Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

28 de janeiro de 2012

O burguês e a marchinha

Em pleno aquecimento para o carnaval, uma iniciativa pra lá de interessante, que incluiu uma homenagem pra lá de justa, o Concurso de Marchinhas Mestre Jonas, que vai selecionar as melhores para o baile da Banda Mole em BH, acabou tendo um desdobramento de ordem política. Ontem o compositor belorizontino Flávio Henrique [na foto, ao lado de Juliana Perdigão defendendo a marchinha no concurso] foi obrigado a retirar da internet, sob ameaça de processo por parte do vereador Léo Burguês(PSDB), presidente da Câmara Municipal, sua composição Na coxinha da madrasta(lanche do burguês). Como diz a matéria do jornal Super, "era para ser uma brincadeira de Carnaval". Mas a coisa ficou séria e o compositor recebeu o seguinte recado: "O advogado me disse que a marchinha estava causando dano moral ao vereador". A reação do dito vereador é desmedida e descabida. Afinal de contas, não é o primeiro e muito menos o último político a ser satirizado. Trata-se de tradição salutar que dá fôlego à crítica através de expressões culturais centrais em nossa vida social, a ser defendida sempre. Numa democracia, todo aquele que assume a vida pública (hoje confundida com a deplorável expressão "carreira política") deve estar preparado para o julgamento público e político de seus atos. O assunto de que trata a letra da marchinha já estava plenamente noticiado e o que cabe ver na Justiça é a correção ou não dos atos do vereador, que de acusado quer passar a vítima. Além do mais não há uma menção direta, citação de nomes, nada que permita abrir qualquer acusação. A ameaça não passa de um abuso, digno de repúdio. E o fato é que, infelizmente, o autor não se sente suficientemente resguardado em nossa "atmosfera jurídica", o que mostra que há muito a fazer até que possamos dizer que todos os nossos direitos estão de fato assegurados. Mas não pode haver silêncio, sob pena de dar poder a esse tipo de ameaça sem embasamento. O ônus do vereador deve-se a seus próprios atos, a serem julgados nas devidas instâncias, e pelos cidadãos nas urnas. A música popular, mais uma vez, representou para nós um espaço de liberdade, do qual não podemos jamais abrir mão. O gesto censor, no atual contexto, é autoritário mas também tolo, pois só fará aumentar a repercussão e circulação da marchinha, que aliás é muito bem feita. E essa historieta ainda há de ser contada, com ares anedóticos, começando assim: era uma vez, um certo burguês...quer que eu te conte outra vez?



P.S. 2018 -  

Num tempo relativamente curto os links se quebram, as fontes somem, as imagens se esvaem. Essa fragilidade acaba tornando a internet - aparentemente um arquivo infalível e inesgotável - um prato cheio para a prática do esquecimento. Nos últimos anos a atenção pública para este fenômeno aumentou, como demonstram as discussões sobre pós-verdade, fake news, etc.
Numa intensidade diferente isso também representa um problema para a construção dos patrimônios culturais, à medida em que se confie cegamente em digitalizações, nuvens e afins. Estamos, particularmente no Brasil, engatinhando no que diz respeito a preservar para as gerações futuras o que é significativo de algum modo para compreender nosso tempo e foi criado e circula em meio digital.
Sempre penso nisso quando busco alguma postagem antiga do meu blog, como ia fazendo agora.
Quis recuperar a postagem - uma das que mais foi vista dentre todas que já fiz, "O burguês e a marchinha" - motivado pelo carnaval e também pela lembrança ao nosso agora saudoso Flávio Henrique, autor de várias pérolas e também dessa inesquecível marchinha, que justamente venceu o concurso [aqui]. Sua relevância no contexto de transformação do carnaval de rua em BH nessa década é inconteste. Apesar dos links 'caídos', o texto está intacto. Tentei recuperar ou substituir o que foi possível.

9 comentários:

  1. A marchinha nem cita o nome do babaca! absurdo! Que democracia a nossa!

    Abs do Lúcio jr!

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    1. ...Parece que o Burg... sabe mesmo é vestir uma carapuça. Coube direitinho.

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    2. É, e ele não vai conseguir tirá-la mais.

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  2. Pois é Lúcio jr, inaceitável. Mas tem aquele ditado...apelou, perdeu. Acho que se aplicará muito bem ao caso.

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  3. Virou um viral. Ele não tem mais como impedir.

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  4. É a deliciosa ironia da reação do apelão, ela sempre maximiza o barulho que ele pretendia abafar. Uma despretenciosa marchinha, quando abraçada dessa forma, pode derrubar definitivamente o sujeitinho. Até quem não liga pra carnaval vai ficar sabendo.

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  5. Diz o Pedro Munhoz: "o Burguês não está sendo bem assessorado juridicamente. Além de as chances de um processo contra o compositor resultar em vitória serem ínfimas, a atitude de Burguês serviu apenas para fazer ainda mais propaganda da música. Como se trata de uma marchinha, para ser cantada e tocada por um número indeterminado em blocos, não há nenhuma maneira de impedir que ela seja amplamente divulgada. E será, e tem que ser, principalmente agora."

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  6. Minha contribuição calória ao embate salgadístico: quem quiser ouvir e compartilhar: http://soundcloud.com/anacristinacantora/coxinhaa

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  7. É uma infestação de coxinhas...haja madrasta...Falando sério, a organização até prorrogou as inscrições. Dialeticamente, a atitude do burguês não apenas aumentou o prejuízo político e simbólico dele como foi o estopim que botou fogo no paiol da criatividade dos músicos belorizontinos. Muito bom participar dessa grande celebração que mostra a vitalidade da nossa cena musical junto com meu parceiro Pablo Castro: http://soundcloud.com/luizhenriquegarcia/ocupai-ocupai

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