , tocada por uma turma numa roda de violão num buteco.  Nada mais mineiro do que uma roda de violão num buteco, aliás.
Curioso que tenha sido essa parceria entre Milton e Fernando Brant, sobre um tal beco que era a zona da cidade de Diamantina, depois desocupado por pressão da sociedade católica mineira.  Particularmente feliz é a dicotomia procissão / profissão, dialética aliterada entre a repressão moral (e a consequente dominação social ) entre grupos de “homens e mulheres”. Esse despojamento, em particular, ecoado em San Vicente, dos mesmos autores, só que em ordem invertida  (“ as mulheres e os homens” ) como que evidencia o véu social que constitui um recalque e um dispositivo de poder, repressão, coerção e dominação. Despidos das estranhas romarias, o que resta são homens e mulheres na noite. “Hinos de estranhas romarias” são “sons rasgando a noite escura”  , “clareira na noite “ , “profissão deserta” , “ fundo escuro beco “ .
A prostituição, aqui referida como “profissão”, deixa, mais do que um rastro, um cheiro,  um corolário de lembranças sociais que permanecem como signos de um desiquilíbrio fundamental, um conflito latente. Ao mesmo tempo, delineia-se um aspecto crucial  na obra do Clube da Esquina, que a essa altura se resumia à “pá” de músicos-amigos que participavam do segundo disco de Milton no Brasil, de nome apenas Milton Nascimento [EMI-Odeon, 1969, n.e.] (que é conhecido também como “o da Igrejinha”): a articulação entre religiosidade e crítica sócio-política, alinhavada por soluções musicais do nível de síntese que só Bituca poderia realizar.
O canto greogoriano em modo frígio já aponta na direção meio medieval da “estranha romaria" , pra dar lugar a uma levada semi-pop com baixos invertidos entre subdominante e dominante na seguinte sequência :
{F/C  /  % / G/D  / } { F/C  /  % / C /} { C / % / G/B / } {Am7 / C7(9)(11) / % }
Reparemos que os versos são cantados em  4 trechos de três compassos,  cujos acordes grafei acima. Isso já é um procedimento distintivo, nada ordinário, porquanto a música popular carrega em si arquétipos que tendem sempre mais a grandezas binárias, ainda mais num ritmo quarternário, como é essa música. Destaque também é a orquestração lírica, em uníssono, aqui de Luiz Eça.
Por falar em ritmo, vemos aqui uma alternância de levada rítmica das mais expressivas, quando o roque lento (mas incisivo, com destaque para o baixo sincopado de Novelli ) do estribilho dá lugar, sob o mesmo pulso, a uma marcha-toada (na falta de uma definição melhor), acelerada, como se aludindo a um fluxo mais denso de pensamentos, memórias, reflexões , ilustrando os ícones pedra-ponte-pedra-aviso-água-fria descritos assim, como em poema concreto, até que o povo se dissolva, na clara praça, em Lá menor, relativo da tonalidade principal da música.
A canção é, no fim das contas, em Dó Maior, com a participação especial de Dó Suspenso, flertando com o mixolídio.  Mas a tonalidade demora a se firmar, pois Bituca brinca com as ambigüidades tonais com grande facilidade, e simplicidade.
Beco do Mota sintetiza muitos dos interesses e das camadas de significados (Beco, Diamantina, Minas, Brasil ) do que poderia se chamar uma música mineira universal. 


Clareira na noite, na noite
Procissão deserta, deserta
Nas portas da arquidiocese desse meu país
Profissão deserta, deserta
Homens e mulheres na noite
Homens e mulheres na noite desse meu país

Nessa praça não me esqueço
E onde era o novo fez-se o velho
Colonial vazio
Nessas tardes não me esqueço
E onde era o vivo fez-se o morto
Aviso pedra fria
Acabaram com o beco
Mas ninguém lá vai morar
Cheio de lembranças vem o povo
Do fundo escuro do beco
Nessa clara praça se dissolver

Pedra, padre, ponte, muro
E um som cortando a noite escura
Colonial vazia
Pelas sombras da cidade
Hino de estranha romaria
Lamento água viva

Acabaram com o beco...

