Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

23 de janeiro de 2020

O estridente silêncio

Vem repercutindo em alguma medida o texto publicado por Anderson França em coluna da Folha de São Paulo [completo, aqui] em que ele despeja críticas ao silêncio dos que denomina de modo meio desajeitado de "a turma da cultura de massa" da "classe artística" quanto ao famigerado pronunciamento nazista do ex-secretário de cultura do governo Bolsonaro. A espinafrada que ele deu nessa gente é válida, mas entretenimento é uma coisa e arte é outra, vamos combinar. Claro que ele é apenas um articulista e não tem obrigação de dominar densos conceitos de sociologia da cultura para tecer seus comentários, mas a indistinção que expressa, de modo acrítico, seja quando não discrimina o que seja uma coisa e outra, seja quando igualmente não se dá conta de como sua demanda central é contraditória e finalmente falaciosa. Ora, se ele e nós leitores sabemos perfeitamente que para alcançar o Olimpo do sucesso massificado da indústria cultural é preciso grande conformidade ao "sistema", cobrar deles a tal 'postura' nada mais é do que um recurso retórico. Nesse ponto vale a provocação, até porque ele dá nome aos bois e vacas - mas reparem que pouco fala das "fazendas". Mas pior, ele realmente acredita e exemplifica bizarramente citando majoritariamente artistas gringos - é indisfarçável sua ambiguidade quanto ao país a cuja realidade ele precisa "respirar fundo" para voltar - que supostamente seriam o exemplo de engajamento político que ele gostaria de ver por aqui. O cara deveria pesquisar sobre a Beyoncé e sua fábrica de roupas exploradora de trabalho escravo... é um americanizado deslumbrado (oh, viva o país onde tempo é dinheiro$), que nem está vivendo no Brasil, ironicamente... hoje em dia dão colunas pra qualquer um mais ou menos articulado, mesmo que não seja bem informado. Eu já tinha lido uma ou outra coisa do Anderson e guardado incômodo quanto ao identitarismo deslumbrado de seus textos, e atualmente a grande mídia faz de tudo para incorporar essa postura ideológica à sua carteira de produtos, enquanto constata desesperada a fuga de anunciantes e multidões de leitores a galope no lombo da mula fascista a que ela própria deu capim. Aliás, tenho sérias dúvidas de que a coluna alcance alguém além da bolha (quem lê Folha hoje em dia?) de quem já está cansado de saber o que "pensam" os disseminadores de agrotoxicidade convertida em sinais audiovisuais. O mesmo vale para isto que escrevo neste castigado blog. 
Agora, para ser preciso mesmo, essa galera se posiciona sim, a favor disso que está aí, com diferentes graus de compromisso e contundência. Normalmente pela roupagem do marketing. Hoje diminuiu só porque não tem mais showmício. Senão estariam quase todos no palanque da reaçada. E aí é que está, um bom momento da crítica dele é a constatação de que o Brasil exposto nas redes sociais dos grandes do entretenimento não tem pobres. É certeiro acusá-los de defender tácita ou explicitamente os governantes que oprimem aqueles que são a fonte última de sua riqueza. Mas uma leitura atenta revela que há premissas equivocadas e que merecem ser descortinadas.
Eu até poderia ir linha a linha mas vou tentar ser sintético. Em seu raciocínio opera uma assepsia da nossa História social e cultural, aprendida com esmero nos manuais do identitarismo estadunidense. Desse modo ele separa sem nenhum esforço ou ponderação os ditos artistas de seu público e de suas origens sociais, e num passe de mágica e sem dialética alguma, essas pessoas estão totalmente excluídas da equação cultural da qual fazem parte. É essa fábrica incessante de guetos retóricos que permite ao autor acusá-las de parasitas das criações populares. Esse purismo é pueril ou canalha? Difícil saber. Uma das aplicações vergonhosas dessa versão deturpada do conceito de "lugar de fala" que anda por aí é que o dono da voz só o concede a quem lhe apetece. Ora, então um sertanejo de sei lá qual geração não pode ter tido pais ou avós que lidaram com a terra diuturnamente, e lhe ensinaram a cantar? Pra ele a herança não pode ser reivindicada? Adianto que estou provocando para demonstrar a incoerência mas não concordo com essa besteira de apropriação cultural, cultura é algo dinâmico e nômade, requerer propriedade dela, é, finalmente, um contrassenso.  Os funkeiros (curiosamente poupados salvo menção desviada de Anitta) não cresceram e fizeram seu nome nas favelas pra começar? Que diabo é isso de falar em público neo-branco (???) quando ao mesmo tempo se sabe que as maiorias no Brasil não são brancas, e que ele mesmo diz que esse pessoal é sustentado pela massa. Decida-se! Esse eugenismo narrativo mais confunde que explica, perde sempre de vista que não somos os Estados Unidos - engraçado como o sonho americano tem várias versões de acordo com o cliente, pois tem um cantinho de sereia cheio de vibrato para os "ativistas identitários" também. 
Há um nexo nada casual entre o modelo piramidal de ascensão propugnado seja na falácia meritocrática, seja no modelo de recompensa neopentecostal. O espetáculo de opulência dos selfmades (e self-makers) que converte afluência (não necessariamente concreta) em ostentação expressa totalmente esse modelo do “delírio brasileiro”, insustentável para a grande maioria mas hegemonicamente afirmado através de figuras como jogadores de futebol, astros de TV ou influenciadores digitais. E aqui a porca torce o rabo onde o identitarismo confunde o êxito dos eleitos dentro dessa lógica acomodada ao consumo e à exploração do trabalho tipicamente capitalistas com o ganho de um “lugar” e a demonstração de uma “resistência”.
O França, portanto, teve a vista nublada pela fumaça de gelo seco do palco do Jay-Z. Perdeu de vista que nessa ótica globalizada, o apagamento do pobre das contas dos bem sucedidos vindos de baixo é uma performance que diz muito sobre o Brasil que existe e é desigual. E finalmente de que o alvo final de um cutucada até boa nessa turma é essa lógica, ou não será - quase - nada.


