A página do diário íntimo elétrico de Beto Guedes, ótimo texto do
A Página do Relâmpago Elétrico
Abre a folha do livro
Que eu lhe dou para guardar
E desata o nó dos cinco sentidos
Para se soltar
Que nem o som clareia o céu nem é de manhã
E anda debaixo do chão
Mas avoa que nem asa de avião
Pra rolar e viver levando jeito
De seguir rolando
Que nem canção de amor no firmamento
Que alguém pegou no ar
E depois jogou no mar
Pra viver do outro lado da vida
E saber atravessarProsseguir viagem numa garrafa
Onde o mar levar
Que é a luz que vai tescer o motor da lenda
Cruzando o céu do sertão
E um cego canta até arrebentar
O sertão vai virar mar
O mar vai virar sertão
Não ter medo de nenhuma careta
Que pretende assustar
Encontrar o coração do planetaE mandar parar
Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais
Que nem ronco do trovão
Que eu lhe dou para guardar
A paixão é que nem cobra de vidro
E também pode quebrar
Faz o jogo e abre a folha do livro
Apresenta o ás
Pra renascer em cada pedaço que ficou
E o grande amor vai juntar
E é coisa que ninguém separa mais
Que nem ronco de trovão
Que eu lhe dou para guardar
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Tema dos Deuses, de Milton Nascimento. A voz de Milton certa
vez foi descrita por Elis Regina como a voz de Deus, talvez depois de
ouvir essa música sem letra mas que tem a voz como atração principal,
além da oblíqua, profunda, sinistra, desconcertante condução harmônica,
como que revelando as vísceras, as entranhas das divindades, e o que
elas tem de grandioso e amedrontador, de teleológico e incomensurável,
de doloroso e intangível e indecifrável. Milton tem a alma plugada lá em
cima mesmo. Dar sentido à seguinte cadência: E (#11) Gm E (#11) Cm Gm
Cm G#m Dm Bm B7 Dm Em não é pra qualquer mortal. A versão com orquestra
no Milagre dos Peixes ao vivo (1974) é talvez a mais visceral, e mais uma
vez prova que quando um compositor do nível de Bituca carrega muito no
discurso harmônico melódico, ele o repouse na forma mais simples
possível: um único A, repetido e acrescido, nas duas últimas
repetições, da melodia crucial que dá o ápice climático da música. Feita
para o filme de Ruy Guerra, Os Deuses e os Mortos, a música se tornou
célebre pela sua contundência, independente do filme.
Músicos
: Wagner Tiso : Órgão e Piano , Toninho Horta : Guitarra , Luiz Alves :
Baixo , Robertinho Silva : Bateria, Nivaldo Ornelas : Sax e
orquestração de Wagner Tiso, para o Orquestra Sinfônica de São Paulo.
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Lista Do Clube, number nine: Beijo Partido, de Toninho Horta. Toninho fez letra e música dessa canção que talvez seja a sua mais standard, transformada em tema instrumental e incorporada ao repertório jazzístico no mundo inteiro, por méritos próprios, uma melodia arquetípica que , a partir de certos cromatismos e dolorosos saltos, amarra as improváveis e distintivas modulações que tanto caracterizam a obra do compositor belorizontino. De Mi menor para Fá Sutenido, e dali rapidamente para Ré Maior, voltando sublimemente para o tom original. Mais uma vez as peripécias melódico-harmônicas são ancoradas em formidável simplicidade formal, mas que se encadeia de tal forma que quando o tema volta, parece ser um desenvolvimento do seu próprio final, caráter cíclico que amarra ainda mais um A repetido seguido de um estribilho (dessa vez em Si Maior ! ): Onde estará a rainha que a lucidez escondeu, escondeu ... , e por fim uma coda altamente propícia para improvisações, dois acordes dissonantes em movimento pendular... Beijo Partido condensa todos esses elementos e foi uma música imediatamente gravada por Milton Nascimento, Nana Caymmi, e de lá pra cá deve ter amealhado dezenas de versões mundo afora, além das do próprio compositor. Não foi à toa ! :)
Beijo Partido
(Toninho Horta)
Sabe, eu já não faço fé nessa minha loucura
e digo
Eu não gosto de quem me arruina em pedaços,
e Deus
É quem sabe de ti,
e eu não mereço um beijo partido
Hoje não passa de um dia perdido no tempo,
e fico
Longe de tudo o que sei, não se fala mais nisso, eu sei
Eu serei pra você,
o que não me importa saber
Hoje não passo de um vaso quebrado no peito, e grito
Olha o beijo partido
Onde estará a rainha
Que a lucidez escondeu ... escondeu ...
Viver, Viver
Mil dias mais
Mil sonhos mais
Mil anos luz num dia
As ruas são
Meu mundo são
Mil vidas mais
Viver, viver
Tudo que Deus dará
Afim de ver
Mentes e corações
Abertos pra dizer
Ao modo de seu tempo
Eu sei viver assim
Vou do começo ao fim
Viver, morrer
Fontes da mesma luz
O som, a voz, o meio dia
Teu sonho amor
Pessoas mil
Mil ideais num dia
O sonho tem
Mil coisas mais
Deserto e cais...
