Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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28 de outubro de 2016

Eldorado Subterrâneo da Canção - Lá vem chuva

Sergio Santos (site oficial, aqui) é um craque total: compõe muito, em qualidade e quantidade, canta demais, toca violão de verdade, harmoniza como poucos e ritmiza bem para além da média. Herdeiro da vertente mais dourada da grande MPB, no veio de Edu Lobo, Francis Hime, Dori Caymmi, Sergio é o artista mineiro mais consistente e reconhecido de Minas depois do Clube da Esquina : com 8 discos de altíssimo nível gravados, é tido como um dos principais expoentes da música brasileira criativa, alimentado e alimentando sua incrível parceria com a lenda Paulo César Pinheiro: é simplesmente o maior parceiro do letrista mais fecundo da história de nossa música. 

Aqui em Lá Vem Chuva vemos um raro ijexá-blues de Sergio, em território já antes explorado por Edu Lobo em coisas como A Bela e A Fera. Transformar um acorde que normalmente funciona como dominante em tônica é a grande sacada do blues e do rock. Sergio utiliza essa tensão do acorde principal como motivo para a apreensão da iminência do toró , mas a narrativa harmônica passa por paragens bem insuspeitas para uma mirada bluseira:

E7(#9)(#11) | Bb7(b5) | A7(13) | G7(13) | G#m7(11) | C#7(#9) | C7(11)(9)| F#m7(11) | F#7(b5) | G7M(#11) | Bb7M(#5) | D7(11)(9)| C#7(11)(9) | B7(#9) | E7(#9)|

Sérgio promove uma expansão do léxico tensionado das harmonizações roqueiras assim como quem dá uma voltinha na praça. Presente em seu disco Litoral e Interior (2010 - ouça aqui)*, com virtuoses como André Mehmari, Teco Cardoso e o produtor Rodolfo Stroeter, a música de Sergio brilha reluzente ainda que sob o risco da tempestade. 

Quisera o rock e o blues propriamente ditos se enriquecessem dos caminhos harmônicos do Sergio Santos; seria um renascimento desses gêneros hoje atados a um tradicionalismo paralisante. Por outro lado, isso é apenas uma canção de Sergio, de uma obra por onde é difícil saber pincelar apenas uma faixa. Nessa leva de 30 que pretendo comentar, uma apenas seria uma injustiça para com a qualidade deste mestre.
Quisera BH ouvisse mais um dos mais importantes mineiros quando se trata de música popular.


Lá Vem Chuva ( Sergio Santos / Paulo Cesar Pinheiro )

Andorinha voou
vendo do topo que vem toró
Alvoroço de sassaúva é que lá vem chuva
aguaceiro só
Prosa tá muito boa
Mas a garoa já molha o pó
Eu vou ter que ir embora
Já tá na hora
Eu vou lá pro cafundó 


Marimbondo assanhou
Se arrepiou galo carijó
Deve ter boda de viúva, que lá vem chuva
E ainda brilha o sol
Eu tenho é chão de terra
E o céu da serra já deu um nó
Deixa a prosa no meio
tempo tá feio
Eu vou lá pro cafundó


Picando a mula eu já tô
Chuveirou, mano me pegue o chapéu e o paletó
Vai ter pé d'água a valer
Vou correr
Que eu vou lá pro cafundó


* PS : Compartilho aqui também a excelente resenha sobre o show do álbum Litoral e Interior, por Tulio Ceci Villaça [n.e. : no blog Sobre a Canção, que sempre recomendamos por aqui]


P.S. do editor: apenas para chamar a atenção para a habilidade de Paulo César Pinheiro em capturar nos versos, nas imagens, nos ditos, no vocabulário, o universo cultural do Brasil profundo que teima em durar apesar de tantas intempéries. 

18 de julho de 2016

1a. c/ a 7a. Os cinemas cantados na música popular

Um dos grandes momentos das atividades culturais que realizei durante o último Congresso da IASPM-AL em Havana foi sem dúvida uma perambulação pela Calle 23, bem pertinho de onde estava hospedado. Ponto de grande agito cultural e movimentação, casas com música ao vivo e cinemas, como o Cine La Rampa, um cinemão, rampa acarpetada, balcão, cadeiras com encosto de madeira, lembrando muito por dentro o Cine Brasil da BH da minha infância.  

