Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

23 de abril de 2015

Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina - 11. Tanto

Retomo o projeto adormecido da lista das Outras 30 mais geniais do Clube da Esquina, a ser publicada no blog Massa Crítica Música Popular, do meu querido Luiz Henrique Assis Garcia , em que tento comentar e jogar luz a algumas das pérolas imortais do cancioneiro do Clube. Vou tentar manter a escrita de publicar uma faixa por semana, a fim de completar a meta.

Tanto, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, se filia a um gênero de canções de queixa amorosa, que tem tantos ilustres exemplos, mas aqui o apelo afetivo ganha rapidamente contornos transcendentais, com a onisciente voz de Bituca apoiada por arranjo orquestral transbordante de Francis Hime, que sublinha , ainda que a custo de uma mixagem confusa, o extravasamento afetivo do eu lírico da faixa, e seus pensamentos obsessivos que , sob a cadência harmônica ascendente da coda instrumental, tendem ao infinito.
Como era bem típico de Beto, a levada rítmica se dá num 6/8, uma espécie de valsa ritmada, que dá vazão fluida tanto ao lirismo da valsa quanto ao adensamento de um certo tipo de rock. O tom de Sol Menor é alcançado em sequência de empréstimos modais, em que se destacam dois acordes suspensos, o Fá e o Si Bemol, sendo este último uma forma diferida dos empréstimos frígios que tanto agradavam ao mestre Milton Nascimento. O clima é a um mesmo tempo onírico e claustrofóbico, só brevemente aliviado na maravilhosa inclinação a Lá Maior na parte B, quando " sua presença chama/chamava, pára/parava , ", em que a sensação de perda da noção cronológica sugere uma realização e ao mesmo tempo uma sublimação da angústia da perda do objeto amado, que logo recai sobre o mesmo lamento melancólico e desesperado que prevalece no restante da música. Nesse sentido, a repetição da cadência da parte A Bb7(11)(9) / Gm /, só que dessa vez alargada no segundo acorde, corrobora para uma marca distintiva da música . Nesse aspecto, é interessante notar procedimentos de "assinatura harmônica" na obra do Clube (e da MPB pós-bossa nova em geral), em que determinadas cadências heterodoxas se imbricavam na aura de cada canção.
Aqui, o apelo vai ficando cada vez mais exaltado, até parecer ameaçador na última estrofe : "sem querer injuriar, trata de se ligar, você me ganhou, e quem ajoelhou tem de rezar". A essa altura, tivemos uma ascensão do tom para Lá Menor, e a coisa vai a um fio de arrebentar a voz quase eufórica de Bituca. A coda da canção, já citada, merece uma atenção especial , surpreendendo pela resolução da melodia no acorde da subdominante maior (D/F#) , e preparando a escalada eterna de Eb6/ Ab/C , E6 / A/C# , F6/Bb/D , e assim sucessiva e cromaticamente, até o fade-out final. Fenomenal e totalmente adequado à letra da canção.
A performance agressiva da banda lembra o caso em que, perguntado pela imprensa brasileira o que lhe interessava como novidade no rock nacional, o músico Jim Cappaldi disse "Milton Nascimento". Os repórteres retrucaram que Milton Nascimento não era rock, ao que o músico respondeu que eles não entendiam nada de rock.
A canção na verdade já tinha sido gravada no LP A Página do Relâmpago Elétrico [aqui], no tom ainda mais agudo de Si Menor, com arranjo de Toninho Horta e canto do autor Beto Guedes. Mas a versão do Clube 2 é definitiva. [por Pablo Castro]


Tanto ( Beto Guedes e Ronaldo Bastos) 

Milton Nascimento : Voz
Beto Guedes : Bateria, Guitarra e Vocal
Lô Borges : Vocal
Toninho Horta : Baixo
Nelson Ângelo : Guitarra
Flávio Venturini : Órgão
Nenê e Zé Eduardo : Percussão
Francis Hime : Orquestração




Meu amor, não leva a mal
Chega de maltratar
Quem só quer bem
E não tem mais razão de suportar
Tanto


Sendo assim, não leva a mal
Para de machucar quem sempre te amou
E já não tem razão de duvidar
Tanto


Sua pessoa para, parava a tarde suspensa
Chamo o seu nome
E logo se acende a luz


Sendo assim melhor parar
Cuida pra não cegar
E nem perceber
Que já não tem razão pra me deixar
Tonto


Sua presença chamava o dia mais cedo
Tudo acendia
Ficava sempre acesa a luz


Sem querer injuriar
Trata de se ligar você me ganhou
E quem ajoelhou tem de rezar "

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