Motivado pela coluna Como e por que nascem as canções, apresentada pelo jornalista João Máximo na Rádio Batuta do IMS, recuperei alguns trechos da minha tese de doutorado que tocam nesse assunto. Boa desculpa para colocar Carmem Miranda e Assis Valente em pauta neste sábado. O extrato foi retirado das págs. 80-86:
Por isso mesmo a construção, a partir dos anos 30, de uma identidade nacional calcada na mestiçagem, precisa ser entendida enquanto resposta a uma crise de hegemonia para a qual concorrem o populismo varguista, a atuação de intelectuais como G. Freyre, Mário de Andrade ou Villa-Lobos e as formas de mediação postas através dos meios massivos no contexto de modernização que se evidencia na emergência das massas urbanas. No caso brasileiro, a música desempenhou um papel decisivo dentro do projeto nacionalizador (VIANNA, 1995; SQUEFF & WISNIK, 1983; MARTÍN-BARBERO, 1997).
O projeto de legitimação nacional passava então por criar uma forma de compromisso com as massas urbanas, e, portanto atender de alguma forma suas reivindicações. Mas é preciso notar que a presença de um “novo modo de existência do popular” na cidade, através das massas urbanas, “(...) desorganiza a visão centralizada homogênea e paternalista da cultura nacional” (SQUEFF & WISNIK, 1983: 133). A cidade, portanto, torna-se o palco de um processo de hibridações em “(...) um mercado musical onde o popular em transformação convive com os dados da música internacional e do cotidiano citadino.” (SQUEFF & WISNIK, 1983: 148). Estas observações vão na mesma direção do apontamento de BHABHA sobre as relações entre o espaço urbano e o “popular”: “(...) é a cidade que oferece o espaço no qual identificações emergentes e novos movimentos sociais do povo são encenados.” (BHABHA, 1998: 237).
No caso brasileiro isso parece especialmente marcante, pois, como aponta WISNIK, a música popular “(...) constitui um artesanato que foi se desenvolvendo nas dobras e nas sobras, nas barbas e nas rebarbas do processo de modernização do país (...)” (WISNIK, 2004: 178), inserindo-se no mercado e na cidade, adotando procedimentos da poesia culta e se reproduzindo no contexto da indústria cultural, sem descolar-se completamente do contato com a cultura popular não-letrada, sem prender-se aos critérios de filtragem da cultura erudita e sem adotar unicamente os procedimentos de estandartização dos meios massivos.
Segundo TATIT, dois eventos marcaram a produção de canções neste período: a institucionalização do carnaval e a consolidação do rádio (TATIT, 2001: 226). E todos dois configuram o esteio da incorporação do samba, por conseqüência, daquilo que Ênio SQUEFF denominou “gesto” do negro, encarnado na simbiose entre trabalho e ritmo que configurava uma estratégia de sobrevivência ( SQUEFF & WISNIK, 1983:44-45). O samba, como diria Hermano VIANNA, tinha “(...) ‘tudo’ a seu dispor para se transformar em música nacional”. E, por isso mesmo, opera-se uma colonização interna, já que a definição do samba como “o” ritmo nacional desloca outros gêneros para a classificação regional (VIANNA, 1995: 110-111). O resultado mais bem acabado do projeto é o samba exaltação, cujo carro chefe foi Aquarela do Brasil, de Ary Barroso.
Neste ponto, “salta aos ouvidos” a importância do papel desempenhado pela Rádio Nacional. Seu alcance (ondas curtas e médias) era, de fato, nacional. Seus programas de maior audiência incluíam música popular e eram todos irradiados do Rio de Janeiro. Segundo Ruy CASTRO, seu
“(...) departamento musical (...) era um cenário de Primeiro Mundo. Nele cabiam nada menos que seis estúdios e o auditório (...) O elenco fixo – e contratado! – era um who’s who da música brasileira, com cerca de 160 instrumentistas, noventa cantores e quinze maestros, entre os quais Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli“. (CASTRO, 1990:60)
Toda esta estrutura estaria posta a serviço de “cantar a nação”. Inclusive permitindo a execução de arranjos mais exuberantes, grandiosos, nos estúdios de gravação ou das rádios. A instrumentação simples dos “regionais” foi sendo substituída por grandes orquestras. Neste ponto, Santuza NAVES chama a atenção para a influência que o jazz norte-americano exercera sobre as formações instrumentais dos conjuntos brasileiros, exemplificando com a viagem d’ Os Oito Batutas a Paris em 1922, na qual Pixinguinha ganhara um saxofone. Implementava-se, segundo a autora, uma estética do excesso, bem visível no choro (NAVES, 1998:174). Parece-me, nesse momento, que arranjadores como Radamés Gnatalli ou o próprio Pixinguinha procuravam utilizar os recursos dos instrumentos para equiparar tecnicamente o samba a outros gêneros identificados como “nacionais” em outros países (tango argentino, fox norte-americano, etc.) mas sem perder o referencial estético que se afirmava no samba. Em 1928, o crítico Cruz Cordeiro acusaria Pixinguinha de sofrer influência norte-americana, inclusive no Carinhoso. Mas, como bem coloca VIANNA, foi exatamente a consolidação do samba carioca como música nacional que deu fundamento às ameaças de influência alienígena (VIANNA, 1995: 117-118).
