Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

6 de dezembro de 2012

As 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro -LISTA 1 Parte 3



Em meio às atribulações de final de semestre típicas da vida de professor, o projeto antigo dessa lista que finalmente ganha forma, e as centenas de acessos que já receberam as partes das "30 mais geniais do Clube da Esquina" [completa, aqui] pelas mãos de meu grande amigo e parceiro Pablo Castro me lembram o verdadeiro valor do tempo que podemos despender naquilo que amamos. Convido os leitores a compartilhar conosco esse tempo. Desde já obrigado pelo prestígio e pela presença.

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Não tenho como deixar de homenagear Oscar Niemeyer aqui, e sem forçar nada a barra - a décima-terceira escolhida é CÉU DE BRASÍLIA de Toninho Horta e Fernando Brant. A grandiosidade da obra arquitetônica da capital inventada no meio do nada no Planalto Central só poderia ter uma tradução musical tão engenhosa quanto. 

Uma longa introdução no fortíssimo , com uma guitarra distorcida (!) e banda e orquestra já dá o recado do nível de transbordamento que a faixa carrega , condensando a cadência harmônica a ser desenvolvida adiante, quando se tudo se esvai e resta o violão e a voz de Toninho , numa terna balada : " a cidade acalmou ..." 

Brant ousava ser mais concreto , alguém diria até prosaico, quando não compunha com Milton, e a letra vai construindo "ingenuamente" o caminho que descreve as alturas da música de Toninho. "O horizonte imenso aberto sugerindo mil direções" é o ápice desse vôo, que começa tão pé no chão. 

É com naturalidade que a melodia, angulosa e com inúmeros saltos, como é típico de seu autor, vai se adensando ao arranjo e criando uma "tour de force" , catapultando o homem comum aos imensos horizontes que um dia o arquiteto Oscar ilustrou com suas ambiciosas e descomprometidas curvas. 

"E eu nem quero saber se foi bebedeira louca ou lucidez ..." de todas as músicas de Toninho, pra mim essa é a mais emocionante, transcendental, intensa, para além da sua costumeira elegância e inteligência como compositor. Notável que nela, ele não só toque guitarra, violão e baixo, como faz a formidável orquestração.



CÉU DE BRASÍLIA

A cidade acalmou
logo depois das dez
Nas janelas a fria luz
da televisão divertindo as famílias
Saio pela noite andando nas ruas

Lá vou eu pelo ar asas de avião
Me esquecendo da solidão
da cidade grande, do mundo dos homens
num vôo maluco que eu vou inventando

E vôo até ver nascer
o mato, o sol da manhã,
as folhas, os rios, o azul
Beleza bonita de ver

Nada existe como o azul sem manchas
do céu do Planalto Central
e o horizonte imenso aberto
sugerindo mil direções
E eu nem quero saber se foi bebedeira louca
ou lucidez...

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A décima-quarta é CRUZADA de Tavinhomoura Moura e Márcio Borges, canção espetacular, demonstrando tanto o arrojo melódico-rítmico desconcertante quanto a simplicidade de seu autor. 

A melodia inicial é um caso exemplar de tematização melódica, divisão rítmica incisiva (e métrica irregular), oscilando entre o maior e o menor, alternando escala menor harmônica e melódica, e a maior harmônica, é uma aula de fluidez e surpresa da melodia, de forma que, apesar de ousada, é altamente cantarolável, e o sucesso da música prova isso. 

Márcio Borges discorre sobre a insegurança política da época sem datar o texto, poderíamos falar de como hoje em dia sabemos "do perigo que nos rodeia pelos caminhos". O final da melodia do A caindo na reconfortante terça maior "acalma no seu olhar" ... 

Já o refrão é dos mais lindos acalantos de toda a obra do Clube, daqueles perfis melódicos ascendentes que são claramente incomumente inspirados, sem fazer força. O contraste entre o alívio do refrão e a tensão das estrofes é uma das chaves do sucesso dessa música, gravada primeiramente por Beto Guedes, que, diga-se de passagem, fez sua versão com uma solução rítmica diferente da de Tavinho, e acabou se fixando mais na memória dos ouvintes. 

Por esse motivo, preferi colocar a versão de Beto Guedes, embora saiba que o compositor pense diferente ... a letra, mais uma vez, em sua aparente desconexão, é a perfeita ponte entre os perigos das estrofes e o abrigo do refrão, e outra parte se faz desnecessária, embora saibamos que Tavinho tem um lindo intermezzo em sua versão [ouça aqui]. É um clássico imortal dele.

 CRUZADA

Não sei andar sozinho por essas ruas

Sei do perigo que nos rodeia pelos caminhos
Não há sinal de paz mas tudo me acalma no seu olhar

Não quero ter mais sangue morto na veia

Quero o abrigo do seu abraço que me incendeia
Não há sinal de cais mas tudo me acalma no teu olhar

Você parece comigo, nenhum senhor te acompanha

Você também se dá um beijo dá abrigo
Flor nas janelas da casa, olho no seu inimigo
Você também se dá um beijo dá abrigo
Se dá um riso dá um tiro ...

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A décima-quinta é O QUE FOI FEITO DEVERÁ (de Vera), de Milton Nascimento, Fernando Brant e Márcio Borges

Bituca experimentou pedir letra pra dois parceiros, sem que ambos soubessem, sobre a mesma música e a mesma temática, algo falando do passado, e é revelador contrastar as duas abordagens. 

