Seguindo em frente com essa série, motivado pelo dia de Iemanjá e minha recente passagem pela Bahia vou falar da canção Baião nosso de cada dia (música de Pablo Castro, letra de Luiz H. Garcia), que por muitos anos era carinhosamente conhecida por nós e o círculo composto pelos músicos que a tocavam e alguns amigos próximos como Baiãozinho, ou Baiãozim. O diminutivo e a sílaba "im" - índice de fala brasileira interiorana - eram elementos distintivos da canção. Relutei muito em adotar outro título que não esse que me parecia consagrado pelo uso. O Pablo insistiu na mudança e me venceu, um tanto pelo cansaço e outro tanto porque nas sucessivas tentativas de encontrar uma boa alternativa, acabei me inspirando na sacada de O patrão nosso de cada dia dos Secos & Molhados. Resolve bem pois remete tanto ao elemento religioso quanto ao cotidiano que era o ponto de partida da letra. A primeira parte da canção e a levada sugeriam o Nordeste, certamente muito mais aquele construído no imaginário pelas canções de muitos compositores que tomamos como referência, do que o efetivo. Nos idos de 2004, 2005, quando o baiãozinho foi surgindo, eu sequer havia estado lá - talvez por isso algumas polvilhadas de mineiridade possam ser percebidas. Tínhamos desde o princípio a vontade de fazer algo básico, telúrico, popular no sentido mais pleno do termo. Usar coisas como sol, lua, dia, noite, expressões e formas coloquiais como "a bênção ao padim", "fio de deus", acompanhá, agradá, por exemplo. A coisa ficou mais atmosférica, em que o eu lírico em primeira pessoa parece transmutar-se de pedreiro em pescador, de migrante em pessoa de fé. A religião não era um elemento assim tão central até a sugestão de frase do Pablo "se amanhã Iemanjá" que deu rumo à letra da parte B, que em seguida fui consolidando em cima do tema do sincretismo. "Baião..." tem muito evidenciada essa dimensão da parceria, em detalhes do tipo eu decidi homenagear minha avó incluindo a Santa Tereza e o Pablo sugerir a inclusão do chuchu para agradar, homenageando a dele. Também inseri o "descontente" (no lugar de algo como "aflito, crente") para remeter a Banda dos descontentes, e "revolvo" numa alusão a Revolver, dos Beatles, banda que tem culpa no cartório no que tange ao início da nossa longa amizade. Um detalhe curioso da letra, por fim, são as interrogações. Estão ali como questionamentos não conclusivos da eficácia dos ritos que a parte B destaca a partir dos santos e dos objetos de culto.
Baião nosso de cada dia (música de Pablo Castro, letra de Luiz H. Garcia)
Pai do céu de dia sol queimando forte
descontente dei duro então
quero rapadura mais um beijo e um quindim
suquim, jiló, só pra acompanhá minha dó
Mãe do mar de noite brilha a luz da lua
que ilumina o teu colo então
quero truta, lula, mais piaba e surubim
gelim, forró só pra aliviá meu gogó
Em noite de São João
se amanhã Iemanjá
pode o canto tanto santo encantar?
Fio de Deus eu faço a minha caridade
rezo, bebo a Santa Tereza então
peço bem baixinho a benção ao padim
rolim, filó chuchu pra agradá minha vó
Levo o rosário na mão
revolvo os búzios do mar
pode o tempo tanto pranto enxugar?
Tivemos também a alegria de ter essa canção gravada belamente pela cantora Lívia Lucas, mineira de Juiz de Fora radicada em Barcelona.
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