Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

1 de agosto de 2016

O primeiro grande show beneficente faz 45 anos - Concerto para Bangladesh

Há tempos penso em criar uma série compartilhando impressões e material sobre shows de música popular que marcaram época, e eventualmente os que eu mesmo assistir ou que seja resenhado por colunista convidado. Ainda não sei qual a forma definitiva, mas pensei em aproveitar a efeméride para começar pelo Concerto para Bangladesh, pioneira iniciativa de fazer um grande concerto de música popular para arrecadar fundos em apoio a uma causa humanitária. George Harrison inclusive compôs a canção de nome "Bangla Desh" para narrar como o apelo de seu amigo e mestre musical, o sitarista Ravi Shankar, lhe inspirou a realizar tal concerto, para o qual convidou grandes nomes da música popular anglófona, incluindo Bob Dylan, Eric Clapton, Ringo Starr, Billy Preston e Leon Russell, entre outros. Certamente a maior performance ao vivo de Harrison após o fim dos Beatles, realizada no momento de pico artístico em sua carreira, após o lançamento do álbum triplo All things must pass e o sucesso do single My Sweet Lord. 


Incorporei a playlist abaixo com muito material do show, infelizmente não há um vídeo único com o show na íntegra circulando livremente:


20 de julho de 2016

Canções irmãs, compositores irmãos

Tempo de férias é tempo de dedicar um pouco mais de atenção ao blog. Tirar a poeira aqui e ali, arrumar links quebrados, pensar em novidades, retomar ideias que a falta de tempo não permitiu levar adiante. Enquanto isso vão pintando postagens sugeridas por conversas ou navegações internáuticas, como por exemplo o comentário que segue, do meu parceiro Pablo Castro, sobre as "canções irmãs".A curiosidade extra é que a inspiração foram canções compostas por compositores irmãos [o que pode vir a ser tema de outra postagem]. Obviamente a grande amizade entre parceiros ou companheiros de banda pode ser vista como uma forma de irmandade também, o que certamente é verdadeiro para todos os que estão mencionados no comentário:

"Lô e Márcio Borges fizeram uma espécie de sequência da balada Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, chamada Onde a Gente Está, com o mesmo tipo de abordagem.
Adoro canções irmãs. Os Beatles fizeram muitas vezes isso. George fez Here Comes The Sun e depois Here Comes the Moon, While My Guitar Gently Weeps e depois This Guitar Can´t Keep From Crying.
Paul fez Yesterday e depois Tomorrow, Blackbird e depois Bluebird. Caetano fez Você é Linda e depois Você é Minha. Gil foi além : Refazenda, Refavela, Rebento, Realce, e também Extra e Raça Humana. São canções irmanadas. São como côncavos e convexos. "


Lô Borges, Márcio Borges e Wanderson Eller em intervalo de show de Lô no Circo Voador. Rio de Janeiro, RJ - 1986. [Acervo Museu Clube da Esquina]

Acabei fazendo uma playlist com a maioria das citadas para acompanhar a leitura.


18 de julho de 2016

1a. c/ a 7a. Os cinemas cantados na música popular

Um dos grandes momentos das atividades culturais que realizei durante o último Congresso da IASPM-AL em Havana foi sem dúvida uma perambulação pela Calle 23, bem pertinho de onde estava hospedado. Ponto de grande agito cultural e movimentação, casas com música ao vivo e cinemas, como o Cine La Rampa, um cinemão, rampa acarpetada, balcão, cadeiras com encosto de madeira, lembrando muito por dentro o Cine Brasil da BH da minha infância.  

Lembrei disso tudo ouvindo a composição Cinema Rio Branco do excelentíssimo Sergio Santos , inspirada num cinema de Varginha. Aliás, vale ouvir de cabo a rabo seu disco Litoral e Interior (Biscoito Fino, 2010) mais um primor da lavra dessa figura central da música popular mineira e brasileira. 


Lembrei, logo na sequência, da belíssima Cine Baronesa, mais uma pérola do grande Guinga, desta feita em parceria com Aldir Blanc, gravada com a participação do quarteto Maogani e da cantora Fátima Guedes no disco homônimo de 2001 (saiu pela gravadora Caravelas - aqui uma resenha do disco).



Mesmo quando os lugares se vão, a música pode perpetuá-los pelo modo como expressa seus significados lembrados através do som e pela forma como os ouvintes podem reconhecê-los. Uma pena que quase não há cinemas assim mais, mas ao menos resta a possibilidade da rememoração, se for em música então, ainda mais comovente.
Há uma lista interminável de canções que fazem referência a cinemas, esses templos modernos do deslumbramento com a imagem e som em movimento. Como é uma postagem de férias, deixo aos leitores que porventura se animarem a tarefa de encompridá-la. 

16 de julho de 2016

Salve, João Bosco


João Bosco completou 70 anos, produzindo bastante e na eminência de lançar disco novo de inéditas [leia aqui], e a data merece ser marcada. Pensei em fazer algo diferente do costume que tem sido simplesmente repostar na página de facebook as principais postagens que tratam do aniversariante da vez. Vou então reunir algum material novo e agregar um texto da minha tese. Aproveito dois vídeos de grande interesse que meu parceiro Pablo Castro compartilhou ontem. 



