Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

21 de janeiro de 2012

Cálice na Phono 73 e hoje

Pois é, já que estava justamente pensando na re-significação das canções...Com essa história de embarreirar a internet muita coisa vem à cabeça. Numa visão simplista parece que há dois lados, quando se trata de interesses políticos e comerciais que estão articulados de forma complexa e que, se estão em momentâneo desacordo, poderão estar novamente acomodados no futuro. Não quero com isso negar os conflitos que decorrem das possibilidades oferecidas pela rede mundial de computadores, mas refletir sobre o que estão de fato a defender certos "arautos" da liberdade como Google ou Facebook. Lembrei-me de quando pesquisava a censura no Brasil da ditadura e li num trabalho de fins da década de 1970 sobre o assunto:
“Atualmente a censura é feita sobre a letra, o que não causa prejuízo financeiro como antes quando a música gravada era censurada. Para chegar até essa situação foi necessário que as gravadoras interviessem e demonstrassem os prejuízos financeiros que sofriam.” 
[ALVES, Magda M. Autoritarismo e censura no Brasil: notas preliminares de pesquisa(póstuma). Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, Mestrado, 1978. p.90]
Assim, como eu escrevi na minha dissertação a "(...)censura deveria ainda compatibilizar sua função política com o interesse do regime no crescimento dos meios de comunicação de massa e garantir o lucro de seus donos privados nacionais e estrangeiros". Dialeticamente, era justamente isso que garantia aos músicos populares espaço para o enfrentamento da censura e do regime de modo mais amplo, não sem desgastes de toda ordem. Ou seja, em resumo, por mais que tentem, não podem de fato calar a boca das pessoas. É disso que nos fala Cálice (G. Gil/C. Buarque), canção composta inicialmente para a Phono 73 (confira notas de Humberto Werneck , Jairo Severiano/Zuza H. de Melo e Heloísa Tapajós). Apesar de já conhecer os relatos, o impacto maior veio quando assistia (graças a mais um generoso compartilhamento da minha orientadora - valeu Lena!) ao DVD e ouvi os CDs lançados em 2005, quando fazia a pesquisa do doutorado (matéria da Ilustrada sobre o evento e o lançamento do DVD/CD). Assim, tomo de empréstimo as palavras e a música de Gil e Chico, e sua performance emblemática, pra dizer que os donos do poder e do dinheiro não irão calar, não irão impedir quem quiser curtir e compartilhar, seja como e onde for, senão "arroz à grega laialaraiá"...





P.S. Cálice 2014
Acabei de assistir o vídeo do show da Joan Baez - figura de proa da canção engajada estadunidense e mundial - de tantas formas emblemático agora, com tudo que acontece por esses dias, pela premência de questões políticas, pela amarga efeméride de 50 anos do golpe,  considerando o fato de que seu show anterior no Brasil, à 33 anos, foi cancelado pela arbitrária ditadura que então assolava o país [ver matéria da Folha S.P.; de O Globo]. Ao vê-la dividindo o palco e o canto com Gil e Milton, só posso pensar que esse encontro de vozes e trajetórias é forte no que assinala no passado e no presente, que é o poder das canções, muitas vezes para além do momento de sua feitura, de tanger as cordas do violão do mundo e fazê-lo vibrar. Assista aqui 

P.S. Cálice por Gilberto Gil [de sua página no facebook]

"A Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros, e foi dada a mim e ao Chico a tarefa de compor e cantar uma música em dupla.

"Era semana santa e nós marcamos um encontro no sábado no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (a lagoa referida, aliás, por ele na letra). Eu pensei em levar alguma proposta e, um dia antes, no fim da tarde, me sentei no tatame, onde eu dormia na ápoca, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar. Como era sexta-feira da Paixão, a idéia do calvário e do cálice de Cristo me seduziu, e eu compus o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia. Em seguida escrevi a primeira estrofe, que eu comecei me lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que eu ia a sua casa.

"No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida, e eu já lhe mostrei o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, eu cheguei ao 'cálice', no ato ele percebeu a ambiguidade que a palavra, cantada, adquiria, e a associou com 'cale-se', introduzindo na canção o sentido da censura. Depois, como eu tinha trazido só o refrão melodizado, trabalhamos na musicalização da estrofe a partir de idéias que ele apresentou. E combinamos um novo encontro.

"Ele acabou fazendo outras duas estrofes e eu mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. Dois ou três dias depois nos revimos e definimos a sequência. Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, minha, a segunda, dele; a terceira, minha, e a última, dele.

"Na terceira, o quarto verso e os dois finais já foram influenciados pela idéia do Chico de usar o tema do silêncio. O termo, alías, já aparecia na outra estrofe minha, anterior: 'silêncio na cidade não se escuta', quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio; quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, 'mesmo calada a boca, resta o peito' e 'mesmo calado o peito, resta a cuca': se cortam uma coisa, aparece outra. "Aí, no dia em que nós fomos apresentar a música no show, desligaram o microfone logo depois de termos começado a cantá-la. Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la."

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