Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

27 de abril de 2015

1a. c/ a 7a. A queda - Ruy Guerra, 1976

Em meio à correria de imensos e intermináveis afazeres burocráticos, agravados pela minha condição atual de coordenador do curso de Museologia da UFMG, fora um artigo e um relatório de pesquisa que teimam em não ficar prontos além da conta, vou achando brechas para tocar a reforma do Massa Crítica.Uma das propostas é retomar séries esporádicas e transformar em colunas mais regulares. É o caso de 1a. c/ a 7a., que explora os vínculos entre música popular e cinema.
Ontem, em mais uma especialíssima edição do palcomeu, promovido pelo mestre Maurício Ribeiro - figura chave na nossa cena BHzeira atual, compondo, tocando, arranjando, arrumando, congregando, promovendo, e ainda fabrica a cerveja! - fui conferir a apresentação espetacular das francesas Aurélie & Verioca [um abraço transcultural (ir) reverente, competente e carinhoso dessas talentosas moças em volta das pérolas da música brasileira, enfeitado pela dicção, verve e poesia da língua dos francos], a que se seguiu a habitual roda de música e papo com presenças ilustríssimas e casos que depois posso contar. 
Por agora conto que cantou-se e falou-se de "E daí? (A queda)", música de Milton Nascimento para letra (!) de Ruy Guerra. Daí a vontade de postar sobre, inclusive pq a gravação que surge no início e ao final do filme é diferente daquela do álbum Clube da Esquina 2. E que filme! Raio-x de um Brasil que é diferente do nosso, ainda assim sinto que continuamos caindo, junto com o operário vivido por Hugo Carvana. Em tempos de tentativa de impor a terceirização, a fita ganha uma atualidade e urgência inegável [ver por exemplo de 0:53:00 - 0:54:35 aqui]. Vale assistir:




Sinopse:
O filme A queda conta a história de um operário, empregado na construção do metrô do Rio de Janeiro que, em um dia aparentemente comum em seu trabalho, cai e morre, devido à falta de segurança na obra.
A empreiteira evita a divulgação do ocorrido e tenta subornar a viúva, para que a responsabilidade da morte recaia sobre a própria vítima. Um antigo companheiro do operário, contando com a ajuda de um jornalista e de um advogado, decide lutar para que a verdade e a justiça prevaleçam.

Ficha técnica:
Ano: 1976. Gênero: drama. Direção: Ruy Guerra e Nelson Xavier, com Nelson Xavier, Lima Duarte, Isabel Ribeiro, Maria Sílvia, Hugo Carvana, Paulo César Pereio, Carlos Eduardo Novaes, Ronald Monteiro, Ruy Guerra, Helber Rangel e Álvaro Freire

Vale ouvir:

E daí? (A queda) Milton Nascimento e Ruy Guerra

Tenho nos olhos quimeras
Com brilho de trinta velas
Do sexo pulam sementes
Explodindo locomotivas
Tenho os intestinos roucos
Num rosário de lombrigas
Os meus músculos são poucos
Pra essa rede de intrigas
Meus gritos afro-latinos
Implodem, rasgam, esganam
E nos meus dedos dormidos
A lua das unhas ganem
E daí?


Meu sangue de mangue sujo
Sobe a custo, a contragosto
E tudo aquilo que fujo
Tirou prêmio, aval e posto
Entre hinos e chicanas
Entre dentes, entre dedos
No meio destas bananas
Os meus ódios e os meus medos
E daí?


Iguarias na baixela
Vinhos finos nesse odre
E nessa dor que me pela
Só meu ódio não é podre
Tenho séculos de espera
Nas contas da minha costela
Tenho nos olhos quimeras
Com brilho de trinta velas
E daí?





2 comentários:

  1. Luiz, não é o sogro do operário que se engaja pela justiça, não. É o amigo dos tempos dos Fuzis. :)

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    1. Verdade, Sheyla. Vou revisar a sinopse, comi essa mosca na época da redação da postagem. Valeu.

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