Há um tempo pensei em criar uma série dedicada a comentar e difundir grandes shows que a gente encontra distribuídos por aí nas redes digitais, eventualmente merecedores inclusive de estratégias de preservação mais consistentes.
Aproveitando o ensejo da data de aniversário do grande maestro Wagner Tiso, figura fundamental na constelação de criadores do Clube da Esquina, decidi começar por esse primoroso show que ele fez ao piano e órgão ao lado de seu inseparável companheiro de aventuras musicais, Milton Nascimento, vulgo Bituca, na voz e no violão. A gravação da TV Suíça traz performances impecáveis de ambos, um repertório espetacular e um entrosamento indiscutível de músicos que cravaram seus nomes em nossos ouvidos, mentes, corações e no panteão da MPB.Vale ver e rever várias vezes.Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
12 de dezembro de 2021
12 de novembro de 2021
Gilmortal
Há uma saborosa ambivalência na nomeação dele para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Claro, esse jovem iconoclasta aí mudou muito, como tinha que mudar mesmo. Aliás fez da mudança um mote constante de sua arte. A vetusta ABL também muda, mas a passo de tartaruga. Agora os caminhos se cruzaram, como há décadas atrás não seria possível. Não deixa de ser um sinal significativo de disposição pelo encontro, e até uma pitada sutil de autoironia, sempre necessária às pessoas e instituições que desejam alguma forma de renovação.
24 de setembro de 2021
Aldir inédito: ventar contra a falta de ar
Todas as faixas, abaixo, e logo em seguida a playlist completa:
5 de agosto de 2021
Tinhorão (em memória): o Policarpo Quaresma que deu certo
Que bom que há muitos livros e outros registros do conhecimento reunido pelo Tinhorão. Dá pra sacar o estilo com essa palestra proferida por ele e registrada pelo MIS-RJ em junho de 1973.
4 de julho de 2021
VALSA DO NÃO LUGAR
(Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)
Consultei os alfarrábios,
doutos manuscritos,
contos em chinês
Os recônditos tratados
de proscritos sábios
parcos rodapés
Shangri-lá seria aos pés do Himalaia
Xanadu perdida atrás de uma montanha
As minas do rei Salomão
cidade ao sol
Na Amazônia o uirapuru me guiaria
Rumo a terras que você não sonharia
longe
dessa ilusão
civilizada
Sigo em busca de utopias
Pra gente morar
Haverá um não lugar
Haverá um não lugar
Procurei nos pergaminhos
Nas iluminuras
cultos dos nagôs
As menções mais obscuras
Códices antigos
leis de faraós
A Lemúria desapareceu no tempo
Lilipute não passou de outro delírio
Atlântida submergiu
Mistério mór
Na Amazônia...
Sigo em busca de uma ilha
Pra gente se amar
Haverá um não lugar
Haverá um não lugar
14 de maio de 2021
Música popular e memória: em discos (1)
Revendo uma postagem feita pelo meu parceiro Maurício Ribeiro [quem quiser sacar algumas de nossas parcerias, aqui aqui aqui aqui], compositor, instrumentista, arranjador e produtor atualmente radicado na Espanha, lembrei-me dessa antiga série que comecei e não foi muito longe, "Música popular e memória". A ideia era convidar leitores que se animassem a escrever suas recordações associadas à música popular. Ficou pelo caminho, depois de alguns episódios que depois recupero e boto link aqui [Pedro Munhoz; Rafael Senra; Míriam Hermeto]. Como às vezes ocorre, eu simplesmente encontro alguma coisa já escrita por alguém, em redes sociais, e dá aquele estalo. Lendo esse do Maurício me deu vontade de retomar a série, agora com esse conceito de partir de discos. Como as pessoas estão sempre respondendo enquetes sobre os seus álbuns preferidos - pelo menos quem tem uma certa idade e ainda aprecia a música a partir desse tipo de suporte - acho que não faltará material. Já deixo o convite para quem quiser entrar nessa roda, é só se manifestar pelos comentários ou fazer contato que será um prazer publicar mais relatos desse mesmo teor. Para aliviar o peso da postagem fiz links para os discos no YouTube, é só clicar no título.
Gracias, parceiro! Fiquem aí com o relato e a seleção de audiomemorabilia do Maurício:
Meu amigo Luiz Pinheiro me convidou pra participar da brincadeira da capa dos discos, postando uma capa a cada dia. Não gosto de entrar nessas correntes, mas ele deu uma subvertida postando as 10 capas de uma vez, o que me inspirou a fazer o mesmo.