Fernando, mais idílico, mais individual, tentando conciliar de alguma forma o passado e o futuro, à luz das experiências vividas à revelia sob os trilhos do trem da história (a história é um carro alegre, cheio dum povo contente que atropela indiferente todo aquele que a negue, diria Chico Buarque no mesmo disco), enquanto Márcio , mais icônico, mais contrastante, "nuvem no céu e raiz", é algo mais inquieto, mais explosivo: "Nem vá dormir como pedra e esquecer o que foi feito de nós". 

Intertextualidades à flor da pele, com várias canções já clássicas do Clube sendo incorporadas ao texto, como Vera Cruz, de Milton e do próprio Márcio, e Fé Cega , Faca Amolada, de Milton e Ronaldo Bastos, e Outubro, de Milton e Brant; a consumação de um sentido de parceria e amizade se dá dentro das letras, e isso revela a intensidade da canção. 

Elis, que já tinha gravado a canção de Brant, faz uma aparição magistral no Clube da Esquina 2, enquanto Milton canta a de Márcio, mas as duas parecem, no fim, capítulos do mesmo romance, e se completam. 

Musicalmente, daquelas preciosidades simples e altamente originais: o mesmo acorde oscila entre o suspenso, o maior (com sétima) e o menor (com sétima), fazendo um movimento pendular que ilustra a perplexidade do homem em relação à vertigem do tempo, da existência humana e de seus desdobramentos metafísicos, e depois recai sobre um empréstimo do modo frígio, um tempero misterioso, só pra voltar ao mesmo acorde suspenso e finalmente resolver no quarto grau ... para leigos, basta dizer que é sintético, e altamente misterioso. A melodia, linda, vai perpassando esses intervalos com grande fluidez, dando sentido total a essa baita ambiguidade harmônica. 

Convém, por fim, observar que essas originalidades harmônicas de altos quilates do Clube em geral vão criar um clima onírico, deslocado, de descoberta, de elocubração, de quem tateia o desconhecido. Talvez o passado seja tão desconhecido, desse ponto de vista, quanto o futuro ...



O QUE FOI FEITO DEVERÁ (de Vera) ( Brant)

O que foi feito, amigo,

De tudo que a gente sonhou
O que foi feito da vida,
O que foi feito do amor
Quisera encontrar aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás

Falo assim sem saudade,

Falo assim por saber
Se muito vale o já feito,
Mais vale o que será
Mais vale o que será
E o que foi feito é preciso
Conhecer para melhor prosseguir

Falo assim sem tristeza,

Falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos
Que nós iremos crescer
Nós iremos crescer,
Outros outubros virão
Outras manhãs, plenas de sol e de luz

O que foi feito de Vera ( Borges)


Alertem todos alarmas

Que o homem que eu era voltou
A tribo toda reunida,
Ração dividida ao sol
E nossa vera cruz,
Quando o descanso era luta pelo pão
E aventura sem par

Quando o cansaço era rio

E rio qualquer dava pé
E a cabeça rolava num gira-girar de amor
E até mesmo a fé não era cega nem nada
Era só nuvem no céu e raiz

Hoje essa vida só cabe

Na palma da minha paixão
Devera nunca se acabe,
Abelha fazendo o seu mel
No canto que criei,
Nem vá dormir como pedra e esquecer
O que foi feito de nós 

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A Décima-sexta da Lista do Clube da Esquina é TIRO CRUZADO, de Nelson Ângelo e Márcio Borges. Não se pode olvidar quando uma canção tem uma versão de Tom Jobim. Eu poderia listar outras do esquecido e inspirado LP Nelson Ângelo e Joyce, de 1972, pela quantidade de pérolas contidas ali, mas decidi ficar com essa pela carreira que ela teve: foi gravada muitas vezes, tem uma versão bastante interessante, por exemplo, do Sérgio Mendes [aqui], e dá o recado de cara. 

Das formalmente mais simples do álbum, Tiro Cruzado tem um daqueles acordes indecifráveis, altamente tensos, o que corrobora para o letra desafiador do Márcio: "Pula muro, cai do cavalo, pula que eu quero ver!" Ritmicamente, pode-se falar numa espécie de samba, mas , como sempre é um samba mineiro, altamente diferido, o que , com certeza, deve ter despertado a atenção de Jobim quando a gravou ao lado de Miúcha [ouça aqui]

O corpo da música é tão expressivo que ela não tem um B! É um A repetido o tempo inteiro, o que faz dela um exemplo de sinteticidade na canção que é muito raro. Tornou-se um clássico, apesar de hoje quase ninguém mais a conhecer das novas gerações. Se você gostar, aconselho a ouvir todas desse discaço. 

Atenção para a ficha técnica, que inclui o desaparecido Tenório Jr. 
Joyce e Nelson Angelo - voz
Nelson Angelo - violão
Danilo Caymmi - flautas
Tenório Jr.  -piano elétrico
Novelli  - baixo
Hélcio Milito - bateria
Rubinho - tumbas

TIRO CRUZADO

Pula do muro
Cai do cavalo
Pula que eu quero ver
Sombra no escuro
Verde maduro
Corre que eu quero ver
Salta de lado
Tiro cruzado
Dança que eu quero ver
Corta de canivete que eu quero ver
Segura que é agora que eu quero ver

Que eu quero ver (4x)
Segura que é agora que eu quero ver
Pula do muro... segura que é agora que eu quero ver
Segura que é agora que eu quero ver
Segura que é agora que eu quero

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A Lista do Clube continua! CASO VOCÊ QUEIRA SABER! essa obscura canção de Beto Guedes em parceria com Márcio Borges, que abria o célebre álbum dos "4 no banheiro" - Beto Guedes, Toninho Horta, Novelli e Danilo Caymmi

Das músicas mais inclassificáveis do compositor, e das primeiras feitas por ele, entretanto ela já estabelece alguns elementos distintivos de seu trabalho, a saber: ritmo em 12/8, alta tessitura vocal, rupturas de escala inesperadas, e um estribilho dramático com aguda melodia que é a única parte que se repete na música. 

