"O pano caiu
em plena cena me cobriu
toda platéia calou e ouviu
o suspiro encerrar
A peça vivi
com tantos mantos que vesti"
Confesso que hesitei em transcrever essas incipientes linhas. O rascunho denuncia o que tem de irrefletido, precipitado e frágil, ainda mais quando contraposto ao resultado final de um longo tempo de maturação e esforço de apuro. Mas acabei cedendo ao fim e ao cabo por dois motivos, o primeiro justamente pela exposição da criação como processo. Escrever a canção é como forjar uma espada, é preciso fogo, fagulha, sopro, mas também o esforço muscular, o martelo e a bigorna. O segundo motivo é o mistério que envolve a rara circunstância em que uma letra já rascunhada se encaixa de modo surpreendente à música que o parceiro começou por sua própria conta. Tenho um apreço particular pelas canções que nascem dessa forma, como se os metais da futura espada já estivessem predispostos a dar liga. Assim que ouvi a música que o Pablo tocava (então, ao violão) no intuito de me pedir a letra, eu soube que ela já tinha começado a ser escrita dias antes, e o que ainda era o magma bruto de ideias entornadas perto de um tema, solidificou-se a partir do molde que melodia e harmonia proporcionavam. Nasceu logo uma primeira versão mais completa, em que introduzi no início a descrição de um observador externo seguida pela mudança do ponto de vista para um eu-lírico em primeira pessoa, em seu monólogo de despedida. Ocorreu-me aí que seria inevitável uma espécie de retrospectiva da carreira desse personagem-ator, mas que caberia fazê-la como lista, como coleção idiossincrática em que pudesse perfilar tipos básicos e papéis clássicos que provavelmente seriam vividos por qualquer ator com uma carreira longa. Assim vieram o "general, pastor, coveiro, cego, louco e mandarim" e várias outras listagens, algumas até posteriormente descartadas, e referências mais definidas, "Nero, Fausto" o caixeiro de "A morte do caixeiro viajante" e, único caso fora dessa estrutura, o Iago da peça Otelo, de Shakespeare. Ainda algumas versões, ajustes, muitos atendendo ao perfeccionismo vigilante do meu parceiro, acabei finalizando com a inserção da imagem da banda atrás, solução inusitada para as rimas "az/ás" que deixava também uma deferência à música de/no teatro. Segue a versão final, belamente arranjada e executada no disco "Anterior" (2013)
Onde estou eu?
Não visto mais
No camarim
Pano caiu
Aonde vou?
Não ouço mais
Adeus do ator música de Pablo Castro, letra de Luiz Henrique Garcia
Pano caiu
em plena cena pousou
a platéia ouviu e se calou
o ato final
da peça, o funeral
a pá de cal
suspiro gestual
Onde estou eu?
Eu me procuro em mim...
fui general, pastor, coveiro,
cego, louco e mandarim
Não visto mais
o manto do rei mordaz
eu me despi do riso vil de Iago,
a morte me venceu no jogo
com seu ás
No camarim
Eu só, me perco assim
fui marginal, doutor, caixeiro,
Nero, Fausto e arlequim
Não digo mais
a frase do herói audaz
eu me cobri do luto, breu das almas,
a vida me tirou de cena,
sem cartaz
Pano caiu
no palco se desdobrou
a vera mentira revelou
o aço fatal,
aplausos casuais
restos mortais,
funesto ritual
Aonde vou?
Resta adiante o fim
dei voz a tantos quantos foram
meus papéis que me calei
Não ouço mais
a banda tocar atrás
O que devi no outro enredo, eu pago
o corpo no credor teatro
agora jaz
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