O primeiro é o registro histórico promovido pelo Instituto Moreira Salles, em que João Bosco executa com banda o disco Galos de Briga todo no palco e com as histórias sobre sua gravação.
 


O segundo é o clipe exibido em 1978 no Fantástico da canção Tiro de Misericórdia, poderosa crônica musicada de Bosco e Blanc sobre a ascensão de um pequeno rei do crime nos morros cariocas, prefigurando o cenário descrito pela antropóloga Alba Zaluar em seu livro Condomínio do Diabo, ou a imagem mais popularizada do livro Cidade de Deus de Paulo Lins, posteriormente transformado em filme. Esse pequeno texto de Alba dá uma base para refletir sobre o assunto [aqui]. A obra de João Bosco, especialmente em parceria com Aldir, é um inventário impressionante do cotidiano urbano e dos conflitos constituintes da realidade social brasileira.  Pinço da tese dois comentários sintéticos sobre a obra de João.

https://globoplay.globo.com/v/843843/

César Camargo Mariano:

“João é de uma fertilidade e de uma riqueza tão grande que não é possível prever o que virá em seguida. Ele trabalhou em cima do rock e das músicas que ouvia no rádio; em cima dessas fontes fez suas pesquisas, descobriu-se e descobriu coisas novas. Usa várias afinações no violão, o que multiplica as possibilidades do instrumento. Com tudo isso, e mais sua grande intuição de ritmo, ele consegue montar uma estrutura melódica tão boa que poderia comunicar mesmo sem letra”.


Tárik de Souza:

“Sem uma tradição ou uma escola, a música de João Bosco e Aldir Blanc é filha de todas as tradições e escolas: o Villa-Lobos e o Roberto Luna de Auxiliadora [irmã de Bosco] em Ponte Nova; os chorinhos e as músicas carnavalescas na eletrola do avô [de Blanc]; Ângela Maria, Cauby Peixoto e Dalva de Oliveira no rádio; e o ritmo importado de Elvis Presley e Little Richard, executado onde nem a eletricidade chegara. Seresta em Ouro Preto; samba e quadrinhos no Estácio. A classe média carioca e mineira observando a vida urbana e suburbana sob o prisma de milhares de influências musicais que formariam uma nova música popular brasileira”.


 

11 de julho de 2016

Bolacha completa especial - A música século XX de Jocy

No final de 2015 saiu essa matéria no blog do IMS  (que vem fazendo um belo trabalho de preservação e divulgação de nossa memória musical), muito comentada entre vários amigos cantautores da cena belorizontina. Um disco inusitado, ímpar, e que escapara a ouvidos conhecedores e atentos. Eu mesmo não ouvira falar dele. E ouvir as músicas, disponíveis via soundcloud, só aumenta o espanto. Decidi fazer essa postagem apenas com o intuito reter algo daquele espanto, pois o texto de André Kangussu [completo, aqui] cumpre a incumbência de modo tão completo que no momento não consigo pensar em nada para acrescentar. Destaco alguns trechos:

"Aos 23, idade em que lançou o disco, Jocy já era uma pianista celebrada, tendo sido solista na Orquestra Sinfônica Brasileira e se apresentado na Europa e nos Estados Unidos, sempre sob a regência de seu então marido, o maestro Eleazar de Carvalho. Sua formação nada tinha a ver com música popular, e o álbum foi sua única obra nesse campo. Suas composições futuras seriam todas eruditas e de alto teor experimental.(...)

A música século XX se posiciona de modo ambíguo em relação à bossa: ora se conforma a ela, ora a toma como um estilo a ser revisto, parodiado e deformado. (...)

Ao comentar o escasso reconhecimento de sua obra, Jocy aponta o desprestígio que enfrentavam e ainda enfrentam as compositoras mulheres, em quem, diz, só se reconhece a utilidade de musa ou de intérprete. A esse propósito, ela conta em seu livro Diálogo com cartas (SESI, 2014), recente vencedor do prêmio Jabuti, que sua peça Apague meu spotlight, de 1961, "representou a primeira apresentação de música eletrônica no Brasil", mas que foi "ignorada até hoje por grande parte dos compositores 'eletroacústicos' brasileiros". Segue dizendo que é mais comum encontrar referências no exterior de sua participação entre os pioneiros de multimídia nos Estados Unidos do que nos "compêndios de música contemporânea brasileira assinados pela inteligência acadêmica masculina do país".
A década de 1960 foi decisiva em nossa música. É tentador imaginar a carreira que Jocy teria construído em diálogo com os músicos dessa geração se houvesse prosseguido com a canção popular.
Sobrou-nos, de qualquer modo, um disco. É preciso propor que ele seja reconhecido não só pelo seu diálogo com a bossa nova ou pelo seu caráter de exceção e curiosidade histórica, mas como um álbum de música popular pleno."