Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

12 de abril de 2015

ADEUS DO ATOR

Para a segunda canção da série, escolhi Adeus do ator. Dentre outras razões poderia citar o recente passamento do José Wilker, a quem o Pablo a dedicou ontem no show que realizou no Sesc Palladium. Lembro-me de ela ter sido dedicada a Walmor Chagas, Raul Cortez, Paulo Autran, e  mais recentemente ao Phillip Seymour Hoffman. Não sem uma certa ironia, curiosamente uma das inspirações centrais foi a morte de uma atriz, grande nome de nosso teatro: Cacilda Becker. O derrame cerebral que lhe acometeu em cena foi, num hiperbólico exercício de ficção, transformado na morte em pleno palco do personagem central da letra. A outra inspiração inicial, bastante literal, foi o título do livro que narra o último caso de Poirot, detetive personalíssimo criado pela grande dama do romance policial, Agatha Christie - um apreço literário de que os parceiros comungam - Cai o pano. Já não me lembro a circunstância exata do início de sua escrita, mas guardo numa velha agenda do ano 2000 que ainda me serve os primeiros versos esboçados:


"O pano caiu
em plena cena me cobriu
toda platéia calou e ouviu
o suspiro encerrar
A peça vivi
com tantos mantos que vesti"

Confesso que hesitei em transcrever essas incipientes linhas. O rascunho denuncia o que tem de irrefletido, precipitado e frágil, ainda mais quando contraposto ao resultado final de um longo tempo de maturação e esforço de apuro. Mas acabei cedendo ao fim e ao cabo por dois motivos, o primeiro justamente pela exposição da criação como processo. Escrever a canção é como forjar uma espada, é preciso fogo, fagulha, sopro, mas também o esforço muscular, o martelo e a bigorna. O segundo motivo é o mistério que envolve a rara circunstância em que uma letra já rascunhada se encaixa de modo surpreendente à música que o parceiro começou por sua própria conta. Tenho um apreço particular pelas canções que nascem dessa forma, como se os metais da futura espada já estivessem predispostos a dar liga. Assim que ouvi a música que o Pablo tocava (então, ao violão) no intuito de me pedir a letra, eu soube que ela já tinha começado a ser escrita dias antes, e o que ainda era o magma bruto de ideias entornadas perto de um tema, solidificou-se a partir do molde que melodia e harmonia proporcionavam. Nasceu logo uma primeira versão mais completa, em que introduzi no início a descrição de um observador externo seguida pela mudança do ponto de vista para um eu-lírico em primeira pessoa, em seu monólogo de despedida. Ocorreu-me aí que seria inevitável uma espécie de retrospectiva da carreira desse personagem-ator, mas que caberia fazê-la como lista, como coleção idiossincrática em que pudesse perfilar tipos básicos e papéis clássicos que provavelmente seriam vividos por qualquer ator com uma carreira longa. Assim vieram o "general, pastor, coveiro, cego, louco e mandarim" e várias outras listagens, algumas até posteriormente descartadas, e referências mais definidas, "Nero, Fausto" o caixeiro de "A morte do caixeiro viajante" e, único caso fora dessa estrutura, o Iago da peça Otelo, de Shakespeare. Ainda algumas versões, ajustes, muitos atendendo ao perfeccionismo vigilante do meu parceiro, acabei finalizando com a inserção da imagem da banda atrás, solução inusitada para as rimas "az/ás" que deixava também uma deferência à música de/no teatro. Segue a versão final, belamente arranjada e executada no disco "Anterior" (2013)    



Adeus do ator música de Pablo Castro, letra de Luiz Henrique Garcia  


Pano caiu
em plena cena pousou
a platéia ouviu e se calou
o ato final
da peça, o funeral
a pá de cal
suspiro gestual

Onde estou eu?
Eu me procuro em mim...
fui general, pastor, coveiro,
cego, louco e mandarim

Não visto mais
o manto do rei mordaz
eu me despi do riso vil de Iago,
a morte me venceu no jogo
com seu ás

No camarim
Eu só, me perco assim
fui marginal, doutor, caixeiro,
Nero, Fausto e arlequim


Não digo mais
a frase do herói audaz
eu me cobri do luto, breu das almas,
a vida me tirou de cena,
sem cartaz

Pano caiu
no palco se desdobrou
a vera mentira revelou
o aço fatal,
aplausos casuais
restos mortais,
funesto ritual

Aonde vou?
Resta adiante o fim
dei voz a tantos quantos foram
meus papéis que me calei

Não ouço mais
a banda tocar atrás
O que devi no outro enredo, eu pago
o corpo no credor teatro
agora jaz
--\\//--

Nenhum comentário:

Postar um comentário