Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

12 de abril de 2015

PONTO ORIENTAL


Vou começar com Ponto Oriental, letra que depois foi musicada por meu parceiro Pablo Castro, talvez porque tenha alguns detalhes nela que valem alguma notas. Uma curiosidade, que é o fato de ter sido escrita direto no computador, num arquivo .txt, com certeza uma das primeiras que fiz assim. Um processo que tem uma certa praticidade e uma materialidade própria, até na forma de ver as palavras tomarem forma, muito diferente de escrever à mão. Não ficou também, nenhum rascunho, o que hoje me incomoda um pouco, ainda que não tenham ocorrido grandes mudanças desde a 1a. versão completa. Se faço a letra agora às vezes deixo no word os rascunhos das primeiras versões. Tudo começou, na verdade, com uma célula inicial, que foi o hai-cai "De um amor (...) hi-fi" - de fato um meta hai-cai rsrsrs - que acabou virando refrão e continha a sugestão de fazer referências à cultura oriental - ao Japão especialmente, a partir de signos muito evidentes, estereotipados até. Assim, não havia propriamente um projeto narrativo, mas um conjunto de palavras e sonoridades que o tema estabelecido praticamente me forçava a adotar, de forma que a letra foi saindo muito rapidamente, até pela relativa liberdade de composição que era dada pela decisão de escrever um texto alusivo, icônico, sem a necessidade de encadear uma história com começo meio e fim como tantas vezes sou de fazer. Não sendo particularmente entusiasta ou conhecedor desse universo, vagamente vali-me do fato de ter praticado judô quando criança e das referências óbvias que ocorreriam a um observador externo, como ninja, robô, origami, bonsai, gueixa, ou eventualmente nem tanto, como shuriken, Kurosawa ou Fuji (o monte e o filme fotográfico). Achei aí o gancho "não sou nissei mas sei" e da ninja me veio a ideia de propor um ponto de vista esquematicamente "oriental" da relação amorosa - o que permitiu dar várias conotações ao "ponto" do título, indo da paisagem geográfica para a física e a astronomia mas também para o tecnológico e o biológico. E é muito curioso que tudo tenha começado com a referência à literatura e à indústria cultural. A letra sofre de algum academicismo, digamos, mas a música a redime, por assim dizer, na medida em que lhe dá organicidade no som de tal forma que esses eventuais rebuscamentos não afetam a fluência e a fruição audio-panorâmica da canção. Espero não estar enganado...




Ponto Oriental (Luiz Henrique Garcia/Pablo Castro)

Antes que o pôr-do-sol atinja o ponto culminante oriental
antes que eu infrinja a lei da física do Tao
não sou nissei mas sei
quero que a shuriken dessa ninja me atinja no ponto fatal

Ponto que a claridade almeja o Fuji fulminante num metrô
pronto ela seja o meu sensei
da física ao judô
não sou nissei mas sei
quero no chão o ippon que me despeja deseja precisão robô

De um amor que é como um bonsai
tem a pequena grandeza de um poema hai-cai
e a fidelidade do sistema hi-fi

Antes que o sol nascente tinja o ponto mais distante original
antes que o cosmo impinja a lei da física fractal
não sou nissei mas sei
quero origami inda que ela finja que cinja o ponto vital

Ponto com que Kurosawa sonha o Fuji seu gigante inspirador
pronto ela seja o meu sensei
da física da dor
não sou nissei mas sei
quero a peçonha fria da gueixa que beija com ira e torpor

De um amor que é como um bonsai
tem a pequena grandeza de um poema hai-cai
e a fidelidade do sistema hi-fi


Voz e violão:




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4 comentários:

  1. Muito interessante entender a letra pelo ponto de vista do criador.
    Achei notavel a convivência da erudição e da informalidade no processo de criação.
    O todo em si me soa sofisticado e completo.
    Letra e canção se unem de maneira perfeita e singular.
    Uma obra impressionante, atemporal.

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