Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

12 de abril de 2015

BAIÃO NOSSO DE CADA DIA



Seguindo em frente com essa série, motivado pelo dia de Iemanjá e minha recente passagem pela Bahia vou falar da canção Baião nosso de cada dia (música de Pablo Castro, letra de Luiz H. Garcia), que por muitos anos era carinhosamente conhecida por nós e o círculo composto pelos músicos que a tocavam e alguns amigos próximos como Baiãozinho, ou Baiãozim. O diminutivo e a sílaba "im" - índice de fala brasileira interiorana - eram elementos distintivos da canção. Relutei muito em adotar outro título que não esse que me parecia consagrado pelo uso. O Pablo insistiu na mudança e me venceu, um tanto pelo cansaço e outro tanto porque nas sucessivas tentativas de encontrar uma boa alternativa, acabei me inspirando na sacada de O patrão nosso de cada dia dos Secos & Molhados. Resolve bem pois remete tanto ao elemento religioso quanto ao cotidiano que era o ponto de partida da letra. A primeira parte da canção e a levada sugeriam o Nordeste, certamente muito mais aquele construído no imaginário pelas canções de muitos compositores que tomamos como referência, do que o efetivo. Nos idos de 2004, 2005, quando o baiãozinho foi surgindo, eu sequer havia estado lá - talvez por isso algumas polvilhadas de mineiridade possam ser percebidas. Tínhamos desde o princípio a vontade de fazer algo básico, telúrico, popular no sentido mais pleno do termo. Usar coisas como sol, lua, dia, noite, expressões e formas coloquiais como "a bênção ao padim", "fio de deus", acompanhá, agradá, por exemplo. A coisa ficou mais atmosférica, em que o eu lírico em primeira pessoa parece transmutar-se de pedreiro em pescador, de migrante em pessoa de fé. A religião não era um elemento assim tão central até a sugestão de frase do Pablo "se amanhã Iemanjá" que deu rumo à letra da parte B, que em seguida fui consolidando em cima do tema do sincretismo. "Baião..." tem muito evidenciada essa dimensão da parceria, em detalhes do tipo eu decidi homenagear minha avó incluindo a Santa Tereza e o Pablo sugerir a inclusão do chuchu para agradar, homenageando a dele. Também inseri o "descontente" (no lugar de algo como "aflito, crente") para remeter a Banda dos descontentes, e "revolvo" numa alusão a Revolver, dos Beatles, banda que tem culpa no cartório no que tange ao início da nossa longa amizade.  Um detalhe curioso da letra, por fim, são as interrogações. Estão ali como questionamentos não conclusivos da eficácia dos ritos que a parte B destaca a partir dos santos e dos objetos de culto.  

Baião nosso de cada dia (música de Pablo Castro, letra de Luiz H. Garcia)  

Pai do céu de dia sol queimando forte 
descontente dei duro então 
quero rapadura mais um beijo e um quindim 
suquim, jiló, só pra acompanhá minha dó 

Mãe do mar de noite brilha a luz da lua 
que ilumina o teu colo então 
quero truta, lula, mais piaba e surubim 
gelim, forró só pra aliviá meu gogó 

Em noite de São João 
se amanhã Iemanjá 
pode o canto tanto santo encantar? 

Fio de Deus eu faço a minha caridade 
rezo, bebo a Santa Tereza então 
peço bem baixinho a benção ao padim 
rolim, filó chuchu pra agradá minha vó 

Levo o rosário na mão 
revolvo os búzios do mar 
pode o tempo tanto pranto enxugar?
   
Tivemos também a alegria de ter essa canção gravada belamente pela cantora Lívia Lucas, mineira de Juiz de Fora radicada em Barcelona.

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