A forma é altamente irregular, com um A que nunca volta, uma ponte, um B, cuja conclusão é idêntica à do A, e finalmente esse refrão: "Já conheço seus segredos, seu tempero e seu suor, mas não consigo perder mais tempo" ...Essa urgência está espelhada pelo arranjo intenso, principalmente na melhor versão dela, na minha humilde opinião, que saiu num compacto de Milton* e que termina com um sublime solo de sax-tenor do grande Nivaldo Ornelas, e hoje é encontrada como bonus track do disco Minas, de 1975. 

A negatividade da letra contrasta com quase toda a obra de Beto, que fez da positividade seu fio condutor... entretanto, raras vezes ele compôs algo tão genuinamente feroz e vital quanto essa música ... 

Não é à toa que Cássia Eller fez uma versão admirável [aqui] em seu segundo disco, transformando a música mas mantendo, evidentemente, sua agressividade**... 

Ficha Técnica da versão com o Milton: 
Milton Nascimento : Voz e violão
Beto Guedes : Bateria, viola e voz
Fernando Leporace : baixo
Nivaldo Ornellas : sax-tenor
Wagner Tiso : órgão e piano elétrico (distorcido)
Toninho Horta : guitarra.

CASO VOCÊ QUEIRA SABER!

Não quero você mais na minha casa
Corpo e rosto em pedra
Sei o que me fere em você

Eu não quero nada
Com seu riso indecente

Já conheço o seu tempero
Seu segredo e seu suor
Mas não consigo perder mais tempo
Você tem que ir embora
Já começa a amanhecer
Parece outro dia negro



*com a versão de Norwegian Wood do outro lado[nota do editor].
** aliás, procurando pela ficha técnica da gravação dos "4 no banheiro" deparei-me com uma excelente análise do amigo Túlio Ceci Kaiowa Villaça sobre como Cássia Eller transformou essa canção em uma outra coisa, num texto muito esclarecedor! E , de brinde, consegui a minha ficha técnica! Valeu demais, Túlio! [nota do autor]




E vai aí a ficha dos "4 no banheiro":
Beto Guedes: Voz, violão e bateria
Flávio Venturini: acordeon
Frederiko: guitarra
Lô Borges: baixo elétrico
Maurício Maestro (líder do grupo vocal Boca Livre): percussão
Novelli (notável baixista): percussão
Toninho Horta: percussão
Vermelho (integrante do 14 Bis): órgão


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A décima-oitava da lista é O TREM AZUL, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, bastante conhecida, um clássico, e não é pra menos ... Cabe aqui uma digressão sobre o caráter surrealista de várias letras do Clube da Esquina, e sua evidente relação com os procedimentos musicais nas composições e nos arranjos. 

Não se poderia esperar de músicas que trilham veredas harmônicas inauditas e com alto grau de descolamento do sistema tonal clássico (em termos de música popular) letras muito amarradas, narrativas com começo, meio e fim, e muito menos avaliá-las como texto fora da canção, embora isso possa ser interessante como elemento de análise. 

Esse surrealismo encontrou várias maneiras de se realizar nessas canções, e nunca essa realização se deu por meio de um sentimento tão entorpecido, enigmático, vago como em O Trem Azul. A construção harmônico-melódica é de tal simplicidade e ao mesmo tempo engenhosidade que foi imediatamente reconhecida como uma música importante dentro da produção da turma do Clube. 

Basicamente, na estrofe (que se repete só com uma letra) a melodia fica sempre na sétima maior de cada acorde, proporcionando uma certa maciez em cada um deles, um caráter vago, pouco concreto e afirmativo, que se associa claramente aos versos: coisas que a gente se esquece de dizer, frases que o vento vem ás vezes me lembrar... 

A harmonia tem o tom claro de Dó maior, mas todos os acordes da estrofe são da região de dó menor (com um acorde do modo frígio), o que também corrobora essa macia e ingênua estranheza... O refrão contrasta por subir um mínimo degrau entre a sétima maior e a tônica, dando um pouco mais de afirmação à melodia. Essa característica lenta, prostrada e contraída da melodia é bastante distintiva da canção, que, de resto, estilisticamente, podemos considerar o cruzamento por excelência entre os Beatles e a Bossa-Nova. 

O ritmo quadrado e lento do roque britânico com as aventuras harmônicas e calmas da bossa-nova nunca se cruzariam de forma tão equilibrada como em O Trem Azul. As metáforas do sol na cabeça sugerem uma referência ao LSD. embora nem de longe seja preciso estar doidão pra amar essa canção. Tom Jobim, por exemplo, era mais chegado num uísque, mas não só gravou a música como fez, ele próprio, uma versão para o inglês, reproduzindo inclusive a melodia do célebre solo de guitarra no intermezzo instrumental que Toninho Horta imortalizou naquela sessão [ouça aqui]. 