Por Maurício Ribeiro
5 de maio de 2021
Bolacha completa - John Lennon/Plastic Ono Band edição de luxo
Acabou de sair uma caixa com a edição de luxo do primeiro disco de John Lennon em carreira solo - claro, com sua parceira de vida e música Yoko Ono, co-produzindo, e tocando, como está no título, com a Plastic Ono Band - o que representa, neste caso, uma banda que incluiu Ringo Starr, Klaus Voormann no baixo, Billy Preston nas teclas, uns pianos complementares do legendário produtor Phil Spector. Instado por mim e por outros internautas, meu caríssimo amigo Vlad Magalhães, músico profundo entendedor da obra de Lennon e dos Beatles, presença consagrada nas melhores formações de bandas ou em apresentações solo de tributo à obra dos quatro cavaleiros do Após-calipso, registrou sua apreciação do impressionante montante de mais de 7 horas de áudio. Ele gentilmente cedeu o texto, que disponibilizo aqui no Blog disparando foguetes. Ao Vlad meus cumprimentos e agradecimentos por esse minucioso relato, porque eis aí o mapa da mina. Além de tudo ele reuniu um extrato dos "melhores momentos" numa playlist aberta do Spotfy, que seguirá no corpo da postagem. Quando eu puder, pretendo traçar algumas linhas sobre o disco original, mas isso pode esperar.
Por agora, deleitem-se.
2 de janeiro de 2021
SUPERNOVA SG532
Após ler o excelente depoimento do meu querido parceiro Luiz Henrique (escrito por ele ainda no calor do lançamento, com impressionante riqueza de detalhes do processo), pensei em também escrever algo, mas puxando mais para o lado da criação da melodia.
Essa canção foi feita em um período de férias: eu já morava em Macapá, tinha tido meu primeiro semestre como professor da Universidade Federal do Amapá, e estava descansando na casa dos meus pais, em Congonhas (MG). Levei meu notebook e minha placa de áudio para lá, e, em determinado dia, deu vontade de tentar gravar um tema mais progressivo, longo, com diferentes passagens instrumentais.
A base da canção foi composta enquanto eu gravava, e não antes. Eu elaborava uma melodia ou um riff, e as primeiras execuções desse arranjo já eram feitas enquanto eu dava o “rec”. Fui compondo mais focado no teclado, deixando alguns espaços na canção para que depois fossem inseridas guitarras.
Essa base foi criada e gravada muito rápido. Não sei precisar o tempo, mas lembro que a fiz bem mais rápido do que a maioria das canções que já compus. É engraçado, porque se trata de uma faixa longa, com várias passagens instrumentais, e dá a impressão de ter sido algo elaborado e muito burilado; mas, não, em termos de composição, foi muito rápido. Foi um anti-Dorival Caymmi, conhecido por demorar anos e anos para compor frases e melodias aparentemente simples. Mas é que o simples dá trabalho. Lembro-me também do guitarrista do Dream Theater dizer, em uma entrevista, que o que eles fazem não é difícil: que difícil mesmo é fazer uma canção como o U2, que soe relevante com poucos acordes e 4 minutos...
Pois bem. A criação estava fluindo muito, até que, no dia 25 de janeiro de 2019, li a notícia do estouro de uma barragem em Brumadinho. Como Congonhas fica bem perto dali, entrei em pânico. Eu li a notícia em um site pequeno, sem muitos detalhes, escrita cerca de dez minutos após o ocorrido. Fui o primeiro a divulga-la para vários amigos, sem saber da proporção que aquilo realmente alcançaria. Lembro bem de mim, com o teclado musical diante de mim, ainda elaborando alguns dos arranjos, e de repente me vendo distraído com a inesperada notícia, procurando desesperado por mais notícias sobre o ocorrido.
Isso foi em uma sexta feira. No fim do dia, soube que uma grande amiga estava nessa empresa da Vale, e consequentemente o fim de semana foi de puro pânico. Eu e diversos amigos do nosso círculo estávamos devastados. Minha tábua de salvação foi dar tudo de mim na elaboração desse tema musical. Me dedicar à gravação dessa canção foi importante naquele momento, foi uma maneira de não me afundar nos sentimentos cruéis e pesados que só cresciam naquele momento.
