Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

9 de julho de 2019

À MUSA

Em fevereiro de 2018 tive a satisfação de assistir na Casa Idea ao show de lançamento de um de seus discos e conhecer o cantor, compositor, violonista e arranjador Benji Kaplan, vindo de Nova Iorque para o Brasil e BH - à época ele concedeu entrevista à rádio UFMG Educativa, que pode ser ouvida aqui.  A "ponte aérea" tem o dedo de nosso agora parceiro partilhado, Makely Ka, que topou por lá com o nosso caro "novaiorquine" e já havia composto com ele pérolas como "Baião para Gershwin" e "Fuga de Alcatraz". Naquele dia, foi ainda o mesmo Makely que nos apresentou formalmente e ensejou, de certo modo, o que viria a ser essa primeira parceria minha e do Benji. Preciso dizer ainda que nesta mesma noite ele contou com a participação de sua parceira de vida e música Rita Figueiredo, e que os dois formam um duo estupendo, como se pode conferir ouvindo o disco de ambos aqui. Digo isso também para explicar que Benji Kaplan, não bastasse ser admirador, estudioso e influenciado pela música popular brasileira, digo sem medo de errar, tornou-se seu partícipe, esposando o conhecimento de seus estilos e ritmos com melodias intrincadas, harmonias sofisticadas e desafio de forma que exige letras que se equiparem a tal lapidação musical. 
A ideia de fazer uma letra para uma música dessas era encrenca - da boa! Às vezes a proposição acontece numa conversa e fica assim num limbo por um tempo, em "banho maria", como dizemos aqui. Mas não foi o caso! Benji logo me manda uma...  a belíssima "Folhas ao vento" (Leaves in the wind) que figurava em versão instrumental justamente no disco que viera lançar, Chorando sete cores. Como sempre, quando se inicia uma parceria nova, fico cheio de dedos e quero me entender, sobretudo quanto aos métodos e prazos, porque é importante um entendimento cristalino sobre essas coisas. Para mim é a base sem a qual não pode surgir o entrosamento necessário. Depois é tentar decifrar uma intenção, ouvindo a música e falando sobre ela com o parceiro. O Benji me deixou à vontade, mas eu estava era preocupado com a incumbência. Tanto que me esmerei uns meses até que, no final de maio, tinha uma primeira versão completa.
Comecei pelo título anterior, e obviamente a música remetia ao movimento das folhas bailando ao vento. Como na área área externa do apartamento em que moro, vizinha de uma casa com um pomar enorme, caem muitas folhas, esse mote inicial me deu os primeiros versos, coincidindo com a chegada do outono por aqui. Isso poderia levar a qualquer lugar. Mas eu já estava aflito com o cenário político brasileiro. Por outro lado, o lirismo extremo da música sugeria um tema romântico. Pensei no outono como estação de transição, e fui esboçando uma história de separação de espera da pessoa amada, mas também me esquentando a pestana a tensão política. Pintou a ideia de fazer uma letra como aquelas do tempo da censura - tendo especialmente as de Aldir Blanc e Chico Buarque como referências. É quase como se cada estrofe respondesse a um estado de espírito diferente, o outono e as folhas preludiando o inverno, e a espera incerta do ente amado, a princípio levada com certa ironia e autocontrole, vai se tornando mais angustiante, frustrante, justamente quando a canção muda o percurso melódico e o lamento da perda se converte em apelo ao retorno. Incrível a forma como o material da experiência pessoal se imiscui nas letras mesmo subconscientemente. Realmente eu estava dormindo muito mal. Nos meus rascunhos guardei versos como "Eu tenho pouco sono/Não durmo nem no escuro/ Me cubro de lembranças" que se aplicaria ao tema musical inicial, mas acabou convertido oportunamente na parte em que o "eu lírico", insone, procura inutilmente sua amada na cama. Essa súplica se coloca a partir da sensação de aprisionamento e o anseio por libertação. O retorno ao veio melódico central, ainda que com variação, me sugeriu o alento, a primavera que sucederia o inverno, o céu aberto. Nisso tudo há o retorno assumido, deslavado, de metáforas recorrentes dos anos de chumbo. Também entrego claramente meu ofício de historiador, em referências que não são difíceis de sacar, e que ao final amarram o sentido subentendido de quem vem a ser a musa à qual a letra se endereça. E quando a melodia caminha para o encerramento, se a volta do mote inicial sugere um retorno ao primeiro estado emocional, não é bem isso, já que a mudança enseja uma conclusão e a grande lição da História é justamente essa: tudo muda.