Segundo TATIT, dois eventos marcaram a produção de canções neste período: a institucionalização do carnaval e a consolidação do rádio (TATIT, 2001: 226). E todos dois configuram o esteio da incorporação do samba, por conseqüência, daquilo que Ênio SQUEFF denominou “gesto” do negro, encarnado na simbiose entre trabalho e ritmo que configurava uma estratégia de sobrevivência ( SQUEFF & WISNIK, 1983:44-45). O samba, como diria Hermano VIANNA, tinha “(...) ‘tudo’ a seu dispor para se transformar em música nacional”. E, por isso mesmo, opera-se uma colonização interna, já que a definição do samba como “o” ritmo nacional desloca outros gêneros para a classificação regional (VIANNA, 1995: 110-111). O resultado mais bem acabado do projeto é o samba exaltação, cujo carro chefe foi Aquarela do Brasil, de Ary Barroso.
Neste ponto, “salta aos ouvidos” a importância do papel desempenhado pela Rádio Nacional. Seu alcance (ondas curtas e médias) era, de fato, nacional. Seus programas de maior audiência incluíam música popular e eram todos irradiados do Rio de Janeiro. Segundo Ruy CASTRO, seu
“(...) departamento musical (...) era um cenário de Primeiro Mundo. Nele cabiam nada menos que seis estúdios e o auditório (...) O elenco fixo – e contratado! – era um who’s who da música brasileira, com cerca de 160 instrumentistas, noventa cantores e quinze maestros, entre os quais Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli“. (CASTRO, 1990:60)
Toda esta estrutura estaria posta a serviço de “cantar a nação”. Inclusive permitindo a execução de arranjos mais exuberantes, grandiosos, nos estúdios de gravação ou das rádios. A instrumentação simples dos “regionais” foi sendo substituída por grandes orquestras. Neste ponto, Santuza NAVES chama a atenção para a influência que o jazz norte-americano exercera sobre as formações instrumentais dos conjuntos brasileiros, exemplificando com a viagem d’ Os Oito Batutas a Paris em 1922, na qual Pixinguinha ganhara um saxofone. Implementava-se, segundo a autora, uma estética do excesso, bem visível no choro (NAVES, 1998:174). Parece-me, nesse momento, que arranjadores como Radamés Gnatalli ou o próprio Pixinguinha procuravam utilizar os recursos dos instrumentos para equiparar tecnicamente o samba a outros gêneros identificados como “nacionais” em outros países (tango argentino, fox norte-americano, etc.) mas sem perder o referencial estético que se afirmava no samba. Em 1928, o crítico Cruz Cordeiro acusaria Pixinguinha de sofrer influência norte-americana, inclusive no Carinhoso. Mas, como bem coloca VIANNA, foi exatamente a consolidação do samba carioca como música nacional que deu fundamento às ameaças de influência alienígena (VIANNA, 1995: 117-118).
O discurso sobre o “nacional” precisava, assim, criar um embate com o estrangeiro. Teremos aí um rico veio de temática composicional, particularmente a que trata das relações entre a música brasileira e a norte-americana, com canções como Não tem tradução, de Noel Rosa, Brasil pandeiro, de Assis Valente ou Chiclete com banana, do repertório de Jackson do Pandeiro. Na letra das duas últimas, vê-se claramente que os signos do nacional – gêneros / instrumentos musicais, lugares e comidas – são contrapostos e valorizados diante dos signos do estrangeiro norte-americano. Enquanto Brasil pandeiro constata o interesse do “Tio Sam” em conhecer e dançar a batucada, Chiclete com banana impõe uma condição de igualdade nos termos da troca, pois para pôr bebop no samba exige como compensação que o boogie-woogie adote o pandeiro e o violão.
Não surpreende estas duas últimas terem sido regravadas no início dos anos 70, pelo grupo Novos Baianos (LP Acabou Chorare, 1972) e por Gilberto Gil (LP Expresso 2222, 1972), respectivamente. Vale notar que o arranjo dos “novos baianos” é bem mais tradicionalista do que o do “velho” baiano Gil, fazendo uso do instrumental característico do conjunto “regional” (violões, cavaquinho, bumbo, pandeiro). A gravação de Gil, por sua vez, busca efetuar a proposta de fusão de gêneros apresentada na letra, especialmente pelo trabalho violonístico que cruza procedimentos de blues, jazz e rock com samba, resultado que pode ser atribuído ao seu desenvolvimento como instrumentista no período do exílio em Londres
Interessante que Carmem Miranda não tenha querido gravar Brasil pandeiro, que Assis Valente lhe ofereceu quando de sua partida para os Estados Unidos em 1939. Se a canção enunciava o interesse do Tio Sam pela batucada, também perigosamente propunha uma equivalência entre as culturas, ao propor que o mesmo “anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato”. Posteriormente, ao ser acusada de se americanizar, ela responderia com a gravação da canção Disseram que voltei americanizada, de Luiz Peixoto e Vicente Paiva.
A bibliografia do trecho citado:
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
CASTRO, Ruy. Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MARTÍN BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
SQUEFF, Ênio & WISNIK, José.Miguel. O nacional e o popular na cultura brasileira: música. São Paulo: Brasiliense, 1983.
TATIT, Luiz. Quatro triagens e uma mistura: a canção brasileira no século XX. In: MATOS, Cláudia; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda. Ao encontro da palavra cantada. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001, pp. 223-236.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
WISNIK, José Miguel. Sem receita: Ensaios e Canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
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