Ficha Técnica: 
Lô Borges : guitarra de 12 e voz  
Toninho Horta: guitarra solo e vocal  
Beto Guedes: Baixo e vocal  
Robertinho Silva : bateria/ 
Wagner Tiso: órgão


O TREM AZUL

Coisas que a gente se esquece de dizer

Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar

Você pega o trem azul

O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
O sol na cabeça 

5 de dezembro de 2012

As 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 2a. parte

Continuando a Lista das 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro [para conferir a lista completa, clique aqui]: 
A Página do Relâmpago Elétrico, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, é mais uma dessas canções meio inexplicáveis, por mais que se tente analisar cada parte, visto que o conjunto é algo transcendente. Esse rock 12/8 , em versos de 6 compassos, depois alternando para 8, tem uma letra incomumente longa e das mais icônicas, imagéticas, e, alguém diria, vagas, mas de qualquer maneira incisivas, das melhores letras de Ronaldo. "Que nem ronco do trovão que eu lhe dou para guardar " está entre os versos mais surreais e cortantes do cancioneiro brasileiro, algo talvez inspirado em Guimarães. A melodia em graus conjuntos e saltos precisos se encadeia numa forma capciosa, com longas (4) estrofes, algumas diferidas, enquanto a execução instrumental decola depois da segunda estrofe pra avoar que nem asa de avião até o fade-out final. Harmonicamente, passeia no território modal -tonal e modula de C# pra E maior, passando por vários acordes com nona, sétima maior, baixos invertidos , enfim, e isso tocado com notável ferocidade , numa onda destituída de blue notes , por isso não é um típico roque, e por cima de tudo o cortante falsete arrepiante e estridente de Beto Guedes e as cordas rasqueadas do seu violão e bandolim. Essa música teve várias versões cover, algumas das quais achei no youtube pra compartilhar aqui. Ficha técnica : Bandolim, violão e voz - Beto Guedes; Violões - Zé Eduardo; Baixo - Toninho Horta; Bateria - Robertinho; Percussão - Hely; Côro - Vermelho, Flávio e Beto.
*Vai aqui um complemento especial, um link para o excelente A página do diário íntimo elétrico de Beto Guedesótimo texto do blog Sobre a canção do Túlio Villaça
 
A Página do Relâmpago Elétrico

Abre a folha do livro
Que eu lhe dou para guardar
E desata o nó dos cinco sentidos
Para se soltar
Que nem o som clareia o céu nem é de manhã
E anda debaixo do chão
Mas avoa que nem asa de avião
Pra rolar e viver levando jeito
De seguir rolando
Que nem canção de amor no firmamento
Que alguém pegou no ar
E depois jogou no mar

Pra viver do outro lado da vida
E saber atravessar
Prosseguir viagem numa garrafa
Onde o mar levar
Que é a luz que vai tescer o motor da lenda
Cruzando o céu do sertão
E um cego canta até arrebentar
O sertão vai virar mar
O mar vai virar sertão
Não ter medo de nenhuma careta
Que pretende assustar
Encontrar o coração do planeta
E mandar parar
Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais
Que nem ronco do trovão
Que eu lhe dou para guardar

A paixão é que nem cobra de vidro
E também pode quebrar
Faz o jogo e abre a folha do livro
Apresenta o ás
Pra renascer em cada pedaço que ficou
E o grande amor vai juntar
E é coisa que ninguém separa mais
Que nem ronco de trovão
Que eu lhe dou para guardar

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Tema dos Deuses, de Milton Nascimento. A voz de Milton certa vez foi descrita por Elis Regina como a voz de Deus, talvez depois de ouvir essa música sem letra mas que tem a voz como atração principal, além da oblíqua, profunda, sinistra, desconcertante condução harmônica, como que revelando as vísceras, as entranhas das divindades, e o que elas tem de grandioso e amedrontador, de teleológico e incomensurável, de doloroso e intangível e indecifrável. Milton tem a alma plugada lá em cima mesmo. Dar sentido à seguinte cadência: E (#11) Gm E (#11) Cm Gm Cm G#m Dm Bm B7 Dm Em não é pra qualquer mortal. A versão com orquestra no Milagre dos Peixes ao vivo (1974) é talvez a mais visceral, e mais uma vez prova que quando um compositor do nível de Bituca carrega muito no discurso harmônico melódico, ele o repouse na forma mais simples possível: um único A, repetido e acrescido, nas duas últimas repetições, da melodia crucial que dá o ápice climático da música. Feita para o filme de Ruy Guerra, Os Deuses e os Mortos, a música se tornou célebre pela sua contundência, independente do filme.
Músicos : Wagner Tiso : Órgão e Piano , Toninho Horta : Guitarra , Luiz Alves : Baixo , Robertinho Silva : Bateria, Nivaldo Ornelas : Sax e orquestração de Wagner Tiso, para o Orquestra Sinfônica de São Paulo.



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Lista Do Clube, number nine: Beijo Partido, de Toninho Horta. Toninho fez letra e música dessa canção que talvez seja a sua mais standard, transformada em tema instrumental e incorporada ao repertório jazzístico no mundo inteiro, por méritos próprios, uma melodia arquetípica que , a partir de certos cromatismos e dolorosos saltos, amarra as improváveis e distintivas modulações que tanto caracterizam a obra do compositor belorizontino. De Mi menor para Fá Sutenido, e dali rapidamente para Ré Maior, voltando sublimemente para o tom original. Mais uma vez as peripécias melódico-harmônicas são ancoradas em formidável simplicidade formal, mas que se encadeia de tal forma que quando o tema volta, parece ser um desenvolvimento do seu próprio final, caráter cíclico que amarra ainda mais um A repetido seguido de um estribilho (dessa vez em Si Maior ! ): Onde estará a rainha que a lucidez escondeu, escondeu ... , e por fim uma coda altamente propícia para improvisações, dois acordes dissonantes em movimento pendular... Beijo Partido condensa todos esses elementos e foi uma música imediatamente gravada por Milton Nascimento, Nana Caymmi, e de lá pra cá deve ter amealhado dezenas de versões mundo afora, além das do próprio compositor. Não foi à toa ! :)

Beijo Partido
(Toninho Horta)

Sabe, eu já não faço fé nessa minha loucura
e digo
Eu não gosto de quem me arruina em pedaços,
e Deus
É quem sabe de ti,
e eu não mereço um beijo partido

Hoje não passa de um dia perdido no tempo,
e fico
Longe de tudo o que sei, não se fala mais nisso, eu sei
Eu serei pra você,
o que não me importa saber

Hoje não passo de um vaso quebrado no peito, e grito

Olha o beijo partido
Onde estará a rainha
Que a lucidez escondeu ... escondeu ...