Profissão deserta, deserta
Homens e mulheres na noite
Homens e mulheres na noite desse meu país
Na porta do beco estamos
Procissão deserta, deserta
Nas portas da arquidiocese desse meu país
Diamantina é o Beco do Mota
Minas é o Beco do Mota
Brasil é o Beco do Mota

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2. Cais


Essa canção, contraface de Um Gosto de Sol, ambas de Milton e Ronaldo Bastos, é uma das mais emblemáticas obras do gênio trespontano. Porque, em primeiro lugar, a metáfora da viagem como lançar-se sem amarras rumo ao desconhecido tem inúmeros exemplos no cancioneiro do Clube da Esquina, mas nunca antes ou depois ilustrada por imagens tão densas e representativas dessa delonga que espera satisfação; “Eu queria ser feliz“, demora que faz o viajante tecer dentro de si sua própria trajetória: “invento o mar, invento em mim o sonhador”. Mais ainda, a letra tem ressonâncias significativas no que tange ao papel polarizador do Milton no contexto da música mineira da época: “Para quem quer me seguir, eu quero mais, tenho um caminho do que sempre quis, e um saveiro pronto pra partir”.
A agonia, a hesitação e a partida são os tripé sentimental da música, que, em Dó Menor, exibe empréstimos do modo frígio [ Db7M/C  e Bbm7(9) ] , acordes menores , como o quinto grau modal de Dó Menor, Sol Menor, em inusitada alternância.  O sabor dionisíaco da lua nova a clarear, em Sol Menor, prepara a volta a Dó como resolução da energia acumulada e suspensa que caracteriza o estado de espírito do narrador.
O ritmo é interessante:  temos um lento e vago 6/4 , onde a voz já entra no primeiro compasso da primeira estrofe, que tem o número ímpar e primo de 11 compassos, 9 com duas exposições de Cm7(9) e Cm6(9) como ponte ; em seguida, uma breve ponte de 4 compassos ( “eu queria ser feliz") , extraída ela mesma de uma sessão interna da estrofe, e uma segunda e última estrofe que desemboca na coda instrumental final.
A coda instrumental se revela, de fato, outra peça composicional, em sua nobre mudez melódica, enfatizando o sentimento soturno e épico de algo indizível, em tríades repetidas e marteladas de Dó menor com baixo descendente, seguindo a Fá Menor (subdominante) , Si Bemol suspenso ( Dominante do relativo) , Mi Bemol Maior ( relativo ) , Lá Bemol e , no fim, o acorde de Dó sustenido com Sétima e Quinta Aumentada, formado a partir da desorientadora escala de tons inteiros. 
Todos esses sentimentos se imbricam de forma notável nessa pequena fábula sobre a quebra das amarras e o mergulho no desconhecido, que tanto perpassam a obra do Clube da Esquina





Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar

Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador

Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar


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3. Amor de Índio


Amor de Índio foi o primeiro grande sucesso de Beto Guedes, e não é difícil entender por que. Essa canção amalgamava a receita equilibrada que ele tinha logrado apurar desde suas primeiras aparições do disco Clube da Esquina e do Tênis [Lô Borges, EMI Odeon, 1972, n.e.] e sua estréia no disco coletivo com Toninho, Danilo Caymmi e Novelli.  A balada em 12/8, sua marca, aparece aqui em cores casuais, com Robertinho Silva delicadamente conduzindo em seus chimbaus  a base de piano ( Wagner Tiso) e baixo elétrico ( Beto Guedes), pontuadas já de cara pela guitarra abelhuda do compositor e a jazzística e inconfundível de Toninho Horta. Maravilhosa é a dicotomia entre os dois guitarristas na coda final em agudo paroxismo roqueiro, difícil de imaginar pelos primeiros compassos dessa balada suave em Lá Maior, com uso intensivo do acorde bossanovístico de Lá Maior com Sétima Maior e Nona ( A7M(9) ).
Nesses tempos de perseguição aos índios, é bom lembrar que a década de 1970 viu uma valorização do índio muito significativa na música popular, como provam as canções Um Índio (Caetano Veloso), Promessas do Sol ( Milton e Fernando Brant) , Imyra Tayra Ipy (Taiguara), entre outras.  O Amor de Índio aludido na letra é aquele natural, despido dos estritos enquadramentos sociais das culturas judaico-cristãs, que se identifica com os signos da natureza, com a contracultura, do amor livre, de todo um ideário que, a despeito da não transformação das estruturas sociais almejada pela juventude subversiva dos anos sessenta , representou um avanço comportamental, uma desconstrução de amarras sociais retrógradas em bases mais livres. Ronaldo Bastos encontra, de fato, o tom mais equilibrado em que fundir um deslocamento político cultural no que seria só mais uma canção de amor.
Só mais uma canção, não, uma grande canção, que carrega os traços de um clássico na melodia consistente, (cujos primeiros versos têm a seguinte fraseologia:  a, a´, a´, b, a , a´, c ); cabe aqui ressaltar a inteligência e a economia dessa melodia, que, a partir de uma terceiro motivo melódico (“enquanto a chama arder, todo dia te ver passar" ) se constroem frases filhas desta, como (“abelha fazendo mel, vale o tempo que não voou“) que seriam, respectivamente, as d  e d´ , e repetem-se mais uma vez (“a estrela caiu do céu , o pedido que se pensou “), acumulando tensão e energia, para desaguarem em mais uma repetição melódica, mas desta feita sobre outra base harmônica (“o destino que se cumpriu , de sentir seu calor e ser todo” ) d e d´´, uma outra variação da mesma frase melódica;  e , por fim, na forma distintiva, em que temos a estrofe com 14 compassos, sendo reexposições  da mesma melodia primeiro em 6, depois, acrescida da repetição do última frase, 8  compassos , enquanto a ponte (“o destino que se cumpriu”) , modulando ao relativo da tonalidade principal, passa a exibir a quadratura normal, de 8 em 8.
A harmonia na verdade é um simples passeio pelo campo harmônico de Lá Maior, mas sempre com dissonâncias. Temos a alternância de I e IV , (tônica e subdominante) , só que A7M(9) e D7M(9)/F# , ou seja, já um baixo invertido, traço predileto do compositor.  No proto-refrão temos a aparição do relativo F#m7, seguido de C#m7, e Bm7, assim como E7(9)(11), todos muito bem na tonalidade de Lá, mas também na de seu relativo. Muito elementar e absolutamente marcante como se dá a fusão de um discurso harmônico como esse que caberia num samba, num bolero ou numa bossa-nova com o acompanhamento feroz, caudaloso, da instrumentação e , claro, da voz brilhante do falseto de Beto, em alta tessitura e contagiante interpretação.