*Imagem: Atena e as Musas - Hendrick van Balen the Elder (1573–1632)




À musa - música de Benji Kaplan; letra de Luiz Henrique Garcia


No tempo do outono
As folhas vão ao vento
e lento no meu passo
amasso
as que pisar

Não sei se você volta após a estação
apressada
de metrô
na blusa de tricô
que eu te dei nas férias

Passadas em Atenas
Mas lágrimas apenas
em plena idade média vem,
no alvorecer
perscruto você
seu braço, cadê
o nosso lençol
não sei mais dormir
desliga esse sol
me afasta essa mira
me tira do calabouço já

Ó musa da minha lira
Divago no meu canto
E vejo de soslaio a cor da Primavera de Paris
Na barricada desse lar
vigio até você entrar
no dia em que o céu se abrir

No tempo do outono
As folhas vão ao vento
E o tempo há de mudar



7 de julho de 2019

Jamais chegará a saudade de João

Foi-se João.
Um revolucionário sutil.
A simplicidade complexa em pessoa.
O violão que decifrou a batida transcendental do coração do Brasil.
E agora, João?
Só nos cabe cuidar para que sua lembrança continue tocando essa batida. Ensinando pra nós e pro mundo o que é que o Brasil tem. 

Foram as primeiras palavras que escrevi quando a notícia me chegou. Pretenderam ser justas e sintéticas, como a própria música de João Gilberto é. Mas sinto que é preciso deixar um pouco mais de caldo. Até porque, quem sabe, alguém ainda possa descobrir João, seu canto, seu violão, sua síntese mais que perfeita do Brasil. Resolvi então reunir aqui contribuições de dois parceiros que já colaboraram outras vezes aqui no blog e que expressão boa parte do mais que eu poderia dizer, Rafael Senra e Pablo Castro. O primeiro contrastando conjunturas entre o efervescer da bossa nova e a atualidade, o segundo num verdadeiro mergulho diacrônico mostrando que João Gilberto é ponto nodal na história de nossa música popular. Fica ainda aberta a porta, para agregar nos comentários o que mais os leitores acharem por bem incluir. 

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Achei bonito ler o depoimento da Gal Costa em que ela diz que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. A música popular de hoje não traz nada do DNA do pai da bossa nova: é urgente, agressiva, com um registro de canto quase histérico, repleto de vibratos caricatos que trazem o pior de tradições musicais estrangeiras, completamente alheias à nosso ecossistema musical.
Vez ou outra, músicas que ele imortalizou aparecem repaginadas em aberturas de novelas, ou cantadas por subcantores em programas de auditório. Na nossa cultura mainstream, é assim que o legado de João sobrevive.
O Brasil de agora é diametralmente distante do idealismo bossanovista. Nos tornamos o oposto de tudo que foi sonhado naqueles tempos. O Rio de Janeiro do barquinho e do violão tornou-se o Rio da propina e das milícias. A modernidade de JK (época em que João foi trilha sonora obrigatória) deu lugar a um retorno da precariedade medieval travestida de progresso. Temos uma população que perdeu a CLT e está prestes a perder o direito a se aposentar.
Continuo achando que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. Mas os que não a aprenderam são os que tomaram o poder. A delicadeza não quer o poder: as flores que perfumam o jardim nunca tentariam toma-lo para si. Os que amam a beleza e a verdade estão de luto.