20 de janeiro de 2020

AREMBEPE

Tenho a felicidade de ser premiado com melodias maravilhosas por parceiros que, cada qual com seu estilo, seu traço, conseguem aliar inspiração e esmero, tornando a minha vida relativamente fácil na hora de escrever a letra.
O Artur é do Ceará - ainda que, como mineiro adotivo que se tornou deve compreender bastante bem o que nós dessa terra de montanhas sentimos diante das imensidões azuis - e a sugestão na levada, no sabor da melodia, na delicada cama harmônica na qual nossos ouvidos deitam como se numa rede, tudo me sugeriu um tema praieiro, caymmiano, e eu lembrei de uma viagem em família à terra onde nasceu a Clarita Gonzaga (que bateu essa foto minha com nossos filhos), e de algumas histórias que ela já me contara sobre esse point da hippice brasileira e internacional: Arembepe. À medida em que as palavras óbvias que deveriam atender à necessidade de descrição de um cenário, remetendo a tudo que a imaginação e a própria estadia em terras baianas me gravara à memória, foi inevitável sugerir o título e dele extrair uma visualidade que remete reverentemente a um repertório imenso que povoou a música popular brasileira com exemplares de rara beleza, e não hesito em dizer, um recurso que nada tem de original, que é emular o deslocamento ondulante da música através de imagens que remetem a movimento ou repouso, o vento sopra, o coração para, a linha fisga, e finalmente os olhos do ouvinte devem, de algum modo, acompanhar os do "eu lírico" da canção enquanto eles observam a paisagem - no fundo, enquanto ele rememora aquilo que viu. Acabou ficando assim, só sugerido, meio enterrado na areia, um elemento cinemático, que nas primeiras versões era explicitado por uma referência pontual ao sobrenome de um cineasta que eu fora levado a acreditar que passara por Arembepe, que seria Bernardo Bertolucci, mas algumas reticências me levaram a descobrir que havia sido Roman Polanski. Desafortunadamente, a sílaba a menos e a ineficiência de outras soluções acabou derrubando essa pitoresca nota, substituída por sugestão do parceiro por "tua presença" - resta aí uma citação do baiano Caetano. 
Normalmente eu não costumo ser explícito e direto quanto a situações pessoais que inevitavelmente fazem parte dos ingredientes dentro do caldeirão no qual se cozinha uma letra de canção. Não sou de falar de mim nesses termos, digamos assim. Mas sei que certamente, mesmo naquelas canções em que aparentemente impera toda uma objetividade, uma opção por narrativa descritiva e tremendamente distanciada de minha própria existência e experiência individual, haverá traços inescapáveis - de repente, inconscientes - dessa particularidade, mesmo que eu intente escondê-los. Com certeza muitas das canções mais marcantes nos repertórios que guardamos conosco são essas em que o "eu lírico" se confunde ao intérprete, e ainda mais amalgamadamente ao cantautor, quando este está literalmente expondo suas vísceras em público. No instituto da parceria sobra ainda a possibilidade, da qual já provei, de ter que temperar as palavras de modo a capturar em seu sabor essa organicidade sem ter vivido nada daquilo, se conseguimos por forte entrosamento e empatia escrever aquilo que o parceiro queria dizer por si.
Dessa vez, portanto, não tive escapatória e minha vida pessoal escorreu para dentro da letra. Fiquei com um retrato registrado em canção de um momento muito feliz em família, uma viagem que planejáramos fazer por muitos anos, e finalmente realizada numa oportunidade propícia. O tempo - ah, esse brinquedo que os dedos do historiador que sou não largam - encarrega-se agora de emoldurar a fotografia daqueles dias inesquecíveis, enquanto a passagem de 2019 marcou também o encerramento do ciclo de um longo relacionamento, com serenidade e cuidado pelo que de mais bonito fizemos, representado sobretudo nos nossos rebentos que estão crescidos e prontos para dar seus próprios passos nas areias da vida.