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A décima escolhida é Viver,Viver, de Lô Borges, Murilo Antunes e Márcio Borges, balada magnífica em cordas de aço e baixos invertidos cromáticos e uma melodia mais uma vez escandalosamente bonita, alternando, como é típico do seu compositor, graus conjuntos e saltos em sextas que pontuam os rápidos procedimentos harmônicos. Lô foi quem mais conseguiu liquefazer a harmonia bossa-novista em contexto estilístico totalmente diferente, mais próximo melodicamente e em termos de arranjo, da influência dos Beatles. Mil ideais num dia , deserto e cais, dourar de sol a melodia ... a letra é mais uma daquelas odes à vida e à beleza, ao sabor dos ventos, fontes da mesma luz, dessa vez com dois letristas, o que demonstra a unidade estética de fato do movimento Clube Da Esquina, cuja dinâmica está muito bem representada no Murilo Antunes Dvd, onde essa pérola ganhou nova versão de Lô e Milton Nascimento. Atenção para a ficha técnica da versão original, presente no disco Nuvem Cigana, de 1981 : Viver, Viver (Lô Borges, Márcio Borges e Murilo Antunes). Bateria e Cuatro venezuelano – Beto Guedes; percussão – Aleuda; arp e violão – Lô Borges; voz – Milton Nascimento; baixo elétrico –Paulinho Carvalho; piano – Telo Borges; percussão – Robertinho Silva.


 

Viver, Viver

Mil dias mais

Mil sonhos mais
Mil anos luz num dia
As ruas são
Meu mundo são
Mil vidas mais

Viver, viver

Tudo que Deus dará
Afim de ver
Mentes e corações
Abertos pra dizer
Ao modo de seu tempo
Eu sei viver assim
Vou do começo ao fim

Viver, morrer

Fontes da mesma luz
O som, a voz, o meio dia

Teu sonho amor

Pessoas mil
Mil ideais num dia
O sonho tem
Mil coisas mais
Deserto e cais...

Viver, viver

Tudo que o mundo tem
Saber viver
Tudo que a gente é
Dourar de sol a melodia

Viver, viver

Tudo que Deus dará
Afim de ver
Mentes e corações
Abertos às manhãs
E a alça contra os ventos
Crescer e arriscar
Tudo que pode ser

Viver, morrer

Fontes da mesma luz
O som, a voz, a melodia...
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A décima-primeira é a primeira(!!!) composição de Milton Nascimento, ao lado de Márcio Borges, a estupenda e distinta Novena, só gravada pela primeira vez por Beto Guedes em 1978 , e pelo autor só em 1992 , no disco Angelus. Pertinente observar que boa parte das pérolas do Clube é em tom menor, o que proporciona, via de regra, um clima mais sombrio à harmonia, ainda mais se construída de forma polimodal, alternando os modos da escala com a inclusão de acordes surpreendentes, que parecem ir contra toda a tradição harmônica no campo popular ocidental. O baixo pedal e a estranha sequência de tríades sugerem uma descoberta puramente empírica ao violão, subindo e descendo acordes com a mesma fôrma manual, e desvelando soluções surpreendentes e imprevisíveis, e enfatizando o sentido de mais uma letra icônica, assimétrica, dura que transcende e ao mesmo tempo faz jus ao contexto político da década de 1960, a 'chama' insurgente da juventude em meio à escalada militar cada vez mais brutal. "É pelos malditos deserdados desse chão" ... A forma é bastante simples, consistindo num A repetido em dois versos, e um B onde se chega a si menor, o relativo do tom paralelo maior da tônica, ré meno, voltando para um A diferido com um movimento harmônico igualmente ascendente mas rigorosamente diferente entre seus acordes. Os cromatismos harmônicos espantaram e fascinaram os jazzistas americanos de tal forma que Milton fez seu segundo disco de carreira, logo em 1968, nos EUA, ao lado de nomes como Herbie Hancock, e outros três durante a década de 1970 - Journey to Dawn, Native Dancer, ao lado de Wayne Shorter, e Milton (1976) (pra mim o melhor deles), e na gravação do Angelus teve Pat Metheny, Herbie Hancock , Ron Carter e Jack De Johnette como seus luxuosos acompanhantes ... ainda assim, eu me atrevo a preferir a versão 'original', com Beto Guedes cantando com seu falsete de metal, Milton no violão, Luiz Alves no baixo, Robertinho Silva na beteria e orquestração e piano do formidável Wagner Tiso.