 Por Rafael Senra

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Ninguém é obrigado a gostar desse ou daquele artista, mas o bom da arte é que nem tudo se resume a gosto pessoal. Cada campo artístico tem uma história, um desenrolar dos acontecimentos, um diálogo diacrônico e mutuamente estimulante entre artistas, crítica e público.
E há fatos históricos inexoráveis, que apresentam revelações, invenções de tal modo inesperadas que provocam abalos sísmicos nas sensibilidades gerais.
Por que João Gilberto é o maior divisor de águas da música popular brasileira ? Nada do que se elenca aqui é questão de gosto :
1- até 1958, inexistia um canto popular que não fosse adornado, impostado, cheio de voltinhas ,vibratos, glissandos. Simplesmente ninguém nunca tinha ouvido um canto despojado disso tudo. Nem aqui nem alhures. Quem introduziu esse tipo de canto nos Estados Unidos foi Chet Baker e quem introduziu isso no Brasil foi João Gilberto. É muito difícil para nós outros imaginar o impacto da ouvir pela primeira vez um tipo de canto que se tornaria hegemônico, um canto mais despido de volteios e gracejos . Mesmo no caso de cantores mais potentes, com grande projeção de voz ,a influência de João Gilberto foi decisiva, pela forma direta com que o canto passou a ser emitido . Não existiria Gil, Elis e mesmo Milton sem antes ter surgido João .
2- até 1958 , não havia um violão que incorporasse uma estilização sintética das células rítmicas brasileiras, notadamente o samba, mas também o baião, a valsa, a marchinha. Nossos ritmos só existiam enquanto conjunto de peças percussivas exuberantes e explosivos como uma escola de samba. João inventou uma maneira de incorporar as funções básicas desses ritmos, simplificadas , e estilizadas num mínimo denominador comum, e que poderia ser transformado num grão de som. Além disso, João criou uma palheta de inversões de acordes no violão que mantinham um equilíbrio entre as notas e as funções harmônicas, dispondo do baixo, das terças e das dissonâncias (sétima, nonas e décima-terceiras), abrindo mão muitas vezes da quinta e mesmo da tônica, por serem redundantes.
3- até 1958, não havia um intérprete capaz de dar credibilidade a melodias e letras mais leves, que apenas começavam a ser compostas naquela época, por compositores como Tom Jobim, Carlos Lyra, Newton Mendonça ,Vinícius de Morais, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, entre outros. Até então, o samba-canção, que dominava a música nacional, era praticamente sinônimo de derramamento sentimental, dor de cotuvelo, fossas profundas ou piegas declarações de amor eterno , dramático.
4- Depois da grande era inicial do samba, na década de 30, não havia cantor algum que usasse a divisão melódica como meio de improvisação rítmica, e muito menos que utilizasse esse jogo de divisões melódicas como filigranas da aproximação do canto à fala, fazendo das consoantes instrumentos percussivos que inevitavelmente apresentavam as palavras como objetos palpáveis, quase tateáveis pelo ouvido. As letras portanto passavam a se incorporar mais organicamente à experiência de fruição do ouvinte , o que , também vale ressaltar, até essa época era uma impossibilidade técnica que só se viabilizou pela invenção da gravação em canais separados e pelo advento de determinados microfones que permitiam o canto próximo sem que ele tampasse todos os instrumentos do acompanhamento .Tudo isso era inédito.
Para além dessas evidentes inovações revolucionárias, João sintetizava não só um estilo, mas um repertório que atravessava e articulava tudo aquilo que era considerado antigo com o que era evidentemente novo. O principal intérprete do moderníssimo e consagradíssimo Tom Jobim era também aquele capaz de descobrir um compositor como Jaime Silva, autor de O Pato. "Jaime Silva (1921-1973) era um mulato alto, elegante e simpático”, segundo Ruy Castro no livro “Chega de saudade”. Alagoano de nascimento, mas morando no Rio desde menino, era sapateiro do serviço de intendência do exército, além de pandeirista e eventual compositor, nas horas vagas. Costumava namorar sua futura esposa, Maria, no ‘Campo de Santana’, Zona Centro do Rio de Janeiro, onde observando patos e marrecos se esbaldarem no laguinho local prometia, contemplativo: “ainda vou fazer uma música com esses patinhos…”."
Por fim, para aqueles que ainda não entenderam João, porque vieram bem depois que suas descobertas já haviam sido incorporadas de maneira difusa por toda uma brilhante geração posterior de compositores e intérpretes : à primeira audição. aquilo que podemos chamar de "cor" na música, os aspectos mais imediatos da sonoridade de timbre, de região de emissão da voz, de volume e gesto , tudo pode até parecer enfadonho, porque nesses aspectos João sempre foi a mesma coisa - claro, depois de seu período inicial, quando era um perfeito cover de Orlando Silva, com os Garotos da Lua, em princípios dos anos 50.
Mas quando você mergulha nesse ambiente que sua música enseja, esse lugar calmo e contido onde sua voz ecoa, você consegue perceber as nuances e sutilezas, de um estilo que recusa qualquer fio de exagero, e que faz o encontro insuspeito entre tudo aquilo que era , de forma nata, brasileiro. Como se tivesse extraindo a essência do que é o Brasil.
O bom de tudo é que , graças à fonografia, não perdemos João, ganhamos para a vida inteira. Resta agora continuar espalhando os frutos-sementes que sua obra deixa para a eternidade.