Tudo que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo o cuidado
Meu amor
Enquanto a chama arder
Todo dia te ver passar
Tudo viver a teu lado
Com o arco da promessa
Do azul pintado
Pra durar


Abelha fazendo o mel
Vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor
E ser todo
Todo dia é de viver
Para ser o que for
E ser tudo

Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado
Meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do seu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver


No inverno te proteger
No verão sair pra pescar
No outono te conhecer
Primavera poder gostar
No estio me derreter
Pra na chuva dançar e andar junto
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser todo
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4. Morro Velho

Milton em raro papel de letrista, além de compositor, conta aqui uma história, uma narrativa. Convém ressaltar que são raras suas canções com narrativas, mais ainda detalhadas, como essa, muito embora a imagem de viagem, de travessia, se apresente desde o início de sua carreira. A história dos dois meninos amigos de infância, mas um, filho do patrão, outro, do empregado, separados pelos extratos sociais a que pertencem já é, em si, tocante, no que desvela a impossibilidade de comunhão de vida, de papéis, de lugares sociais, mesmo a amigos inseparáveis que nasceram e cresceram na mesma fazenda.  De fato, a introdução do violão, com baixo pedal em Mi, no que se revela um acorde de Lá Maior, é conduzida pelo delicado contraponto de duas notinhas agudas, cada qual representando um menino, que vão se distanciando lentamente um do outro, denotando, através de sua relação, uma série de acordes subjacentes.  Esse tipo de artifício extrai sua força de uma aparente ingenuidade até mesmo rudimentar, enquanto conduz a narrativa harmônica a um lento resolver de tensões, num acorde maior que soa, ainda assim, melancólico.
Na levada, uma das hibridizações do que era descrito então como toada moderna, assim que a letra começa e a voz de Milton lembra do sertão da sua terra.  Aqui um dos eixos da sua pesquisa harmônica se mostra claramente, como diz Chico Amaral, quando a tônica maior se mistura muito facilmente com a tônica menor, e com acordes emprestados do mixolídio e do lídio, dando um sabor modal a várias passagens, mas tudo isso imbricado num discurso que é, em última instância, tonal. Na segunda parte, temos a aparição do relativo F#m7(11), alternando com a tônica Lá, mas em tonalidade menor. Outra inovação de Bituca.
E, além de tudo, e antes de tudo, claro, uma melodia, angulosa, pouco consistente, (a, b, c, b, d , d´, e , f , f´, f´´ ) e mesmo assim de fácil memorização, tal o seu equilíbrio,  e uma forma clássica, com uma introdução de  8 compassos,  estrofes de 14 compassos ( 8 + 6 e, entre as duas primeiras estrofes, a volta da intro) e uma segunda parte de 17 compassos ( 16 + 1 de preparação para a volta) em “não me esqueço, amigo, eu vou voltar “ , promessa destinada a ser cumprida e quebrada a um só tempo, porque volta “outro” ; e , por fim a última estrofe , quando os caminhos dos dois amigos de infância já são inconciliáveis, seguida de uma última exposição da introdução, espécie de amuleto resignado e tristonho dessa saga humana.
Morro Velho foi gravada por Elis Regina, Tamba Trio, Nana Caymmi, e uma infinidade de releituras que provam a grandeza dessa canção inocente do nosso Bituca. Ela já figurava entre as prediletas pessoais dele mesmo, e compartilhava a idéia da introdução em baixo pedal no violão com Travessia, que acabou se revelando uma música ainda mais reverenciada. Mas Morro Velho não fica nada a lhe dever.