Arembepe (Artur Araújo/Luiz Henrique Garcia)

O vento sopra de leve
Entre as palmeiras descreve
o meu coração
para
suspenso ali
para
realça
a linha que
fisga dentro do meu peito

sigo a embarcação
sempre
rebentação
tempo

tempo
leve pr’Arembepe meu bem
guarde na lembrança esse céu
onde o sonho foi
silêncio e sol
luz que tua presença captou

21 de dezembro de 2019

1a c/ a 7a - Estou me guardando para quando o carnaval chegar

Assisti hoje, dentro da excelente mostra de cinema nacional recente realizada no Cine Humberto Mauro, ao documentário "Estou me guardando para quando o carnaval chegar", dirigido por Marcelo Gomes [entrevista], certamente mais reconhecido por Cinema, aspirinas e urubus. A narrativa crua - mas não nua, exatamente - de Toritama, cidade de 40 mil habitantes no agreste pernambucano responsável por 20% da produção nacional de jeans, emanando da boca de seus protagonistas, ainda que pontuada por uma narração em off que vai descrevendo um retrato contrastante dessa 'china com um carnaval no meio' com aquela cidade pacata de interior de que o cineasta se lembra de ter visitado com o pai. O título, pinçado da canção de Chico que por sua vez foi trilha original para o filme de Cacá Diegues,Quando o carnaval chegar, de 1972 [aqui para ver o filme e aqui para o trecho com a canção]. O diretor também lança mão de outras citações e procedimento metanarrativos, como por exemplo interromper o fluxo da narrativa e dirigir-se ao espectador para discutir a sua própria construção, demonstrando como a alteração do som (quase todo o tempo um uso brilhante da banda sonora tomada pelo recorrente e ensurdecedor barulho de máquinas de costura e outros aparelhos usados nas facções, fabriquetas de fundo de quintal que dominam a paisagem urbana de Toritama - uma das traduções do tupi poderia ser "terra da felicidade"), ou do ângulo da filmagem. Não tenho um domínio do repertório de documentários brasileiros sobre a questão do trabalho, mas claro que foi inevitável uma lembrança de Ilha das flores, porém me parece que "Estou me guardando" teve o cuidado de ser menos didático, jornalístico ou panfletário, nos deixando cada vez mais atônitos ante a convicção empreendedorista da grande maioria dos moradores que narram diferentes versões do "toritaman way of life", que é sobretudo marcado pelo imediatismo total - daí o lance provocativo com o título e a canção - totalmente afinado com uma perspectiva ultraliberal. Tal realismo, sem tutela da fala dos trabalhadores autônomos que se tornaram escravos de sua própria versão agreste de meritocracia, pontuado aqui e ali com as tiradas e criatividade de um povo que faz do improviso seu modo de viver e expressar, torna "Estou me guardando" um retrato ainda mais acurado do Brasil de hoje que Bacurau. E muito menos palatável.