Por Pablo Castro

Outros materiais:

Link para o ótimo texto de Bráulio Tavares enfocando a genialidade de João Gilberto
Link para texto do poeta Augusto de Campos que sairia em seu livro Balanço da Bossa.
Link para o doc especial da Rádio Batuta do IMS "Tim tim por tim tim: a música de João Gilberto.
Link para o programa A bossa antes da bossa, com Ruy Castro.
Playlist organizada pelo Pablo Castro, pra ouvir enquanto se lê sobre João.

Registro em filme da gravação do disco Brasil, em 1981.


22 de junho de 2019

SAMBA EM TRÊS






Esse maravilhoso rebento geminado veio ao mundo recentemente, "Sozinho e bem acompanhado", do parceiro Maurício Ribeiro, com três canções cujas letras saíram das mesmas pontas de dedos que vos escrevem estas linhas. A já "aerada" e radiodifundida "Veneno Remédio", um pequeno tratado sobre a contagiante e contaminante atividade de torcer pela tevê, e as ainda pouco ventiladas "Às cegas", sombria leitura da velhice que agora me assombra como premonição da nefasta reforma da previdência, e "Samba em Três", pequena fantasia impregnada de sonoridades e referências icônicas caribenhas, respingo da minha ida a Cuba e quiçá do meu gene tropicalista recessivo. Estou felicíssimo de estar no meio de várias feras musicais, alguns igualmente gente querida da nossa cena belOUROizontina, num disco duplo gravado entre dois oceanos e expressivo de musicalidades que, se rompem fronteiras, também não desconhecem os respectivos berços.

Das três da safra, foi esta a última a germinar.  Tenho adotado às vezes o procedimento de manter os títulos provisórios que nomeiam arquivos de mp3 ou outros formatos que os parceiros me enviam, quase como se fosse um traço inconsciente falsamente acidental, que dá uma pista das motivações por trás da música que me chega. Podemos nesse caso observar que "Samba em Três" é um "metatítulo" que simultaneamente dá identidade E analisa o objeto musical que embala, na medida que ressalta esse caractere distintivo de sua lavra, ou seja, de que se trata de um samba em compasso ternário, raro para o gênero, mas com
antecedentes, ao feitio de Cravo e Canela, por exemplo. Sob o signo da síncope, estrofes muito econômicas e serelepes saltitavam em meus ouvidos. A sugestão de algo caribenho talvez tenha sido reforçada por esse recurso ao arquivo do repertório bituquiano, especialmente a versão gravada no disco Milton (1976) em terras da América do Norte. Ao mesmo tempo, a melodia sugeria versos curtos, com pouco "espaço" para digressões e especulações às quais às vezes me lanço. Senti que era preferível perseguir um estilo mais "telegráfico", livre e associativo, com frases soltas e ligadas pela temática, sem necessariamente apresentar uma sequência narrativa lógica.