Novena


Se digo um ai

É por ninguém
É pela certeza de saber que tudo tem

Tem sua vez de lá retornar

ao lugar mais fundo, fundo, fundo , mais que o mar

Se digo sol

Não tem talvez
Não espero mais a chuva
Só preparo meu começo
A explosão de toda luz
A chama, chama, chama, chama

Se digo amor

Só é por alguém
É pelos malditos deserdados desse chão

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Terminando por hoje, agora temos a enigmática Pai Grande, música e letra de Milton Nascimento, uma loa aos ancestrais africanos de Milton. Das poucas vezes que estive perto dele, e a única em que foi possível conversar um pouco mais com ele, perguntei-lhe a respeito dessa música e ele, uma esfinge, me contou da descoberta que teria feito a respeito da exata tribo africana de que ele era descendente, cujo nome não vou me lembrar, e descreveu detalhes de seus rituais e cantos, sobre como eles cantavam e saltavam muito alto do chão ... de forma que o Pai Grande é um signo de toda uma ancestralidade atávica que Milton, e só ele, carrega dentro da música mineira. O fato de ter sido ele o autor da letra, coisa rara, atesta o alto grau de envolvimento pessoal dele com essa canção, a ponto de tê-la gravado em dois discos subsequentes, o de 1969, conhecido como o "da igrejinha", e o Milton 1970, fantástico álbum com a presença do Som Imaginário, Naná Vasconcelos, e a estréia de Lô. Essa versão pra mim é a definitiva, transbordante com a percussão espiritual de Naná, e a tocada emocionada da banda, pra não falar na perfomance vocal de Milton , muito solta, e nas polirritmias intuitivas que ele fazia no violão e na voz. Pra leigos, vale explicar que essa polirritmia consiste na sobreposição de dois tempos diferentes sobre o mesmo pulso, no caso, um violão ternário contra uma melodia vocal quaternária. Esse procedimento resulta numa efeito de fluidez e deslizamento rítmico que é absolutamente fascinante. Por fim, observemos que a forma dessa canção é mais heterodoxa, partindo de um A que se repete uma vez, cai numa ponte transitória, e desemboca num B bastante longo e intenso, que se repete indefinidamente (nunca voltamos ao A...). Com tudo isso, a harmonia é bastante simples, acordes maiores dentro do campo harmônico de Sol maior com um ou outro empréstimo modal daqueles de que os Beatles gostavam tanto, como Fá maior e Ré Menor ( mixolídio) e Lá com sétima (lídio) . Imperdível!

Pai Grande

Meu pai grande
Inda me lembro
E que saudade de você
Dizendo: eu já criei seu pai
Hoje vou criar você
Inda tenho muita vida pra viver

Meu pai grande
Quisera eu ter raça pra contar
A história dos guerreiros
Trazidos lá do longe
Trazidos lá do longe
Sem sua paz

De minha saudade vem você contar
De onde eu vim
É bom lembrar
Todo homem de verdade
Era forte e sem maldade
Podia amar
Podia ver

Todo filho seu
Seguindo os passos
E um cantinho pra morrer
Pra onde eu vim
Não vou chorar
Já não quero ir mais embora

Minha gente é essa agora
Se estou aqui
Eu trouxe de lá
Um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar

4 de dezembro de 2012

As 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro: LISTA 1 Parte 1

Há muito tempo eu e o meu parceiro Pablo Castro vínhamos conversando sobre a possibilidade de fazer, para a música popular brasileira, algo nos moldes do projeto "Notes on...series" do musicólogo norte-americano Alan W. Pollack. Num impulso daqueles que vira e mexe ataca os criadores inquietos, ele pôs a mão na massa crítica e começou o projeto justamente pela obra do Clube da Esquina, que para nós é uma referência fundamental. Se um dia comecei a entender com mais precisão o que seria propriamente o Clube da Esquina, o Pablo é o grande responsável, como está contado na introdução da minha tese. Assim me dá grande satisfação mais esse desdobramento da nossa parceria, há tanto imaginado, agora aparecer aqui. Com vocês, sem mais, as 30 mais geniais do Clube da Esquina [página inicial, aqui], por Pablo Castro:


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Qualquer lista das x mais costuma ser inútil quando não é a sua própria! Decidi fazer algumas listas, no sentido até de aplicar a quem não conhece obras que eu considero muito importantes. De forma que começo com a lista das 30 mais geniais do Clube da Esquina! Pode-se considerar 30 um número um pouco grande, mas ainda é muito complicado condensar as pérolas mais raras de um grupo tão forte de compositores.



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Começo então por RIO DOCE, de Beto Guedes, Tavinho Moura e Ronaldo Bastos. Gravada primeiramente como instrumental, e só com a parte A, no disco Sol de Primavera, ela foi desenvolvida com uma sensacional parte B, de Tavinho, contrastante sinuosa e de modulações inesperadas, mas com o mesmo desembocar solar que é tão característica das composições de Beto. Participação vocal da Joyce!




RIO DOCE

Vai a me levar como se fosse
Indo pro mar num riacho doce
Onde ser é ternamente passar

São vidas pequenas das calçadas
Onde existir parece que é nada
Mas viver é mansamente brotar

Muito prazer de conhecer
Muito prazer de nessa rua ser seu par
Ao partilhar do teu calor
Você liberta a primeira centelha
Que faz a vida iluminar

A correnteza me levou
Me apaixonei em todo cais que fui parar
Cada remanso um grande amor
Por esses breves eternos momentos
Que tive o dom de navegar

São vidas dos belos horizontes
Gente das mais preciosas fontes
Onde ser é ternamente brotar
Vai cantando as voltas do moinho
Onde a beleza teceu seu ninho
Mas viver é mansamente passar


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Vamos prosseguir com VIA LÁCTEA, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, música do álbum homônimo de 1979. Bela canção em 6/8, levada bastante frequente em músicas de Lô e Beto, sobretudo ( Rio Doce, já citada aqui, é bem próxima disso, mas talvez seja mais exato caracterizá-la como 12/8). A melodia de Lô faz uma ponte entre as tendências McCartneyanas e Jobinianas de uma forma magistral, fazendo a harmonia parecer mais simples do que é na verdade. 

Naturalidade e sofisticação são duas coisas que pouquíssimos compositores podem atingir, e é o caso de Lô nessa canção. A letra, mais uma vez de Ronaldo Bastos, é uma variante da temática 'viagem' , desta feita com metáforas cósmicas, e ícones como carrossel, pão e mel, picadeiros, primaveras ... bastante concretista essa letra, a la Caetano, mas com a marca indelével do ethos do Clube: o sonho.



