Retomo, depois de algum tempo, a série sobre as canções que escrevi, dessa vez falando um pouco sobre Carpe Diem, em que fiz a letra para música do Pablo Castro, bem a tempo de integrar a lista das que seriam gravadas no álbum A outra cidade (2003) [um pouco de sua história, aqui; para comprar - vale a pena! - aqui]. Na época da gravação do disco eu estava cheio de obrigações profissionais e domésticas, e não pude participar do processo na intensidade que gostaria. Mas certo dia calhou de estar com o Pablo e ele me apresentou, ao teclado, uma canção que a princípio recebera uma letra em inglês da qual ele não se lembrava. Uma parte já estava bem definida, a outra nem tanto. Gostei de cara da melodia e da harmonia, ouvindo ali o encontro das águas das obras dos Beatles e do Clube da Esquina, que ambos admiramos e tomamos como referência fundante do nosso fazer musical e experiência cultural. Creio (mas a memória pode muito bem estar me traindo aqui) que o baita poeta/compositor Renato Negrão, que, diga-se de passagem, deixou também sua marca no disco, depois reparou em traços que remetiam a Guilherme Arantes. Ainda que não tão consciente ou explícito, pode ser, ainda mais pela força do elemento "água" ao longo da canção. De fato ela fluía enquanto eu embarcava nas primeiras audições. Havia uma urgência, uma vez que o repertório para o disco estava sendo fechado, mas talvez não tenha sido essa, e sim a urgência de criar, a que fez a letra ir saindo jorrando. Quando é assim tendo a confiar nos instintos e me deixar levar, aproveitando a correnteza. E ela foi me levando pela aventura da juventude e o tema do enfrentamento do mundo. A primeira imagem forte, marinha, veio de um romance que me marcou desde sempre, o Robinson Crusoé de Daniel Defoe. Um náufrago que enfrenta as maiores adversidades. A primeira estrofe, a princípio, depois do "sem medo de naufragar..." encerrava-se "Sexta-feira". Pensava num duplo sentido, lennoniano, entre o dia da semana e o nativo do livro. Acabou dando lugar a uma solução que se ajustava melhor à melodia. Quando achamos uma boa primeira estrofe da qual gostamos, é como se abrisse a porta da represa, o resto vem desaguando e preenchendo o leito cavado pela música. O corpo, primeiro substantivo escolhido, acabou puxando outros referentes ao sujeito protagonista dos versos, a face, a vista, a mão, o peito, os pés, a voz. É também uma letra "cinética", com apelo ao gesto e ao movimento, expressa em verbos como "alçar", "erguer", "lançar", "mover". Pensei aí na palavra "vertical", achando uma coisa tremendamente Márcio Borges, e daí só podia ir para o sol. Não acho impossível o sol ter levado a reino, o que pode ser lógico para um historiador, mas o conhecedor de Beatles poderá reportar-se à canção Sun King. O magistral arranjo do Avelar Jr., com cordas e metais georgemartinianas, é de uma pertinência absurda. As referências são como um jogo, um quebra-cabeças que gostamos de pensar como o ouvinte poderá montar. Muitas vezes o autor será surpreendido com as soluções que não lhe ocorreram.
Lembrei ainda das aulas de física e dos ensinamentos de Arquimedes, que reli de um ponto de vista político. Mas a convicção, a disposição pela ação e a ousadia do sujeito, dão lugar à segunda parte (que formalmente não se repete totalmente na letra, por isso podemos dizer que não é propriamente um refrão, mas um B e B'), em que a mudança na música (que foi se definindo melhor pelo caminho em que as palavras já tinham seguido) encontra na letra a ponderação de que os tesouros são passageiros, e que no reino do agora todo ouro evapora (um eco, claro, de uma certa passagem de Marx). Assim, toda força e protagonismo que o narrador alardeia acaba contraposta à efemeridade das conquistas. Um bom retrato dos sentimentos de juventude. Daí o uso da expressão Carpe Diem para dar o título, se nem tanto pelo uso consagrado na boca do inesquecível John Keating do saudoso Robin Williams em A sociedade dos poetas mortos (definitivamente, para mim, um filme de geração), pelo de desdém no amanhã contido em seu emprego clássico.
Se o corpo pede
Eu não sei negar
Tomar do mundo
Sem medo de naufragar
E morrer...
Se a face rubra
Eu não vou esconder
Ousar de tudo
Sem porto pra me prender
A vista alçar Vertical
Rumo ao selvagem trono do sol
A mão erguer sobre o reino do agora
Todo ouro que evapora
Se a luta exige
No peito encontrar
A dor do mundo
E o ponto de alavancar
E mover...
Se a rota torta
Nos pés a perder
Olhar o chão e o grão
Que ainda vai nascer
A voz lançar
Vento ao léu
Um diamante pra moça do céu
A mão erguer sobre o reino do agora
Todo ouro que evapora
Do agora Todo ouro que evapora
Carpe diem (música de Pablo Castro, letra de Luiz H. Garcia)
Se o corpo pede
Eu não sei negar
Tomar do mundo
Sem medo de naufragar
E morrer...
Se a face rubra
Eu não vou esconder
Ousar de tudo
Sem porto pra me prender
A vista alçar Vertical
Rumo ao selvagem trono do sol
A mão erguer sobre o reino do agora
Todo ouro que evapora
Se a luta exige
No peito encontrar
A dor do mundo
E o ponto de alavancar
E mover...
Se a rota torta
Nos pés a perder
Olhar o chão e o grão
Que ainda vai nascer
A voz lançar
Vento ao léu
Um diamante pra moça do céu
A mão erguer sobre o reino do agora
Todo ouro que evapora
Do agora Todo ouro que evapora
And, in the end, mesmo que não se saiba nada, ouve-se, e se realmente à escuta um se dá, de tudo já sabe.
ResponderExcluirô que lindeza isso! Ainda que um dia também evaporemos, sem saber, soubemos!
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