A princípio, assim, o tema sugeriu um inventário geográfico, mais alusivo que propriamente descritivo. A inspiração estava ainda temperada pela inesquecível viagem que fizera a Cuba naquele mesmo 2016, cujas sonoridades aderiram ao ouvido da memória, aquele que não olvida. O eixo central da letra então se definiu a partir de duas listagens paralelas, países e gêneros musicais caribenhos. Inventário iniciado, alguns jogos com sonoridades e rimas foram surgido daí, especialmente a partir da 3ª estrofe - porém sem brincar propriamente com a mescla entre português e espanhol como fazem Chico na versão de Canción por la unidad latinoamericana e Caetano em Quero ir a Cuba. Mas se as primeiras estrofes parecem quase que pinçadas de peças publicitárias de agências turisticas e revistas de companhias aéres, o espírito crítico de historiador me sugeriu uma drástica virada de clima, como se um furacão tropical sacudisse tudo quando entra o "B". Borrei o painel idílico e eufórico com uma espécie de "crônica" icônica e abreviada da colonização e seus desdobramentos históricos e culturais na região do Caribe. Essa foi a última parte que escrevi, e a que me deu mais trabalho. Marcadamente distinta musicalmente, instalando uma certa suspensão e irregularidade no momento em que o ouvinte já vem de 4 estrofes com a mesma estrutura. É como se esse "B" dividisse a letra de tal modo que depois o "eu lírico" observador descreve um Caribe bem mais complexo, com esquemas de paraíso fiscal, intervenção militar, motim e outros conflitos armados entremeando as alusões amenas já evidenciadas na primeira parte. Finalmente, como persistente entusiasta do refrão que sou, 'pirateei' um ao repetir, com uma sutil alteração, a 4ª estrofe no 8º "A". 


Aproveito o vídeo divulgado pelo parceiro:
Hoje, recebendo o Triar aqui na Espanha, acordamos inspirados e nos juntamos pra um "desayuno musical". O arranjo de "Samba em três" (música minha com letra do Luiz Henrique Assis Garcia) vai ser aprimorado até o show de amanhã, no Cafe Mercedes Jazz, em Valencia. Mas já segue aqui o gostinho em vídeo, e os dados do show estão no link abaixo.

Samba em três (Maurício Ribeiro e Luiz Henrique Garcia)

Índia ocidental
Onde para o sol
Latitude vinte graus



Ilhas a granel
Mar que beija o céu
Bem no clima tropical

Passa o Panamá
Na Jamaica, Jah
Cúmbia na Colômbia

Bravos siboneys
Dançam samba em três
Habaneras ancestrais

Lá se converteu, se bebeu, por amor
Quente sangue que se verteu, por louvor
Serras, costas, botas e matagais
biltres, putas, padres e canibais,
escravos, senhores...