Viver, viver
Tudo que o mundo tem
Saber viver
Tudo que a gente é
Dourar de sol a melodia
Viver, viver
Tudo que Deus dará
Afim de ver
Mentes e corações
Abertos às manhãs
E a alça contra os ventos
Crescer e arriscar
Tudo que pode ser
Viver, morrer
Fontes da mesma luz
O som, a voz, a melodia...
Beijo Partido
(Toninho Horta)
Sabe, eu já não faço fé nessa minha loucura
e digo
Eu não gosto de quem me arruina em pedaços,
e Deus
É quem sabe de ti,
e eu não mereço um beijo partido
Hoje não passa de um dia perdido no tempo,
e fico
Longe de tudo o que sei, não se fala mais nisso, eu sei
Eu serei pra você,
o que não me importa saber
Hoje não passo de um vaso quebrado no peito, e grito
Olha o beijo partido
Onde estará a rainha
Que a lucidez escondeu ... escondeu ...
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A décima escolhida é Viver,Viver, de Lô
Borges, Murilo Antunes e Márcio Borges, balada magnífica em cordas de
aço e baixos invertidos cromáticos e uma melodia mais uma vez
escandalosamente bonita, alternando,
como é típico do seu compositor, graus conjuntos e saltos em sextas que
pontuam os rápidos procedimentos harmônicos. Lô foi quem mais conseguiu liquefazer a harmonia bossa-novista em contexto estilístico totalmente
diferente, mais próximo melodicamente e em termos de arranjo, da
influência dos Beatles. Mil ideais num dia , deserto e cais, dourar de
sol a melodia ... a letra é mais uma daquelas odes à vida e à beleza, ao
sabor dos ventos, fontes da mesma luz, dessa vez com dois letristas, o
que demonstra a unidade estética de fato do movimento Clube Da Esquina,
cuja dinâmica está muito bem representada no Murilo Antunes Dvd, onde
essa pérola ganhou nova versão de Lô e Milton Nascimento. Atenção para a
ficha técnica da versão original, presente no disco Nuvem Cigana, de
1981 : Viver, Viver (Lô Borges, Márcio Borges e Murilo Antunes). Bateria e Cuatro venezuelano – Beto Guedes; percussão – Aleuda; arp e violão – Lô Borges; voz – Milton Nascimento; baixo elétrico –Paulinho Carvalho; piano – Telo Borges; percussão – Robertinho Silva.
Viver, Viver
Mil dias mais
Mil sonhos mais
Mil anos luz num dia
As ruas são
Meu mundo são
Mil vidas mais
Viver, viver
Tudo que Deus dará
Afim de ver
Mentes e corações
Abertos pra dizer
Ao modo de seu tempo
Eu sei viver assim
Vou do começo ao fim
Viver, morrer
Fontes da mesma luz
O som, a voz, o meio dia
Teu sonho amor
Pessoas mil
Mil ideais num dia
O sonho tem
Mil coisas mais
Deserto e cais...
Viver, viver
Tudo que o mundo tem
Saber viver
Tudo que a gente é
Dourar de sol a melodia
Viver, viver
Tudo que Deus dará
Afim de ver
Mentes e corações
Abertos às manhãs
E a alça contra os ventos
Crescer e arriscar
Tudo que pode ser
Viver, morrer
Fontes da mesma luz
O som, a voz, a melodia...
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A décima-primeira é a primeira(!!!) composição de Milton Nascimento, ao lado de Márcio Borges,
a estupenda e distinta Novena, só gravada pela primeira vez por Beto
Guedes em 1978 , e pelo autor só em 1992 , no disco Angelus. Pertinente observar que boa parte das pérolas do Clube é em tom menor, o
que proporciona, via de regra, um clima mais sombrio à harmonia, ainda
mais se construída de forma polimodal, alternando os modos da escala com
a inclusão de acordes surpreendentes, que parecem ir contra toda a
tradição harmônica no campo popular ocidental. O baixo pedal e a
estranha sequência de tríades sugerem uma descoberta puramente empírica
ao violão, subindo e descendo acordes com a mesma fôrma manual, e
desvelando soluções surpreendentes e imprevisíveis, e enfatizando o
sentido de mais uma letra icônica, assimétrica, dura que transcende e ao
mesmo tempo faz jus ao contexto político da década de 1960, a 'chama'
insurgente da juventude em meio à escalada militar cada vez mais brutal.
"É pelos malditos deserdados desse chão" ...
A forma é bastante simples,
consistindo num A repetido em dois versos, e um B onde se chega a si
menor, o relativo do tom paralelo maior da tônica, ré meno, voltando
para um A diferido com um movimento harmônico igualmente ascendente mas
rigorosamente diferente entre seus acordes. Os cromatismos harmônicos
espantaram e fascinaram os jazzistas americanos de tal forma que Milton
fez seu segundo disco de carreira, logo em 1968, nos EUA, ao lado de nomes
como Herbie Hancock, e outros três durante a década de 1970 - Journey to
Dawn, Native Dancer, ao lado de Wayne Shorter, e Milton (1976) (pra mim o
melhor deles), e na gravação do Angelus teve Pat Metheny, Herbie Hancock
, Ron Carter e Jack De Johnette como seus luxuosos acompanhantes ...
ainda assim, eu me atrevo a preferir a versão 'original', com Beto
Guedes cantando com seu falsete de metal, Milton no violão, Luiz Alves
no baixo, Robertinho Silva na beteria e orquestração e piano do
formidável Wagner Tiso.