Após ter gravado as guitarras, tentei escrever uma letra, tentando expressar a dor sentida pela tragédia de Brumadinho. Não fazia muito tempo que eu tinha ido ao Inhotim pela primeira vez, e me pareceu horrível ver uma região tão bonita ser devastada dessa maneira. Mas a maior dor era pela perda dessa amiga que lá estava, que eu conhecia há anos e era esposa de um verdadeiro irmão de vida. Meu sentimento era real, era duro de lidar, e não consegui traduzi-lo em palavras.
Enviei a melodia para meu parceiro Luiz Henrique Garcia, e comentei muito brevemente sobre a intenção de orientar a letra nessa direção de ser uma espécie de “ritual de cura” do ocorrido. Mas a sugestão não era nada estimulante, ou pelo menos notei que Luiz também não encontrou nesse mote nenhum tipo de inspiração*. Letras de música são algo difícil: muitas vezes, você tem uma ideia interessante, mas a música não aceita a sua ideia. Me parece que toda letra de música que busque a relevância precisa nascer de um “acordo” com a melodia. É preciso que a canção aceite as palavras. De certa maneira, creio que um letrista é em parte criador e em parte tradutor. Ele precisa, em algum nível, traduzir o que a própria melodia já está dizendo (ou gostaria de dizer).
Luiz então se arriscou em uma direção diferente da que eu tinha previamente sugerido. Ao longo dos meses, lentamente, algumas mudanças foram sendo feitas. As vezes, eu perguntava a ele se uma palavra poderia ou não ser substituída, e ele ia pensando em possibilidades diferentes, e aí batíamos o martelo juntos. Trabalhar com o Luiz tem muito desse tipo de diálogo, em alguns momentos. Eu tento não interferir no que ele escreve, mas aprecio a delicadeza com a qual ele submete a letra a meu escrutínio, e se abre para uma eventual necessidade de reescrever ou não alguma coisa.
Continuei mexendo na gravação dessa música ao longo de vários meses. Tentei tocar a melodia geral com som de piano, em vez do som de wurlitzer original. Eu tinha usado originalmente um timbre bem a la “Supertramp”, daí o nome da guia, como Luiz mencionou. Mas não ficou legal com som de piano, daí retomei o timbre original.
Quando decidi gravar um disco em Macapá, no Estúdio Zarolho, mostrei para o produtor Alan Flexa a versão caseira que fiz. Ele achou que soava bastante como 14 Bis, o que me deixou bastante feliz. Quando mostrei para Alan, já estávamos no processo de gravação de outras músicas, e eu diariamente ia em seu estúdio para gravarmos tudo lá: guitarra, baixo, bateria, vocais (apenas os teclados que gravei em casa eram mantidos).
Mas, no caso dessa, Alan sugeriu que eu mantivesse a guitarra gravada em casa. Ele achou que, mesmo sendo uma guitarra feita para uma guia, ela soava ótima, e o solo de guitarra não precisaria ser regravado. Ele achava que eu tinha conseguido algo que soava tipo 14 Bis mesmo, como no solo de músicas tipo “Espelho das Águas”. No início do texto, disse que a base da canção foi feita rapidamente, mas esse solo de guitarra deu trabalho para compor. Eu queria que fosse algo memorável, e me dediquei muito para cria-lo. A gravação dele foi mesmo feita em casa, e há algo na performance que fiz que me parece bem apaixonada. Fazia sentido mantê-la.
A bateria da original era uma base em MIDI bem quadradona. Chamamos Forlan Gomes para gravar uma bateria de verdade. Como de costume, ele ouviu a versão demo poucas vezes antes de gravar. A única coisa que deu trabalho foi, já no fim do solo, em um momento que eu pedi a ele para bater no prato de ataque junto com uma nota específica do solo que achei importante ressaltar também na bateria. Isso demandou vários takes para dar certo. Mas, no geral, Forlan gravou algo com a suavidade e a fluidez que eu queria, o resultado ficou fantástico. Depois só precisei voltar ao estúdio para gravar os baixos e as vozes.
Supernova SG532 (Música de Rafael Senra e letra de Luiz Henrique Garcia)
Estratosférica luz
Estandarte do sol
Uma pedra no céu explodiu
Por toda América ouvi
Majestade do som
A impávida voz que espalhou