Granada, intervenção
Haiti, motim
Trinidad, não tá ruim

Nas Antilhas cais,
Mastros e canhões
Offshores sem fiscais

Grande Caimão
Rumba, Salsa, Son
Merengues dominicais

Bravos siboneys
Dançam ao som do Tres
Habaneras ancestrais



25 de maio de 2019

No estúdio com Thiakov - A day in the life

Produzindo os Beatles - A day in the life

Quase que Lennon ficou de fora como compositor do disco Sgt Peppers. Andava dreamy, divagando em sua própria mente, experimentando viagens aprofundadas. Não fosse pela insistência da equipe e sua inspiração potencial, acabaria por deixar o álbum nas mãos do emergente líder McCartney. Talvez por isso mesmo buscou idéias em coisas mundanas e fugazes como jornais, anúncios de tevê, cartazes e desenhos infantis de seu filho. Sagaz como de costume conseguiu arrancar leite dessas pedras brutas que nos bombardeiam todos os dias e passam desapercebidas mas não para um criador.
"Espalhe o microfone em cima do piano, meio baixo, mantendo-o dentro, as maracas, saca? Fada de ameixa, fada de ameixa". Com estas palavras John introduz o que se tornaria a balada mais intensa desse novo álbum. "Dá pra por aquele eco do Elvis?". Emerick, o jovem engenheiro de gravação, afogou Lennon nesse delay de fita.
O primeiro take foi simples, com o quarteto em uma formação bem inusitada: George nos bongôs, Richard nas maracas, John no violão de aço e Paul no piano. Tocaram a incompleta música até o fim que havia, deixando uma longa parte sem vocais, com o roadie Mal Evans contando os compassos em voz alta e com um despertador na mão (que acabaram por vazar nos mics e são ouvidos na versão final).
Dias se passaram até voltarem à gravação, o que era comum depois de Strawberry Fields, e logo que escolheram os melhores takes de voz foram pra sessão de overdub. Sem as peles de resposta dos tambores e com microfones posicionados dentro dos toms, com extrema compressão (aparelho que reduz a dinâmica), Ringo experimentou como nunca e assim, numa evolução da supracitada Strawberry, fez uma construção de bateria baseada em viradas e ataques de prato. A parte que restava incompleta carecia de algo forte e intenso. John sugeriu que fosse um som que começasse pequeno e fosse crescendo até uma explosão. Paul embarcou na onda e evoluiu a ideia para uma orquestra em crescendo. O produtor olhou para o quarteto e disse: miguxos, jamais receberão aprovação da EMI pra alugarem uma full orchestra pra gravar alguns compassos de doideira em uma música. Ringo, como bom enxadrista, deu xeque-mate: alugamos meia orquestra e gravamos duas vezes.
A tumultuada sessão de gravação da orquestra, ou melhor, o happening começou já dando sinais da loucura que viria pela frente. Entram pela porta principal do estúdio 2 do Abbey Road, em seus psychedelic suits, Mick Jagger, Keith Richards, Marianne Faithful e muitos outros convidados para uma suposta festa. Os músicos da orquestra já bem incomodados por terem que usar nariz de palhaço, aguentar o som de balões explodindo (também audíveis no disco) e o cheiro de erva no ar simplesmente não entendiam as instruções do paciente Martin a convencê-los de que não era nada demais...apenas tocar da nota mais grave de seu instrumento até a mais aguda, finalizando em um Mi. Alguns achavam que era realmente uma piada e uns ofendidos acabaram por deixar o estúdio. Depois de muita conversa para acalmá-los, alguns rabiscos na partitura e no take final regidos por um dançante McCartney, contrariados, fizeram um take. Como o orçamento era curto, o produtor mentiu que não ficou bom para que eles tocassem a segunda vez. Bingo. O efeito devastador foi atingido.
A segunda parte veio de uma esquecida canção do Paul que encaixou-se lindamente à primeira parte de John.
Tudo parecia perfeito mas ainda faltava o gran finale, o fim dessa saga. Pra essa sessão foram utilizados os quatro pianos presentes nessa sala mais um harmonium executado por George Martin, todos eles tocando o mesmo e único acorde. No melhor take ouve-se, carregado por um olhar matador de Macca, uma ligeira mexida na cadeira do Ringo, e com um par de fones aprecia-se o famoso "nhec" que encerra esta canção que fecha o álbum mais conceitual dos Beatles até então.
Eis "A day in the life". I'd love to turn you on.

obs 1: sim, quando o Paul canta "found my way upstairs and had a smoke and went into a dream", está falando de maconha

obs 2: sim, "I'd love to turn you on" é sobre maconha

obs 3: sim, "well I just had to laugh", é risada de maconha


Por Thiakov






 A day in the life (Lennon/McCartney)

I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grade
And though the news was rather sad
Well I just had to laugh
I saw the photograph.