2 de dezembro de 2019

Todos os malucos no mesmo galho

Quando a gente acha que já ouviu todo tipo de maluquice ser pronunciada por representantes do atual governo brasileiro, eis que o recém empossado presidente da Funarte, Dante Mantovani, revelou-se um contumaz distribuidor de asneiras e delírios através de um canal no You Tube [aqui a matéria da Folha sobre o assunto]. Não faz muito tempo, o ruminante da Virgínia, Orvalho de Cavalo [sic], andou espalhando o capim estragado que mastiga , afirmando que o filósofo (esse sim, ele não) Theodor Adorno teria escrito músicas dos Beatles. Mantovani tenta se igualar no besteirol, afirmando que
  
Não é que o Adorno tenha falado assim para os Beatles, ‘faça isso, faça aquilo, faça a liberação das drogas’. O teórico desenvolve a teoria e o agente vai lá e age”, diz. “Na esfera da música popular, vieram os Beatles, para combater o capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade comunista.

Ecoou imediatamente para mim a paranoia do macartismo nos EUA ou da Ditadura Militar made in Brazil. Lembrou-me ainda do achaque de fanáticos religiosos aos Beatles nos anos 1960, especialmente intensos depois de Lennon ter declarado marotamente que eles eram "mais famosos que Jesus". As besteiras de então, como as que um certo reverendo Nobel distribuiu no livro Communism, Hypnotism and The Beatles (1965) são o tipo de lixo eternamente reciclável.

Esse ataque, que em outras circunstâncias seria até divertido, é testemunho da degradação intelectual e de caráter que tomou conta do governo federal e se manifesta progressivamente em todas as suas instâncias. A censura, a truculência, o aparelhamento e o enviesamento de políticas de incentivo agora são a regra nos órgãos de cultura. Essa sabotagem sistemática reflete uma escalada reacionária que compreende o campo da Cultura na esfera do Estado como alvo de disputa ideológica, plataforma do conservadorismo político, balcão de negócios sem qualquer critério de bem público e, simultaneamente, jamais tratá-lo como espaço público e de direito. Converte-a em uma espécie de arma política apropriada ilegitimamente para fustigar adversários, introduzir diversionismo e promover revisionismos de toda ordem. Enfim, há método nesse disparate, e é a partir disso que precisamos combatê-lo.

29 de outubro de 2019

No estúdio com Thiakov - Hey Jude


Produzindo os Beatles- Hey Jude (Lennon/McCartney)


Depois de tanto terem explorado diversos campos harmônicos, cadências exóticas, ritmos de outras culturas, melodias que desafiam os ouvidos acostumados com a tranquilidade da meia-idade musical dos Beatles (entre 64 e 66), o conjunto retornaria aos signos tonais mais reconhecidos pela humanidade pós-J.S Bach e seu Cravo bem Temperado, uma escolha estética que priorizaria a emoção da interpretação em detrimento do cerebralismo celebrado por eles, em certa dose, e principalmente pelos seus contemporâneos do emergente rock-progressivo. Desde a temática da letra  até a finalização da gravação, toda a canção está imbuída de sentimentos fortes, porém observados de um ponto de vista simplista e assim executados de maneira estoica.


Hey Jude veio a tornar-se a maior música pop a tocar nas rádios, desde então, e chegar ao primeiro lugar nas paradas (19 semanas no total e 9 no topo). Com seus mais de 7 minutos divididos em: 3 minutos de canção e mais de 4 de nanana (um mantra pós-viagem indiana, um capítulo à parte que mudou radicalmente a cabeça e o penteado dos garotos de Liverpool), a música inicialmente sofreu tentativas de corte de tempo pelas rádios, porém sucedeu tornar-se hit e ser enfiada goela abaixo dos DJs que insistiam em querer ficar somente com a primeira parte. O assunto era delicado e assim foi tratado por Paul. Era sobre a recente separação de John e Cynthia Lennon e dos sentimentos do protagonista, o filho do casal, Julian – o Jude. Foi um jeito encontrado pelo “tio” Macca para consolar o garoto frustrado com o divórcio dos pais. Olha Jude, não leve a mal, pegue uma canção e a faça melhor, se alguma hora você sentir a dor, olha Jude, desacelere, não carregue o mundo nos ombros. Enquanto escreviam a letra Paul conta que Lennon ficou por diversas vezes emocionado e nem se importou com a repetição da palavra “ombros” na música, coisa que evitavam.


