Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

5 de maio de 2015

Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina - 12. Luz e mistério

Um pouco de poesia nesse outono de trevas :
Continuando a minha saga da Lista Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, abordo agora a clássica balada andina Luz e Mistério, de Beto Guedes com letra de ninguém menos que Caetano Veloso. Dois leoninos, por sinal. 
Beto conduz mais uma de suas experiências sonoras em 6/4 , uma espécie de valsa animada por vigorosas subdivisões que refutam qualquer placidez e tranquilidade em troca de uma incandescência apaixonada, reverberada em letra romântica e onírica do mestre baiano. Cabe aqui um parênteses curioso, porquanto Caetano recorre ao mesmo tipo de temática abstracionista e icônica de Ronaldo Bastos e Márcio Borges, repleta de imagens como luz, mistério, estrada, luar,  sombra, como que a confirmar que essa abordagem seria a única adequada ao determinado tipo de procedimento harmônico-melódico que os cancionistas do Clube da Esquina traziam à MPB, refutando, assim, críticas que enxergavam um aspecto demasiado vago em suas letras, uma vez que as melodias apontavam justamente para essa direção. Em Léo, de Milton e Chico Buarque, também podemos notar essa interessante interseção estilística. 
Por outro lado, é revelador notar que Caetano faz uso desse simbolismo em letra romântica, que , na proposta clubeira, era raridade, pelo menos até a década de 80. Letras de amor romântico não eram, decididamente, a preocupação central do Clube da Esquina. Entretanto, quando elas surgiam, davam o recado com uma originalidade inquestionável.
Com uma forma simples de um A e um B, embora este repetido três vezes, e uma coda, a canção se nutre de rica melodia em graus conjuntos e saltos, desenhando o sentimento passional do narrador. A harmonia do A, e que predomina na música , é decididamente em Ré Maior, com sutis inversões de baixo e tardia chegada no acorde tonal. 12 compassos, divididos em 2 repetições de 6, tipo de forma muito ligada ao blues(!) , dão lugar a variedades métricas da predileção de seu compositor na parte B, uma espécie de refrão. 
O luar do refrão aparece em Lá Maior, no modo lídio ainda por cima, com a quarta aumentada, e em lugar no normal 6/4, temos três compassos de 7/4, com ênfases ternárias, seguidos de um 3/4, da primeira vez. Já da segunda repetição, os três compassos em 7 são seguidos de um 4/4, um compasso de transição, para só aí voltar o normal 6/4 da música.
O arranjo conta com bandolins e violões se misturando, do jeito típico de Beto, e um teclado setentista chamado arp, que simulava cordas. Tudo isso confere esse clima andino, que, de todas as vertentes da música brasileira, é praticamente só encontrado em canções de Milton Nascimento e do próprio Beto Guedes.
De forma geral, é uma grande e inusitada balada, lírica e ao mesmo tempo incandescente, um tipo de mistura rara. Teve uma versão de Zizi Possi  ainda na década de 1970, depois foi regravada pelo próprio Beto em companhia de Caetano em um disco ao vivo de 1987, e recentemente ganhou uma elegante versão de Djavan. Não é pouca coisa.  
Por Pablo Castro

6/4 G7M/B / A7/G / D7M/F# / Ab0 / Em7 / D6/F#
//: G7M/B /
Oh! Meu grande bem
A7/G /
Pudesse eu ver a estrada
F#m7 /
Pudesse eu ter
Ab0 / Em7 /
A rota certa que levasse até
D6/F# ; / /
Dentro de ti
Oh! meu grande bem
Só vejo pistas falsas
É sempre assim
Cada picada aberta me tem mais
Fechado em mim
7/4 A /
És um luar
% / D7M / 3/4 E7 /
Ao mesmo tempo luz e mistério
7/4 A /
Como encontrar
% / D7M / 4/4 E7 F#7 /
A chave desse teu riso sério
6/4 Bm G#m7(b5) /
Doçura de luz
Amargo e sombra escura
Procuro em vão
Banhar-me em ti
E poder decifrar teu coração
És um luar
Ao mesmo tempo luz e mistério
Como encontrar
A chave desse teu riso sério
Oh grande mistério, meu bem, doce luz
Abrir as portas desse império teu
E ser feliz


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Nota do editor:
Como uma das metodologias de pesquisa dos projetos de pesquisa que venho conduzindo [confira aqui] envolve comentários feitos em redes sociais, portais, canais de internet, não resisti a uma rápida conferida nos que seguem ao vídeo de You Tube que está incorporado acima. Comentários rápidos, na sua totalidade elogiosos, em sua maioria ao Beto, até por ser também o intérprete. Além de permitir apreender impressões e interpretações imediatas de ouvintes, os comentários indicam traços de identidade e muitas vezes, o que poderíamos chamar de "atributo geo-referencial" da música popular. O mais curioso, e que de alguma maneira corrobora a observação feita pelo Pablo sobre a letra, é a identificação da canção com Minas, muitos sequer se dando conta que seu autor é o baiano Caetano.

Selecionei esse, assinado por claudio ernesto da silva carvalho:
"Sensacional, uma coisa da era Medieval, meio Renascença, os Cavaleiros em busca de aventuras com suas armaduras e lanças atrás de seus amores, florestas, castelos, coisas intrigantes, só podia ser vindo de Minas Gerais, por isso eu sou do Mundo, eu sou "Minas Gerais" - Viva Beto Guedes, viva todos os músicos e poetas mineiros espalhados pelos quatro cantos desta encantada e maravilhosa terra. Viva "MINAS" terra da arte, da música e do povo que exporta revela e exporta talentos maravilhosos."


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