He blew his mind out in a car
He didn’t notice that the lights had changed
A crowd of people stood and stared
They’d seen his face before
Nobody was really sure
If he was from the House of Lords.

I saw a film today oh boy
The English army had just won the war
A crowd of people turned away
But I just had to look
Having read the book
I’d love to turn you on.

Woke up, fell out of bed,
Dragged a comb across my head
Found my way downstairs and drank a cup,
And looking up I noticed I was late.
Found my coat and grabbed my hat
Made the bus in seconds flat
Found my way upstairs and had a smoke,
Somebody spoke and I went into a dream.

I read the news today oh boy
Four thousand holes in Blackburn, Lancashire
And though the holes were rather small
They had to count them all
Now they know how many holes it takes to fill the Albert Hall.
I’d love to turn you on
 

13 de maio de 2019

No estúdio com Thiakov - Strawberry fields forever




Produzindo os Beatles - Strawberry fields forever

"Eu tenho uma", disse Lennon ao ouvir o afável produtor George Martin evocar o questionamento tradicional ao início das sessões. Paul ainda balbuciou algo como "eu também" mas o zerinho na fila já tinha se autoproclamado. "É uma balada, fala sobre minha adolescência".

O refrão vinha na ordem natural, depois da estrofe como mandava o figurino, pois ainda não tinha sido alterado pelo produtor para introduzir a letra da canção. Como eu, ele deve ter gostado muito dessa música e querido ouvir de prontidão as palavras-chave daquela que se chamava "Strawberry fields forever".

Falava sobre o antigo orfanato nas imediações do bairro da tia do Lennon, onde ele ia vez ou outra desfrutar um fim de tarde quiçá em companhia de alguém. Falava de um jeito desconexo eu acho que eu sei quero dizer um sim desconcordo nada tão mal sempre sei algumas vezes penso que sou eu deixa eu te levar que eu estou indo aos campos de morango nada é real. Fala de um jeito doidão mas com muito amor pela saudade, uma especialidade do compositor em questão.


O primeiro acorde não é a tônica, o tom, mas o mais distante que é a dominante, o irresoluto e problemático acorde, seguido pelo sexto grau, irmão do tom, o quarto grau (agora sim trazendo de vez a cara azul do lá maior) and then...and then vem o refrão. Gigantemente enigmático, sem falar das baboseiras sentimentalóides dos ié-ié-iés, chamando você, ouvinte, a passear sem volta pelas ondas lisérgicas dessa paisagem desconhecida. O primeiro take era realmente de uma balada pouco diferente das do Revolver e anteriores mas algo dizia que ela não se resolveria aí. Um sampleador bizarro, conhecido por mellotron - que era composto de fitas k7 com instrumentos gravados em loopings - forjou as notas introdutórias. E assim, com uma guitarra desconstuída em arpejos, uma bateria certeiramente vacilante, sem usar o chimbal pra marcar os tempos, fazendo quase que somente viradas e um baixo cabeção só com as notas fundamentais dos acordes, começa "strawberry fields" - que viria a se tornar uma das canções mais arrojadas jamais feitas pelo mundo pop até então.