É incrível o casamento da harmonia com as palavras. A primeira parte da canção é uma aula de harmonia para principiantes, enquanto o nanana já é para intermediários, com uma introdução ao modalismo. Na teoria básica de harmonia tonal temos fundamentalmente três sensações possíveis, que são as três funções principais: repouso (tônica), afastamento (sub-dominante) e tensão (dominante), e toda expansão harmônica se dá a partir desses três acordes. São o I, IV e V, sendo que, se estamos em Dó Maior, são: I-Dó, IV-Fá e V-Sol, mas como Hey Jude é em Fá Maior, transpomos as mesmas relações e temos: I-Fá, IV-Si bemol e V-Dó. Analisando a letra em conjunto com essas sensações tonais, chegamos em um assombroso esqueleto estético de arrepiar qualquer cancioneiro. Começa somente com o chamado de Paul com um “Hey” e já vem o acorde de repouso, a tônica em “Jude”, don´t make it “bad” – tensão com o V grau, take a sad song – ainda tensão, and make it “better” – repouso no I, “remember” – afastamento com o IV, to let her into your “heart” – repouso, then you can “start” – tensão, to make it “better” – repouso, “Hey Jude” – repouso, don´t be “afraid” – tensão, you are made go out and “get her” – repouso, the “minute” – afastamento, you let her under your “skin” – repouso, then you can “begin” – tensão, to make it “better” – repouso. No intermezzo, Paul expande a letra e a harmonia mas sem sair do campo tonal. O único momento onde a cor dos acordes muda é no final, o nanana, onde com apenas um acorde a mais – o Mi bemol, a música passa a ser modal, um mixolídio emocionante depois de minutos perfeitamente tonais, e sobretudo turbinada pelo naipe de metais que aparece só pra dar mais força a esse imenso CODA (um final diferente de todo o resto). 
 
Destaque: [áudio da CBC radio com pessoas que participaram do coro no vídeo promocional]


Após tamanhas loucuras composicionais experimentalistas, os Beatles estavam de volta num campo onde, aí sim, eram especialistas: a emoção bruta, gutural, simples e radical. Foi assim que ganharam o mundo em hits orgânicos numa roupagem que ainda não se tinha visto anteriormente. O piano é quase infantil, um jeito de tocar que tornou-se assinatura do quarteto e também da posterior carreira solo de cada um, que é tocar na mão direita o tempo forte respondido com o contratempo na mão esquerda ´- vide I am the walrus, Golden Slumbers, Imagine, Maybe I´m amazed, etc., mas é esse piano infantil que faz um truque que virou outra assinatura deles: na ponte que vai para a parte B, Paul canta “then you can start to make it better” e o piano faz uma caída melódica com a 8ª-7ª maior-7ª menor (que gera tensão) e isso foi ouvido por diversas vezes em gravações posteriores – vide Balada do louco dos Mutantes, que reconhece todas essas assinaturas e as homenageia com maestria e criatividade. Lennon toca um violão simples com os acordes básicos e uma batida desdobrada em colcheias, mas com uma pegada bem forte, priorizando o contratempo na subida da palheta, fazendo o violão ficar estridente e rascante. Num dos vídeos da gravação em estúdio observei que o violão fora microfonado com um mic dinâmico mirado na boca do instrumento a curta distância e passei a utilizar-me dessa técnica não muito comum. George Harrison, além de dividir o coro com John, toca o baixo, na verdade uma guitarra barítono, apenas com as notas fundamentais dos acordes ou raramente umas inversões e faz um ligeiro overdub de guitarra elétrica dobrando ou imitando o nananana nas entradas e saídas da parte B. E, finalmente, Ringo toca uma bateria aparentemente super humilde porém com detalhes ocultos a um observador menos atento. A caixa e os tontons da bateria estão cobertas com um pano grosso que deixa o som abafado e seco, mais ou menos como bater com a baqueta numa almofada, e o prato de condução é tocado na cúpula, parecendo um sino, e o mais interessante é que o baterista inverte a tradicional batida que os ouvidos já tanto se acostumaram: ao invés de tocar o bumbo nos tempos 1-3-e(do 3), ele toca 1-e(do 1)-3, fazendo parecer estar ao contrário do esperado.