Lembrei disso tudo ouvindo a composição Cinema Rio Branco do excelentíssimo Sergio Santos , inspirada num cinema de Varginha. Aliás, vale ouvir de cabo a rabo seu disco Litoral e Interior (Biscoito Fino, 2010) mais um primor da lavra dessa figura central da música popular mineira e brasileira. 


Lembrei, logo na sequência, da belíssima Cine Baronesa, mais uma pérola do grande Guinga, desta feita em parceria com Aldir Blanc, gravada com a participação do quarteto Maogani e da cantora Fátima Guedes no disco homônimo de 2001 (saiu pela gravadora Caravelas - aqui uma resenha do disco).



Mesmo quando os lugares se vão, a música pode perpetuá-los pelo modo como expressa seus significados lembrados através do som e pela forma como os ouvintes podem reconhecê-los. Uma pena que quase não há cinemas assim mais, mas ao menos resta a possibilidade da rememoração, se for em música então, ainda mais comovente.
Há uma lista interminável de canções que fazem referência a cinemas, esses templos modernos do deslumbramento com a imagem e som em movimento. Como é uma postagem de férias, deixo aos leitores que porventura se animarem a tarefa de encompridá-la. 

13 de maio de 2015

Upa, critatividade!

Este texto, gentilmente cedido pelo Sérgio Santos, que além de nos brindar com uma obra musical profícua, deslumbrante, de quebra lança reflexões de uma pertinência e elaboração que dispensam comentários, basta ler. Aqui ele discorre - partindo de magnífica performance de Elis Regina na tv francesa em 1968, acompanhada de feras como Roberto Menescal e Erlon Chaves - sobre o problema da criatividade e da excelência no cenário musical, considerando suas transformações nas últimas décadas. Para curtir e pensar:
"Vendo esse video, me dei de cara com a passagem do tempo. Peço que o assistam antes de ler o post.



E aí, viram? Isso aconteceu em 1968, há 47 anos. Quase meio século! E Elis, linda, estava na flor dos seus 23 anos. Edu Lobo, autor da música tinha 25. Pensando na música, esse conteúdo aí beira a perfeição, gravado ao vivo em algo que parece uma mera passagem de som, na França. Arranjo mortal, executado milimetricamente, com um suingue arrasador. E vai-se esperar o que de uma intérprete como Elis, no auge da gana musical da juventude, com um bando de feras ao lado, e ainda cantando Edu? Pois bem, para mim está aí o exemplo mais cabal do quanto andamos para trás. Será que a imensa maioria dos jovens de 20 e poucos anos que pretendem a cena musical hoje, sabem que no seu país, há quase meio século, jovens da mesma idade ganhavam o mundo fazendo música nesse nível? A maioria hoje ao menos sabe da existência dessa música? Antes de me chamarem de saudosista, pensem que não fomos capazes enquanto produtores, mercado e público, de garantir a simples existência desse patamar de excelência musical com o passar dos anos. Isso não é saudosismo, é fato: nossa indústria e nossa mídia literalmente jogaram fora a preciosidade que esse nível de exigência musical significa. Particularmente para a mídia que nos privou da diversidade, esse grau de excelência já morreu e com ele a continuidade da criatividade na música. E não estou falando de estilo, de MPB ou outras baboseiras: pode-se ser criativo em qualquer estilo. O que quiseram tornar fora de moda não foi um estilo, mas a própria criatividade!! É óbvio que ainda há hoje jovens, teimosos estranhos no ninho, fazendo música nesse nível, e eu fico feliz igual pinto no lixo ao ver que, apesar de tudo, a música de verdade não pára, ela vai sempre seguir em frente, usando agora de novos caminhos. Só que daqui há mais 50 anos, se nos mantivermos nessa incapacidade burra, quem saberá disso? Será que ninguém percebe que a música é uma das formas de identidade de nação, e que a educação musical, muito mais que uns caraminguás nas mãos de alguns, é uma das chaves para a construção de riquezas? Sim, originalidade, criatividade, linguagem própria são geradores de riqueza!!! Matar a galinha dos ovos de ouro, é a imagem que me vem. Mais que com a burrice, a indignação é com o desperdício!" Por Sérgio Santos