VIA LÁCTEA

Vendaval, carrossel
Segue a vida a rolar
Pé na estrada, pó de estrelas
Coração vulgar
Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia vagar

Caravela, pão e mel
Segue o circo a rolar
Picadeiros, primaveras
Coração vulgar

Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia viver
Na espuma do mar

E o grão de tão pequeno
Ser tão grande
O que a gente é
Ter esse destino
De pessoa que sonhou...

Que navega no céu
Que navega no ar
Grão de areia bailar
Lá no fundo do azul

E anda que nem bola
Como a vida
Quando quer brotar
Rola como anda
Que nem fonte de calor...

Barricadas, cordilheiras
Coração vulgar

Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia vagar
Na espuma do mar

Aventuras, cicatrizes
Segue o mundo a rolar
Diamantes do universo
Coração vulgar

Que navega no céu
E navega no ar
Grão de areia vagar
Na espuma do mar

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Terceira selecionada: FALSO INGLÊS, de Toninho Horta e Fernando Brant. Sensacional aqui como o Toninho, numa forma bem simples , praticamente só com um A e um B, e poucos acordes, consegue algo tão original e de efeito tão marcante. Fascinante como uma subdominante com baixo na terça pode ter um efeito sutil e grandioso. 

E Fernando Brant, numa de suas melhores letras, exerce aqui um humor que ele não atrevia a destilar em suas parcerias com Milton e, de quebra, dá um tapa de luva em quem ainda defendia (e defende) que o inglês é uma língua mais musical, ainda que não se saiba bulhufas do que trata a letra. 

Sem o menor pudor, ele faz algo que nenhum Chico, Caetano ou Gil fez: todo um refrão cantado numa língua inventada! E a história, tão típica de um país submetido ao domínio imperial da indústria cultural anglo-saxônica, devolve uma flor com cheiro de irreverência aos ditames do inglês de Copa do Mundo que querem fazer nossos taxistas "aprender" pra não fazer feio num evento que não dura mais do que um mês - Salve o Falso Inglês !!!

FALSO INGLÊS

Eu ouvi Paul Anka
Um Dia
Eu ouvi Ray Charles
Bill Halley

No rádio eu sempre ouvi
mas não entendia nada de inglês
mas eu guardava o som
toda melodia sem poder cantar

Eu tinha que inventar um jeito de cantar inglês
Gene Kelly
canta e dança sem eu entender
Eu via Fred Aster
legenda não serve pra poder cantar

Eu tive que inventar um jeito de cantar inglês
Beatles, Dylan
ouvi uma vez e eu cantei

Eu lembro que inventei 
todos se encantaram com meu falso inglês

Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai
Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai

Um uoraniusi onaruei olefitiudei
Wonder Woman
Lairanidamudiseiomai

Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai
Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai

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Pérola número quatro - GRAN CIRCO, de Milton Nascimento e Márcio Borges
Interessante como, 8 anos antes da obra-prima "O Grande Circo Místico", de Edu Lobo e Chico Buarque, em 1975 Márcio Borges já associava ao tema circense um ar sombrio, como que virando a gargalhada do avesso e antevendo , nos bastidores, a loucura da bailarina e a fome do palhaço, a costela quebrada. 

Tema esse que ele voltou a explorar em Pão e Água, de 1978. Lançada no disco Minas, talvez o mais forte trabalho fonográfico de Bituca, a faixa apresentava o compositor ao piano, com Fafá de Belém em início de carreira fazendo um vocalise, e um arranjo stravinskiano politonal de Wagner Tiso, uma pancada! 

Os acordes suspensos de Milton são absolutamente geniais, e sintéticos, sem exageros, a forma praticamente só com um A e uma introdução que se repete. Destaque para o intermezzo magnífico, algo difícil de definir, sucinto, e uma melodia no piano no finalzinho da música, quase inaudível, é preciso subir bem o volume pra escutar, linda linda, e nada a ver com o resto! Talvez seja a caixinha de música da bailarina louca!



GRAN CIRCO

Vem chegando a lona suja

O grande circo humano
Com a fome do palhaço e a bailarina louca
Vamos festejar
A costela que vai se quebrar
No trapézio é bobagem
A miséria pouca

Bem no meio desse picadeiro

Vão acontecer
Morte, glória
E surpresas no final da história
Pão e circo prata e lua
Um sorriso vai se desenhar
No amargo dessa festa
Junto dessa escória

Sobe e desce a montanha

O grande circo humano
No seu lombo, no seu ombro magro
Carregando
Prata e luar
O mistério que vai se mostrar
No arame
Equilíbrio sobre o sol raiando

Sonha espera o grande circo humano

Coração partido circo humano


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Quinta indicada - CANOA, CANOA de Nelson Ângelo e Fernando Brant. Canção ímpar, violenta em seu intervalo de trítono na melodia febril de Nelson Ângelo, que se tornou, como Fazenda, do mesmo autor, um clássico sem nunca ter sido muito tocada nas rádios ou nos shows do intérprete Milton Nascimento. 

Com uma tonalidade ambígua, a harmonia passeia entre um sol maior e um si menor, sem nunca se definir claramente, a não ser no B, espécie de refrão, que é claramente em mi menor. 

A tradução do tema indígena para a canção popular foi uma veia usada por Fernando Brant em pelo menos mais uma música : Promessas do Sol, mas Canoa Canoa talvez seja uma experiência ainda mais bem sucedida, com um refrão contendo nada mais do que nomes de peixes amazônicos e ainda assim sendo altamente contagiante e poderoso. 