No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu
Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada

Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada, conta histórias prá moçada

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará

Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar
Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha

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5. Nuvem Cigana


Esse proto-rock mineiro com subdivisões ternárias, ou simplesmente um shuffle, como diria mestre Marcos Gauguin, foi feito por Lô Borges e Ronaldo Bastos para o disco Clube da Esquina, em 1972 [mais tarde Lô a regravaria para dar título a seu 3° disco solo, em 1981, n.e.], e já se tornou um ícone da produção cancional de ambos.  Nuvem Cigana veio a ser o nome de um movimento de poesia marginal de que Ronaldo Bastos fazia parte, além de ser uma tradução perfeita daquela música onírica e surrealista, mas ainda assim incisiva, dura, que o Clube fazia àquela altura dos acontecimentos da Música Popular Brasileira.  Essa síntese híbrida se revela logo na introdução de viola de 10 cordas, por Beto Guedes, um instrumento nada comum em qualquer coisa ligada ao rock, não como ícone da música caipira, como tinham feito Os Mutantes em 2001, mas como um instrumento qualquer que pudesse acompanhar aquela melodia meio vaga e harrisoniana (aludindo ao compositor invisível dos Beatles) que Lô tinha feito.  Milton entra tocando um piano discreto, Toninho Horta no baixo, Lô toca a guitarra sublinhando cada nota da melodia vocal, e a orquestração de Wagner Tiso, perfeita, como que massageando a mente de um náufrago psicodélico já em estado avançado de transe.

Vejamos como Lô suscita esse transe numa forma que é toda enquadrada em quadratura : 8 compassos cada estrofe, 12 compassos o refrão, em três repetições da mesma frase (“ se você deixar o coração bater sem medo”), o que caracteriza um procedimento bastante corriqueiro . O deslocamento na verdade é proporcionado pelas sucessivas mudanças de modos ( escalas subjacentes à melodia vocal e à cadência harmônica) em baixo pedal de Sol. Para o leigo, o baixo pedal é justamente aquela nota grave que se mantém durante quase a música inteira , enquanto outras notas na harmonia vão mudando.  Enquanto esses acordes vão mudando, temos , basicamente três modos vão se alternando : o lídio, o mixolídio e o menor, no refrão.  A influência dos Beatles se faz presente na adoção da quarta aumentada durante o refrão, uma nota muito incisiva em clima blue, que é repetida no refrão.  E, como já mencionado, reverbera as melodias no contratempo de canções como If I Needed Someone, Taxman, I Want to Tell You e Only a Northern Song [todas de George Harrison, n.e.], onde os ataques melódicos se dão contra o pulso da levada rítmica.

A letra quase toda na condicional (se você quiser ..., se você deixar... se você dançar) denota um caráter de  sedução, de mistério, de convite ao desvelar transcendente de múltiplas formas de nuvens ciganas, nos cabelos verdes, no pó da estrada, sol sereno, ouro e prata, sol semente, madrugada, e a dança como ponto alto desse acasalamento surrealista a que o narrador parece aludir. Clássico, standard do Clube da Esquina.


Se você quiser eu danço com você
No pó da estrada
Pó, poeira, ventania
Se você soltar o pé na estrada
Pó, poeira
Eu danço com você o que você dançar


Se você deixar o sol bater
Nos seus cabelos verdes
Sol, sereno, ouro e prata
Sai e vem comigo
Sol, semente, madrugada
Eu vivo em qualquer parte de seu coração


Se você deixar o coração bater sem medo

Se você quiser eu danço com você
Meu nome é nuvem
Pó, poeira, movimento
O meu nome é nuvem
Ventania, flor de vento
Eu danço com você o que você dançar


Se você deixar o coração bater sem medo
Se você deixar o coração bater sem medo
Se você deixar o coração bater sem medo