Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

6 de abril de 2015

O canto eterno de Billie Holiday

Completou-se recentemente o centenário de Billie Holiday, a "Lady Day", certamente uma das mais marcantes vozes da história da canção popular. Celebrada com toda justiça em lançamentos e homenagens, como mostra a bela matéria do NY Time [aqui]. Enquanto andava à cata do que fazer para 'encorpar' essa postagem, acabei topando com o oportuno texto do caríssimo Pedro Munhoz, que já contribuiu com o blog em outras felizes ocasiões, sobre a canção Strange Fruit:

"Esta canção, inspirada pelos linchamentos de negros que aconteceram no sul dos Estados Unidos na década de 1930, foi escrita em 1937, por Abel Meeropol, sob o pseudônimo de Lewis Allan, e gravada pela primeira vez por Billie Holiday, em 1939. Em 1999, a música foi eleita pela revista Time como "a canção do século".

Meeropol, que era comunista, chegou a ser interrogado em Nova York, sua cidade natal, a respeito da música: era professor e suspeitavam que ele estivesse fazendo "doutrinação marxista nas escolas" e que a própria canção tivesse sido encomendada pelo partido. O poema que se tornaria a letra da canção foi publicada pela primeira vez na revista The New Masses, publicação marxista, ligado ao Partido Comunista, que circulou nos Estados Unidos entre 1926 e 1948.

Anos mais tarde, em 1953, quando da execução do casal suspeito de espionagem Julius e Ethel Rosenberg, Abel Meeropol e sua esposa Anne adotaram os dois filhos do casal executado em plena vigência do macartismo, quando nem os próprios familiares das crianças desejavam ficar com elas temendo perseguições." [por Pedro Munhoz]

Eis a letra:
Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.

Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.


A interpretação, tocante e profunda, alcança o engajamento emocinal que a letra pede, envolvendo o ouvinte numa descrição densa do cenário do sul dos Estados Unidos, cuja tensão é percebida no contraste entre a caracterização bucólica da natureza e a violência imposta aos corpos dos negros narrada em imagens diretas. É como se fosse um documentário, um curta que condensa em imagem e som o episódio e o sofrimento de um povo, que o canto de Billie imprime, como um ferro quente, na alma de quem ouve, se ainda a tiver. 





3 comentários:

  1. Informativo o conteúdo desse post não sabia ainda e é dificil de achar

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  2. Billie é maravilhosa e essa música não tem versão melhor que a dela

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