Arranjo primoroso do compositor, que toca o violão, com Wagner Tiso ao Piano, Nenê na Bateria, e Novelli no baixo acústico, além de Danilo Caymmi na Flauta


CANOA, CANOA

Canoa canoa desce

No meio do rio Araguaia desce
No meio da noite alta da floresta
Levando a solidão e a coragem
Dos homens que são
Ava avacanoê
Ava avacanoê
Avacanoeiro prefere as águas
Avacanoeiro prefere o rio
Avacanoeiro prefere os peixes
Avacanoeiro prefere remar
Ava prefere pescar
Ava prefere pescar
 
dourado, arraia, grumatá
piracará, pira-andirá
jatuarana, taiabucu
piracanjuba, peixe-mulher
jatuarana...


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 A sexta, e última por hoje ( pretendo postar 6 por dia até o fim da semana pra completar as 30) - TESOURO DA JUVENTUDE, de Tavinhomoura Moura e Murilo Antunes. Um dos temas mais visitados e originais do cancioneiro do Clube da Esquina é o da infância, não só como lembrança ou saudosismo, mas no sentido ver o mundo com os olhos da criança, e outro tema fundamental no universo esquiniano é o passado , a história, o que foi e não é mais. 

Essa canção une os dois temas de maneira bastante equilibrada, e ainda o da viagem, que é o assunto preferido de toda a obra do Clube da Esquina. Fala do veterano da guerra, das frutas roubadas, da bicicleta, da pedra no poste, uma infância que as novas gerações só podem imaginar ... mas que são muito naturais e verdadeiras pra boa parte daqueles nascidos no século XX em cidades menores que megalópolis, como um dia foi Belo Horizonte, e ainda é Pedra Azul. 

Beto Guedes aprendeu logo a gravar pelo menos uma música de Tavinho Moura por disco, e ele não estava errado, dada a criatividade incrível de Tavinho para fazer as músicas mais arrojadas com materiais harmônicos ( acordes) tão simples. Absolutamente genial a assinatura melódico-harmônico-rítmica de Tavinho Moura, no espectro oposto do Toninho. 
Sem nenhum traço de influência jazzística, Tavinho ergueu sua absurda obra praticamente só com acordes maiores, menores, com sétima e diminutos, às vezes com quintas aumentadas, mas com cadências inesperadas e saltos surpreendentes que , nessa canção, ilustram perfeitamente as peripécias de um menino andando de bicicleta no interior de Minas na década de 50. Há uma linda versão dessa no novo dvd de Murilo Antunes Dvd


TESOURO DA JUVENTUDE

A pedalar

Camisa aberta no peito
Passeio macio
Levo na bicicleta
O meu tesouro da juventude
Passo roubando fruta de feira
Passo a puxar meu estilingue
Vai pedra certeira no poste
Passa um veterano
E já cansado
Herói de guerra
Grito: Lá vem a bomba!
E meu tesouro me leva
Pelas ruas de Santa Teresa
a rodar, a rodar
A pedalar
Encontro amigo do peito
Sentado na esquina
Pula, pega garupa
Segura o bonde ladeira acima
Ganha o meu tesouro da juventude
Ainda que a cidade anoiteça
Ou desapareça
Piso no pedal do sonho
E a vida ganha mais alegria
Ganha o meu tesouro da juventude
Que foi em Pedra Azul
E em toda parte
Onde tive o que sou

18 de novembro de 2012

O que seria transculturação? Ouça essa canção...

Como resistir à chance de unir o útil ao agradável, retomando aqui um pequeno trecho da tese que trata dessa pequena pedra-de-toque?

"[...] A canção, como já dissemos, é um meio privilegiado para transações culturais, uma vez que a voz proporciona a apropriação da outra sonoridade, da outra voz. Toninho Horta e Fernando Brant demonstram este argumento de maneira muito própria em Falso Inglês (Wonder Woman) [LP Terra dos Pássaros. EMI, 1979]:“(...)Gene Kelly/canta e dança sem eu entender(...) Beatles, Dylan, / eu tinha que inventar um jeito de falar inglês(...) Todos se encantaram com meu falso inglês/ Oh, wara ai ri iu se, uana guet folou mi rear (...)” A pronúncia do inglês, afetada pela dicção do português, torna-se o próprio centro da composição. A parte final da letra é um encadeamento de palavras e sonoridades que remetem ao inglês. Elas não têm sentido na seqüência textual da frase, embora se adeqüem perfeitamente à seqüência musical. Isto resume e resolve a canção, uma vez que o objetivo do sujeito (cantante) não era aprender inglês, e sim “inventar um jeito de falar”, criar seu próprio “falso inglês” para cantar e encantar.As transações culturais não se dão em espaços neutros, em tempos vazios. Podemos, por isso, ir ainda mais fundo na identificação do papel de mediação cultural exercido pela voz. Ocorria então uma forte penetração da música pop de origem anglo-saxã, e o surgimento de conjuntos e intérpretes que compunham e cantavam em inglês a fim de participar da maior fatia do mercado fonográfico. Falso inglês discute de forma inequívoca tal penetração, identificável aos meios de comunicação de massa: o cantante fala de estrelas de cinema (Gene Kelly), dos músicos que ouviu no rádio (Paul Anka, Bill Haley), da televisão (seriado Wonder Woman, Mulher Maravilha). No entanto, sua prática é diametralmente oposta a dos músicos que fingiam ser ingleses ou americanos. Seu inglês é assumidamente falso! Sua vontade não é copiar, mas sim reinventar através de sua própria interpretação da sonoridade daquela língua". (GARCIA, 2007, pp. 195-196)