No último verso, Lennon parece novamente não se conter e faz a segunda voz da estrofe, costurando a melodia líder de Paul, ora tecendo os graves, ora atravessando para os agudos. Tudo vai ao mesmo tempo calmo como uma balada, mas também tenso devido à temática da letra em si e ao espírito da época, quando a relação pessoal entre os membros do grupo não ia muito bem. Por esses motivos eles parecem tocar todos os instrumentos com muita força e energia, coisa que se repetiria em uma próxima balada, Don´t let me down. O gran finale se dá com um apogeu redundante da palavra “better” que vai crescendo do grave para o agudo sempre com um semitom abaixo das notas do arpejo maior da tríade de Fá maior, sendo Mi-Fá, Sol#-Lá, Si-Dó, se repetindo por duas oitavas, culminando num Fá, um super-Fá, introduzindo o mantra mixolídio que diz nananana, Hey Jude, transformando seu nome em totem, em símbolo de força e resiliência e nanana é uma maneira de dizer nananão, deixa disso Jude, vai tudo ficar melhor, melhor, melhor....


OBS 1: É impressionante os gritos desesperados e rockes que McCartney dá durante o final, entrecortando o mantra com urros. Vale a pena se atentar a cada um.


OBS2:  Aos 5´36” rola o famoso chamado de Lennon que no Brasil se popularizou como “Pega o cavaquinho” mas na verdade era “’pain won´t come back Jude”.


OBS3:  Uma escolha estética da época fazia com que os pandeiros e pandeirolas aparecessem muitas vezes, nas mixagens, com o volume mais alto do que o da bateria. Este é um caso de pandeiro solista.


OBS4: Já ouvi e li por diversas vezes que Ringo não era um bom baterista, do que discordo veementemente. Nessa canção ele espera por um bom tempo, até a parte B para entrar com a bateria. Essa simples escolha já o torna um esteta do instrumento e o fato de ele distinguir tão bem o momento para entrar e tocar já o coloca no panteão das baquetas do rock, pois simplicidade não é sinônimo de inocência ou despreparo, muito ao contrário. Sua paciência em sentar-se na bateria e tocar um pandeiro na primeira parte acentua a sensação de quebra da primeira para a segunda. O mesmo se dá com os outros instrumentos que vão chegando de um a um, se aproximando lentamente do interlocutor e também do personagem protagonista, num gradual abraço até um cafuné carinhoso e coletivo, motivando-o a sair desse estado de tristeza e gerando nele força e alegria de viver. 


OBS5: Reforço o refinamento estético do drummer enfatizando um momento que dura menos de um segundo mas que para mim é absolutamente contundente: no fim do apogeu do better better, no momento em que toda a banda para de tocar e ouve-se o grito de Paul ahhhhhh, imediatamente antes do nananana, Ringo toca um chimbal, apenas um, criando uma tensão incomensurável. Outros bateristas provavelmente fariam uma virada nos tontons e caixa e ele escolhe a simplicidade de uma nota para introduzir uma atmosfera iminente. E na minha opinião ele é o melhor nas viradas de rock. Ele é o Bach dos “drum fill”, fazendo as melhores melodias possíveis nos tambores – vide A day in the life, Strawberry Fields Forever e muitas outras. Vale pontuar o fato de ele ser canhoto e acentuar numa bateria para destros, com a mão esquerda.


OBS6: O nanana parece-me claramente uma influência advinda do Gospel e se fosse nananana, oh lord, estaria ainda sim muito bem contextualizada esteticamente. Essa sim é a igreja do rock e se os quatro cabeludos forem futuramente canonizados a mim não será nenhuma surpresa.