Novena
Se digo um ai
É por ninguém
É pela certeza de saber que tudo tem
Tem sua vez de lá retornar
ao lugar mais fundo, fundo, fundo , mais que o mar
Se digo sol
Não tem talvez
Não espero mais a chuva
Só preparo meu começo
A explosão de toda luz
A chama, chama, chama, chama
Se digo amor
Só é por alguém
É pelos malditos deserdados desse chão
Pai Grande
Meu pai grande
Inda me lembro
E que saudade de você
Dizendo: eu já criei seu pai
Hoje vou criar você
Inda tenho muita vida pra viver
Meu pai grande
Quisera eu ter raça pra contar
A história dos guerreiros
Trazidos lá do longe
Trazidos lá do longe
Sem sua paz
De minha saudade vem você contar
De onde eu vim
É bom lembrar
Todo homem de verdade
Era forte e sem maldade
Podia amar
Podia ver
Todo filho seu
Seguindo os passos
E um cantinho pra morrer
Pra onde eu vim
Não vou chorar
Já não quero ir mais embora
Minha gente é essa agora
Se estou aqui
Eu trouxe de lá
Um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar
Novena
Se digo um ai
É por ninguém
É pela certeza de saber que tudo tem
Tem sua vez de lá retornar
ao lugar mais fundo, fundo, fundo , mais que o mar
Se digo sol
Não tem talvez
Não espero mais a chuva
Só preparo meu começo
A explosão de toda luz
A chama, chama, chama, chama
Se digo amor
Só é por alguém
É pelos malditos deserdados desse chão
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Pai Grande
Meu pai grande
Inda me lembro
E que saudade de você
Dizendo: eu já criei seu pai
Hoje vou criar você
Inda tenho muita vida pra viver
Meu pai grande
Quisera eu ter raça pra contar
A história dos guerreiros
Trazidos lá do longe
Trazidos lá do longe
Sem sua paz
De minha saudade vem você contar
De onde eu vim
É bom lembrar
Todo homem de verdade
Era forte e sem maldade
Podia amar
Podia ver
Todo filho seu
Seguindo os passos
E um cantinho pra morrer
Pra onde eu vim
Não vou chorar
Já não quero ir mais embora
Minha gente é essa agora
Se estou aqui
Eu trouxe de lá
Um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar
NOVENA ERA considerada pelo BITUCA sua primeira música; até ele admitir BARULHO DE TREM, que havia composto anos antes, na adolescencia, como uma "musica válida". tendo inclusive gravado a musica (em belo arranjo do WAGNER) no cd CROONER (1998); portanto, BARULHO passou a ser PRIMEIRA. NOVENA é AVANT GARDE total. mas observem BARULHO, mesmo com suas influencias bossanovísticas. ela é.... bem diferente do padrão; uma música também interessantíssima não apenas do ponto de vista "arqueológico" mas, principalmente do ponto de vista musical.
ResponderExcluirkiko continentino
ens razão caro Kiko, só o Bituca pra ter duas primeiras músicas impressionantes. Sua lembrança é oportuníssima. "Barulho de trem", pensando no aspecto arqueológico, como você disse, foi inclusive a primeira autoral gravada pelo Bituca. Aliás, aproveitando pra lembrar também que "Novena" originalmente chamava-se "Paz do amor que vem" e foi seguida, na mesma noite por "Gira-Girou" e "Crença", no impulso criativo que marcou o início da parceria entre Milton Nascimento e Márcio Borges. Obrigado pela contribuição, Kiko!
ExcluirOi Pablo.
ExcluirÓtima lista! Quantas do Beto ein? Meu preferido. Coloco na minha lista a Página do Relâmpago em 1a.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá Pablo,
ResponderExcluirfui eu quem "upei" o vídeo de Pai Grande no Youtube que você anexou aqui.
Fico feliz que tenha ajudado de certa forma :)
Tento tocar e cantar essa música no violão mas tenho certa dificuldade. Não sabia da presença da polirritmia na canção, sou um amador (principalmente em ritmos, rs).
Uma pergunta: Novena foi a primeira música de Milton com Márcio? Então ela foi escrita antes de 1967 mas somente gravada em 1978?
Um abraço,
gostei da sua iniciativa de fazer a lista!
Caro Luiz Felipe, agradeço em nome do Pablo. Veja que a resposta ao comentário do Kiko Continentino já responde em parte sua pergunta. Esse momento criativo é narrado pelo Márcio Borges em Os sonhos não envelhecem, livro altamente recomendável. Então o que ocorreu é que a canção, com outra letra, foi finalmente gravada em 1978 pelo Beto Guedes no disco Amor de Índio. Obrigado pela ajuda e pela presença!
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