10 de dezembro de 2014

Bolacha Completa - Áfrico (2002)

Não poderia ser mais oportuna a ocasião para incluir este na série Bolacha Completa. Enquanto refletimos sobre os rumos da canção,  fica cada vez mais evidente a sua pujança, a sua capacidade de metamorfosear-se à medida que novos desafios impostos pelos contextos mutantes em que se dão sua criação e escuta. O que me impressiona é a capacidade dos compositores de encontrar soluções diversas e instigantes para a equação tradição x inovação, em que não haja dogmatismo, mas também não se recaia em total descompromisso. Hoje caminhei por um parque um tanto inusitado aqui de Belo Horizonte, o Julien Rien (quem quiser saber mais, aqui), basicamente feito de escadarias articulando pequenos recantos e pracinhas, toques de cimento no meio do arvoredo. São ramificações, sejam as das árvores, sejam as das escadarias, que me sugerem essa imagem combinando cultura e natureza. Num Brasil sempre às voltas com a grandiosidade de suas perdas e seus ganhos, a música popular se espalha qual floresta mesmo em tempos de seca e desmatamento. 

Vamos ao disco propriamente, que é a razão de ser da postagem, e para tanto aproveito como de costume as sintéticas e apuradas resenhas de meu parceiro Pablo Castro:
Ouvindo de novo as faixas do disco Áfrico, de Sergio Santos Perfil Lotado, lançado em 2002, que tinha escutado na época. Esse disco é um feito extraordinário, pela maneira como funde um apuro instrumental fantástico, vestindo canções de um arrojo rítmico que seria o desdobramento em últimas consequências das pulsões afro-brasileiras do Djavan, do Gil e do João Bosco, divisões melódicas incríveis, e letras de Paulo César Pinheiro, destilando o léxico índio-africano que se impregnou na língua brasileira.
Preciso estudar de novo sua obra , que é um elo importante de um tronco da MPB mais ligada na estilização desses ritmos, mas que no aspecto harmônico e formal também não é nada trivial.
Até porque terei o prazer de bater um papo com ele sobre sua música, na próxima sexta, dentro da programação da Mostra Cantautores.
Do site oficial Sérgio Santos vou citar a ficha técnica do disco [também é possível ouvir algumas faixas, acompanhadas das letras, além de comprar], indispensável para visualizarmos na escalação de tantos craques uma espécie de preâmbulo a todo refinamento que logo irá adentrar nossos ouvidos. 

FICHA TÉCNICA
Produzido por Rodolfo Stroeter
Violão, voz e arranjos: Sérgio Santos
Baixo acústico e elétrico: Rodolfo Stroeter
Bateria: Tutty Moreno
Piano: André Mehmari
Saxofones e Flautas: Teco Cardoso
Saxofone alto, Clarinete e arranjo em Áfrico: Nailor Proveta
Percussão: Marcos Suzano e Robertinho Silva
Vocais: Martinália, Ana Costa e Analimar

Participações Especiais
Grupo Uakti: Artur Andrés, Paulo Sérgio Santos, Décio Ramos, Josefina Cerqueira e Marco Antônio Guimarães, em Galanga Chico-Rei e Quilombola
Joyce, em Quilombola
Lenine, em Nossa Cor
Olivia Hime, em Vem Ver

Gravado e mixado no Estúdio Sarapuí (Biscoito Fino), por Gabriel Pinheiro, em setembro / outubro de 2001. Grupo Uakti gravado nos Estudio Bemol (Belo Horizonte), por Dirceu Cheib. Masterizado na Visom Digital, por Luiz Tornaghi.
Segue a minha faixa preferida e também é possível ouvi-lo aqui.