Ao fim de algumas tentativas John decide que está insatisfeito e como sempre, sem saber como dizer isso, recorre a imagens e figuras mentais pra comunicar ao produtor que desejava mais ação, mais energia, mais massa sonora, mais tudo! George deve ter se deparado com um ou dois cigarros antes de chamar para a próxima sessão um naipe de metais, cellos, e regravar num tom acima do primeiro, mais rápido que a primeira tocada e cheio de sons energizantes de metais. Todos tocaram euforicamente e um final apocalíptico se deu. I buried Paul. Paul estava morto, mas isso não atrapalhou a nova canção e não vem ao caso. John Lennon, já bem sem jeito, retorna ao seu estado introspectivo e prenuncia um novo atestado de falência. "Sorry Martin, mas ainda não estou satisfeito com a segunda versão. Na verdade gostei do início da primeira e a segunda parte desta mais rápida. Dá pra utilizar as duas?". E assim se encerrou mais um dia de trabalho. Os campos de morango pareciam ser verdadeiramente para sempre. Nenhuma música antes havia tomado tanto tempo no estúdio.


Armado com gilletes e fitas adesivas, como um cirurgião cardíaco, George Martin cortou e picotou e colou e descolou num passe de mestre, daqueles do Ronaldinho Gaúcho nos tempos do galo, e juntou na fita as duas versões usando para as passagens uma harpa indiana. Nem se percebe a mudança de uma tomada para a outra, ou somente ouvidos treinados conseguem percebê-la.

Voilá!

Nada melhor que o primeiro fracasso dos beatles no número um das paradas há anos. Com vocês, "Strawberry fields forever":




obs 1: let me take you down cause i'm going... neste momento o pitch do mellotron, junto com a guitarra slide fazem um escorregador pra baixo, taking you down

obs 2: let me take you down cause i'm going... vai do acorde de Lá maior pra Mi menor, cadência advinda do modo mixolídio, com uma cor muito peculiar de empréstimo modal, uma vez q a tônica não tem a sétima menor e assim boiamos rapidamente em dois modos, sem falar no terceiro acorde que é distante apesar de ser somente o dominante do segundo grau. Ou seja, uma boiada atrás da outra. Quando ele se alterna com o quarto grau, Lennon deixa claro que não deseja um chão tonal pra se brincar.

obs 3: fica fácil perceber a mudança de take (do lento pro rápido) pois apenas no primeiro há o baixo do Paul. E são dois, um de cada lado(fucking stereo). Imagino q o macca tenha deixado pra fazer o baixo da segunda depois, como de costume à altura e gostado sem grave ou tido preguiça pra fazer depois do corte final. Não há mais guitarra também, nem mellotron. O que toca o barco são uns bumbos graves tocados com a mão, maracas e pandeiro.

obs 4:
no meio da música ouve-se um chimbal ao contrário com umas peças de bateria ao fundo.

Por Thiakov



Notas do editor:

1. Publiquei em 2011 o artigo "Em meus olhos e ouvidos: música popular, deslocamento no espaço urbano e produção de sentidos em lugares dos Beatles" na revista Estudos Históricos da FGV, tratando basicamente desta canção e sua "irmã gêmea" de single Penny Lane. O resumo, acompanhado de um trecho do trabalho, está nessa postagem anterior [aqui]. Destaquei, em outra ocasião, mais um trecho do artigo, tratando das capas do compacto e também do álbum Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise estava mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. O que é mais interessante no artigo, do ponto de vista metodológico, é que utilizei muitos registros de estúdio anteriores à versão final, que conhecia do tempo em que a circulação desse material ocorria através dos chamados "discos piratas", mas quando da escrita já estava amplamente disponível na internet.

2. Em outra atividade de pesquisa, estudei as apropriações in loco e via internet de lugares de Liverpool associados aos Beatles. Parte deste trabalho, já publicada em eventos, pode ser encontrada na minha página do portal Academia [aqui]. Estive em Liverpool em 2015 - vale dizer, com apoio do CNPq num momento em que ainda havia valorização da pesquisa acadêmica no Brasil, mas já iniciando a fase de cortes - e por dois dias cumpri uma agenda apertada que envolveu visitas a museus e trabalhos de campo, como os que ficaram registrados na página de facebook dedicada ao projeto [aqui] , que posteriormente sincronizei como página deste mesmo blog.